Comissão Europeia e Ministério Público chegaram a conclusões opostas no caso Tecnoforma

Os investigadores de Bruxelas entendem que houve fraude e que a Tecnoforma deve devolver mais de seis milhões de euros. O Ministério Público concluiu que não há motivo para acusar seja quem for e arquivou o processo. São 6,7 milhões de euros que Bruxelas entende que têm de ser devolvidos.

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MIguel Relvas e Pedro Passos Coelho, em Março de 2012, no XXXIV congresso nacional do PSD Rui Gaudêncio

Os procuradores que conduziram, em dois processos distintos, os inquéritos à actividade da empresa Tecnoforma e os investigadores do gabinete anti-fraude da Comissão Europeia (OLAF) dificilmente podiam estar mais em desacordo. Os primeiros, no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) e no Departamento de Investigação e Acção Penal de Coimbra (DIAP), não encontraram nada de particularmente grave na actuação da empresa de que Pedro Passos Coelho foi consultor e administrador. Os segundos, acompanhados pela respectiva hierarquia, não hesitaram em classificar como fraudulenta a conduta da Tecnoforma - razão pela qual entendem que a empresa deve restituir aos cofres europeus o montante de 6.747.462 euros. A decisão final sobre esta proposta ainda não foi tomada.

Respondendo a um pedido de apoio do DCIAP, onde decorria um inquérito aberto em 2012, na sequência das notícias então divulgadas pelo PÚBLICO, o OLAF disponibilizou dois dos seus inspectores de nacionalidade portuguesa. Ambos são veteranos na investigação de fraudes na obtenção e utilização dos fundos europeus e ambos estavam já a trabalhar no caso Tecnoforma, no âmbito de um inquérito do OLAF desencadeado por uma queixa da eurodeputada Ana Gomes, com base nas mesmas notícias.

DIAP ignorou Bruxelas

Quando o pedido de assistência foi dirigido pelo DCIAP ao OLAF, em meados de 2013, estava em curso, além do inquérito daquele departamento especializado do Ministério Público (MP), uma outra investigação sobre a Tecnoforma, que corria no DIAP de Coimbra.

No DCIAP avaliava-se o eventual favorecimento da empresa por parte de responsáveis políticos, entre os quais Miguel Relvas, secretário de Estado responsável pelo programa Foral, ao abrigo do qual a Tecnoforma foi financiada entre 2000 e 2006. Em causa estava também a forma como esses financiamentos, nacionais e europeus, foram utilizados pela empresa. Em Coimbra investigava-se igualmente o possível favorecimento da Tecnoforma, e a forma como foram geridas as verbas atribuídas a um projecto de formação de pessoal para os aeródromos e heliportos municipais da região Centro - um dos muitos que lhe foram aprovados naquele período.

No caso do DCIAP, a investigação esteve praticamente parada cerca de dois anos, até meados de 2015, altura em que o OLAF concluiu a sua investigação. Depois disso, e apesar de o inquérito ter sido classificado como “urgente” pela direcção do DCIAP, passaram-se mais de dois anos até que, em Setembro passado, o processo foi encerrado e arquivado, com conclusões em grande parte contrárias às do OLAF.

Em Coimbra ­tudo se passou como se o procurador encarregue do inquérito ignorasse que os especialistas da Comissão Europeia estavam a investigar o caso - facto esse amplamente noticiado pela imprensa portuguesa em Maio de 2013.

Em Junho do ano seguinte, 13 meses antes de o OLAF concluir a sua missão, o magistrado subscreveu o despacho de arquivamento do processo sem fazer qualquer referência à investigação de Bruxelas. Por um lado, explica no documento, “não se conseguiu comprovar” o favorecimento da Tecnoforma por parte de Miguel Relvas, ou de qualquer outra personalidade do PSD. Por outro, acrescenta, verificou-se que a candidatura ao financiamento do projecto relativo aos aeródromos e heliportos “correspondia a uma proposta de formação que veio a ser regular e efectivamente concretizada”.

“Fraude”, concluiu o OLAF

Com o arquivamento do inquérito do DCIAP, em Lisboa, foi finalmente possível conhecer o resultado da investigação do OLAF, cujo relatório final se encontra junto aos autos. A subscrevê-lo, além do director Nicholas Illet e de  Sweeney James, chefe de uma das três unidades especializadas na investigação de fraudes nos fundos agrícolas e estruturais, estão os investigadores Cláudia Filipe e Artur Domingos.

A primeira, antes de entrar para o OLAF, era técnica superior principal do Instituto Financeiro para o Desenvolvimento Regional, um dos três organismos que se fundiram na actual Agência para o Desenvolvimento e Coesão (ADC), o instituto público que é responsável em Portugal pela coordenação dos fundos europeus. O segundo era inspector superior principal da Inspecção-Geral de Finanças (IGF), em comissão de serviço como especialista do Núcleo de Assessoria Técnica da Procuradoria-Geral da República, quando foi para o OLAF, em 2001.

