O filme histórico não era o sítio onde esperaríamos reencontrar Jacques Doillon, cineasta que noutros tempos (anos 80, anos 90) até foi seguido com regularidade em Portugal e que filmou sempre “relações”, conjugais ou familiares, mais canónicas ou mais irregulares, com frequentes incursões pelo universo da infância e da adolescência (os belos Ponette, Le Petit Criminel ou La Fille de Quinze Ans). Mas os últimos anos não foram meigos para Doillon, que há um tempo considerável não é capaz de concitar a atenção e o interesse de que já foi objecto. Em grande parte, esse fenómeno explicará Rodin, obra que resultou duma encomenda semi-institucional para um filme sobre o célebre escultor que coincidisse com o centenário da sua morte (que se assinala neste ano de 2017).
A julgar pelo geralmente péssimo acolhimento que o filme mereceu depois da sua passagem no Festival de Cannes, é de crer que Doillon continue a viver na indiferença dos últimos tempos. Se noutras ocasiões a terá merecido, aqui afigura-se-nos injusta. A primeira coisa a fazer é resistir ao aparato semi-institucional que parece rodear o filme. Doillon é (e continua a ser) cineasta suficiente para fazer sua a encomenda, e é o que ele faz aqui. Rodin não é o biopic solene e pomposo do “grande homem” das “artes”: as coisas passam-se noutra escala, e, por exemplo, a construção narrativa, assente em blocos separados por elipses (que por vezes engolem muitos anos), nada tem de académico, pelo contrário, assim como, no capítulo das questões românticas (a relação de Rodin com as mulheres, em especial com Camille Claude, sua amante e discípula de muitos anos), tudo distancia Rodin do célebre Camille Claudel de Bruno Nuytten em finais dos anos 80 (com Isabelle Adjani no seu mais “diva” e Depardieu como Rodin, ainda não, mas quase, no seu mais brutamontes). Quer Vincent Lindon, quer Izia Higelin são essencialmente simples e discretos, e as cenas curtas, mais corriqueiras ou mais conflituosas, com que Doillon dá o evoluir da relação são até os momentos em que o filme mais se aproxima do Doillon “típico” e mais tipicamente intimista (podendo até, através das parties de campagne das personagens, compor algumas graças com o impressionismo).
Mas o centro de Rodin é o trabalho, o homem no seu atelier, com as mãos na pedra ou no gesso, os olhos nos modelos, em cenas filmadas quase sempre numa certa penumbra, como se as cores se reduzissem ao preto e branco. Não chega a ser a Belle Noiseuse (de Rivette), porque nada se compara ao labirinto e aos jogos de poder e sedução que esse filme encena, mas a sua atenção à matéria, ao trabalho sobre a matéria, ao processo obsessivo (e intrinsecamente “erótico”) que leva à transmutação da carne em pedra aproximam-nos mais do filme de Rivette do que dum pastelão académico convencional sobre o “grande escultor”. E depois, que é o ponto onde Doillon com certeza se projecta a si próprio, o combate, quase político (e certamente “institucional”, porque Rodin era já um “artista oficial” do Estado francês), pela liberdade criativa e pela independência, pela sua visão contra a visão, justamente, oficial — exemplificada pela longuíssima luta, que ocupa quase toda a segunda metade do filme, para fazer prevalecer a sua “escandalosa” escultura de Balzac contra praticamente tudo e todos. Um filme sobre a obstinação da integridade artística, em suma, como um Fountainhead em ponto pequeno, e bastante bem tal como está. O plano final — uma imagem contemporânea da estátua de Balzac no jardim do museu japonês em que se encontra — é qualquer coisa que talvez só esperássemos ver num filme de Manoel de Oliveira ou dum cineasta oliveiriano. Rodin é filme até ao fim, e não dizemos isso a todos.