O meu herói, um agressor
Seria de esperar que um caso de violência explícita tornado público fosse tido como exemplo do que está podre na nossa sociedade. Que fizesse pôr a mão na consciência e perceber que nós não estamos a mentir, estejamos nós ébrias ou sóbrias, de "bâton" vermelho e vestido curto ou ténis e "sweatshirt"
Nos últimos tempos, o pano caiu. Alguns dos nossos heróis apareceram em notícias que jamais queríamos que existissem. Os nossos heróis são agressores. Nem todos, porque ainda há gente decente — e gente que ainda não foi apanhada — e a internet incendiou-se de comentários. Pessoas que se identificaram com as vítimas, pessoas que defendem os agressores com afinco. Afinal, como é que foram capazes de tamanhas atrocidades? São exemplos que muitos seguiram para delinear as suas carreiras! Fizeram-nos rir, fizeram-nos chorar, fizeram-nos chorar de tanto rir. Há quem nem acredite que seja verdade. Temos todo o direito a ficar tristes, mas não de desculpar.
Veio a cavalaria dos dois lados. Os que defendem os agressores procuram explicações mesmo que vazias. Não pode ser verdade para eles. Claro que eles sabem respeitar outrem! São casos isolados, as piadas eram apenas humor negro. Só que todos os dias acontecem situações de sexismo, racismo, -fobia. Todos os dias há casos de assédio, de violência, de violação. Acham que não? Perguntem a quem deles sofrem, não teçam opiniões no lugar de quem realmente passa pelo sofrimento. Só quem está no convento sabe o que lá vai dentro. Sim, isto poderia ser argumento a defender que só os agressores sabem exactamente o que se passou, porque há muito quem não acredite nas vítimas. Afinal, eles são de renome e, a maior parte delas, cidadãs comuns “sem credibilidade”. Talvez em negação, há quem diga que todas elas mentem. Como é possível que os nossos heróis sejam humanos — e não monstros — que tenham, no entanto, defeitos e que possam ser agressores?
Sendo. Os nossos heróis podem ser agressores, como qualquer pessoa. Disse “o meu herói, um agressor", como poderia outra pessoa dizer “o meu pai, um agressor” ou “o meu vizinho, um agressor” ou “o meu marido, um agressor.” Desengane-se quem acha que só os desconhecidos na rua nos assediam, violam, matam. A podridão pode vir de dentro do nosso círculo, que deveria ser alicerce da nossa segurança.
Escrevo este texto do meu ponto de vista e, como mulher, sou mais passível de ser vítima do que os homens. Não estou a dizer que os homens não são vítimas também, não estou a dizer que todos os homens são violentos. Simplesmente digo que as estatísticas são claras. Os homens nascidos com o sexo e género alinhados, com orientação sexual alinhada à norma, estão mais seguros, têm o privilégio de poder andar na rua sem estar em medo constante. Sim, familiares e amigos, nós temos medo. Talvez vocês não saibam dos nossos truques para sentirmos um pouco de segurança. Claro que não os irei enumerar aqui — não esteja algum possível agressor a ler isto —, mas todas as pessoas mais susceptíveis a assédios, abusos, violações, sabem do que estou a falar. A rua é vossa, privilegiados, nós só passamos a medo e sentimo-nos como numa montra a ser julgados, à espera de quem atire a primeira pedra só pelo nosso género, orientação sexual, sexo, cor da pele. Só porque usamos mini-saia, um decote ou um vestido vermelho justo. Só porque nos achamos na liberdade de sermos nós mesmos.
Não, nem todos os homens são agressores, mas, para nós, que já passámos por situações difíceis no âmbito do aqui discutido, qualquer homem poderá ser um possível agressor. Nós não os conhecemos — e mesmo quando conhecemos o pior pode acontecer. Não poderei falar em nome dos homens vítimas de violência sexual, os silenciados pelo estigma do “ele tem de gostar” ou “é fraco” ou “não pode chorar” ou têm vergonha de falar, eles terão que falar por si, só eles sabem, mas não posso deixar de apontar que eles existem e sofrem como nós. Já nós somos acusadas de sermos mentirosas, de “estar a pedi-las”, de querer destruir uma carreira e reputação.
A Kesha denunciou o agente e a carreira destruída foi a dela. Um certo presidente foi gravado a defender assédio e ainda assim foi eleito. As nossas carreiras são destruídas, não as deles. Quem quer saber se o actor X ou o comediante Y violou ou se masturbou em público? Afinal, X é tão bom actor e Y tem tanta piada!
Seria de esperar que um caso de violência explícita tornado público fosse tido como exemplo do que está podre na nossa sociedade. Que fizesse pôr a mão na consciência e perceber que nós não estamos a mentir, estejamos nós ébrias ou sóbrias, de bâton vermelho e vestido curto ou ténis e sweatshirt. Mesmo quem se tapa da cabeça aos pés pode ser violada. Não é a roupa que nos viola, é o agressor. Não digam que estamos irresistíveis porque, se a nossa amiga lésbica resiste aos nossos calções curtos, um homem também consegue.
Batem-nos em casa, assediam-nos na rua, em todo o lado. Parem e perguntem às pessoas menos privilegiadas nas vossas vidas o que fazem para se proteger. Elas terão resposta, vocês não. Elas terão histórias, mesmo que não as partilhem, vocês não. Muitas mulheres negam que também sejam alvo, muitas não dão importância, mas acreditem que gato escaldado de água fria tem medo. Muitas sofrem em segredo.
Talvez quem esteja a ler isto seja um homem que jamais faria algo do género do que referi, ou um que já ouviu um amigo contar e não o chamou à atenção, ou um agressor que não tem noção do quão grave é o que faz. Não sei. Sei que está mais do que na hora de parar, de corrigir, de defender e acabar com isto. Não por causa dos "Kevins" ou "Louis", mas por causa de todas as pessoas que foram, estão ou serão agredidas.