E o que é que concluiu a equipa à qual o Ministério Público pediu ajuda por via da complexidade dos regulamentos comunitários e da experiência do OLAF nestes casos? Desde logo concluiu que “foram cometidas graves irregularidades, ou mesmo fraudes, na gestão dos fundos europeus” atribuídos, entre 2000 e 2013, aos projectos da Tecnoforma e a outros cujo titular foi a Associação Nacional de Freguesias (Anafre), mas cuja execução foi sub-contratada, em 2006, à empresa de que Passos Coelho era administrador. Parte desses fundos prendem-se com o programa Foral, mas a fatia mais importante está relacionada com o Programa Operacional do Potencial Humano (POPH), que vigorou entre 2007 e 2013.

No total, contabiliza o relatório do OLAF, “o montante a recuperar” pelas instituições europeias, devido às irregularidades detectadas, ascende a 6.747.462 euros, provenientes do Fundo Social Europeu. Desse valor, 1.921.340 euros correspondem à intervenção da Tecnoforma no programa Foral; 1.027.178 aos projectos desenvolvidos em parceria pela Tecnoforma e pela Anafre; e 3.798.943 aos projectos da empresa aprovados pelo POPH. De acordo com os autores do relatório, “os factos enunciados podem constituir infracções penais previstas no Código Penal Português”.

De fora das conclusões do OLAF ficam os cerca de 2,7 milhões de euros correspondentes aos subsídios pagos à Tecnoforma com verbas do Estado Português e cuja correcta utilização deverá ser aferida pela Inspecção-Geral de Finanças.

Em concreto, os investigadores da União Europeia dizem coisas como esta: “Na maioria dos projectos auditados, a empresa inclui os custos de amortização dos seus imóveis, ou as rendas das instalações em que funcionam os serviços administrativos e financeiros, a administração, os serviços de reprografia e as salas de formação onde têm lugar outras formações sem qualquer relação com as formações abrangidas por estes projectos. Todas as despesas relacionadas com o funcionamento das suas actividades são imputadas aos projectos, embora resulte das demonstrações financeiras e económicas que uma parte muito significativa da sua actividade tem lugar em Angola.”

“Carrocel financeiro”

A título de exemplo, o OLAF indica que as despesas listadas nas contas desses projectos a partir de 2004 envolvem casas de que a empresa era proprietária em Angola, bem como “veículos topos de gama, frigoríficos, arcas congeladoras, placas de aquecimento, televisores, geradores, máquinas de lavar roupa, colchões, armários e quadros, etc.” A apresentação destes custos para cofinanciamento pelos fundos europeus, lê-se no relatório, “parece que tem por objectivo aumentar os lucros da empresa”. 

Ainda ao nível das despesas imputadas aos projectos auditados, o documento aponta situações irregulares de duplicação de custos, que figuravam simultaneamente em rubricas de serviços contratados a terceiros e nas despesas atribuídas aos serviços da Tecnoforma. Analisando as relações entre a empresa e a Oesteconsult, sociedade à qual contratou a execução da contabilidade dos projectos, o OLAF considera que o facto de as duas empresas contabilizarem simultaneamente os créditos e as dívidas, quando os pagamentos ainda não tinham sido feitos, representa “uma prática deliberada e previamente acordada, com vista a beneficiar indevidamente a Tecnoforma”.

Os investigadores sustentam, com base nos regulamentos comunitários, que estas situações, para lá de representarem “graves irregularidades”, constituem “manifestamente uma manobra fraudulenta lesiva dos interesses financeiros da União Europeia”. Em conclusão, salientam, os factos “demonstram claramente que as duas empresas criaram um sistema fraudulento (carrocel financeiro) com o objectivo de receber indevidamente os fundos da União Europeia”. Face aos dados recolhidos, entendem mesmo que “se pode colocar a questão da efectividade da prestação de serviços” cujos custos foram imputados aos projectos.

Noutros casos, designadamente relacionados com os projectos cuja execução a Anafre contratou à Tecnoforma, o relatório admite que a empresa tenha emitido facturas “para serviços não existentes, ou com montantes inflacionados, a fim de obter os fundos de forma fraudulenta”. Nestes projectos, a Tecnoforma subcontratou a LDN, uma consultora onde trabalhara Passos Coelho e que era propriedade de Luis David Nobre, um antigo vice-presidente da JSD. De acordo com o OLAF, também a relação entre estas duas empresas “indicia a existência de um carrocel financeiro, em que o prestador de serviços (LDN) inflaciona as facturas e subsequentemente entrega os cheques em forma de restituição”.

“Processo viciado”

Referindo-se às acções de formação destinadas ao pessoal dos aeródromos e heliportos municipais, os peritos da Comissão Europeia não hesitam em escrever que “o processo de candidatura elaborado pela empresa está viciado”. E acrescentam que “esta situação pode efectivamente ter tido origem nas relações pessoais e/ou políticas existentes entre os diferentes intervenientes”. Na perspectiva dos auditores, “as pessoas em causa (gestor do programa [Paulo Pereira Coelho presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região Centro e ex-dirigente da JSD], secretário de Estado [Miguel Relvas], e consultor da empresa [Pedro Passos Coelho] poderiam influenciar e/ou favorecer, em qualquer fase, o projecto de formação, em detrimento de outros”. Apesar das suspeitas, observam, “trata-se de uma matéria que ultrapassa as competências do OLAF.”

Não obstante, consideram que “a formação subsidiada não foi assegurada respeitando as condições anunciadas pela Tecnoforma”, razão pela qual os montantes pagos a este projecto, no total de 311.954 euros, “são considerados irregulares”.

Nos termos dos regulamentos europeus, recorda o OLAF, “os actos relativamente aos quais se prove terem por fim obter uma vantagem contrária aos objectivos do direito comunitário aplicável, criando artificialmente condições necessárias à obtenção dessa vantagem, têm como consequência a sua retirada”. E acrescenta: as “irregularidades intencionais” podem conduzir à “restituição integral” dos fundos europeus já pagos, mesmo que o beneficiário, neste caso a Tecnoforma e a Anafre, “tenha beneficiado indevidamente de apenas parte” desses fundos.

Recebido no DCIAP em Junho de 2015, o relatório do OLAF - que havia sido pedido pelo MP e era aguardado há dois anos para que a investigação fosse encerrada - parece não ter convencido o procurador Rui Correia Marques, titular do inquérito. O documento é encaminhado para a Polícia Judiciária e, semanas depois, o director da respectiva Unidade de Perícia Financeira assina um curto parecer em que emite fortes dúvidas sobre as suas conclusões, em particular quanto à existência de fraudes.

Logo a seguir, o procurador considera, em despacho, que a análise do OLAF “abarca factos que ultrapassam largamente o objecto do presente processo”, frisando que nele “estão apenas em causa os projectos desenvolvidos pela Tecnoforma e pela Anafre no âmbito do programa Foral, o qual terminou em 2006”.

Consultor avalia OLAF

Passados cinco meses, já no fim de Dezembro, o procurador obtém a colaboração da Agência para o Desenvolvimento e Coesão  (ADC), que disponibiliza um dos seus inspectores superiores para desempenhar o papel de consultor técnico do MP. Segundo o magistrado, mostrava-se necessário “recorrer a pessoa com especiais conhecimentos ao nível da tramitação dos fundos europeus”. No fundo, o consultor foi chamado para fazer o mesmo que o OLAF já fizera: averiguar a regularidade e legalidade dos apoios atribuídos à Tecnoforma.

Ao longo de ano e meio, o inspector da ADC passou a pente fino o trabalho dos seus colegas colocados em Bruxelas. Para clarificar algumas questões suscitadas pelo consultor, a Polícia Judiciária procedeu, em Janeiro deste ano, a buscas nas instalações da Tecnoforma e numa dezena de outros locais.

Com base no relatório final apresentado pelo consultor em Abril último, a PJ concluiu, no mês seguinte, “não existirem indícios da prática de qualquer ilícito criminal (…), mas sim divergências interpretativas” entre o consultor e o OLAF, remetendo os autos para decisão do procurador.

Estribado, em grande parte, no relatório do consultor técnico, o magistrado mandou arquivar o processo em Setembro, considerando que “atenta a escassez de elementos probatórios (…) não é possível indiciar suficientemente as suspeitas constantes do relatório do OLAF”.

A Comissão Europeia, por seu turno, enviou este relatório, em Dezembro de 2015, à ADC, a qual o remeteu à IGF e a um outro organismo nacional que desempenha as funções de autoridade de gestão dos fundos europeus. Em resposta ao PÚBLICO, a ADC explicou que, logo no início de 2016, deduziu nas contas finais do último programa operacional, “a título preventivo”, a totalidade das despesas da Tecnforma antes certificadas e entretanto consideradas irregulares pelo OLAF.

A decisão final sobre se a restituição dos mais de seis milhões de euros em causa será exigida à Tecnoforma e à Anafre, informou a ADC, cabe agora, uma vez concluída a investigação do Ministério Público, à autoridade de gestão do Programa Programa Operacional Potencial Humano.

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