Sauditas acusam Irão de “acto de guerra” num conflito cada vez mais aberto
A disputa pela hegemonia regional já se jogava em vários cenários, do Iraque ao Iémen, passado pelo Qatar, e chega agora abertamente ao Líbano. Riad não desiste de afirmar o seu poder face a Teerão, que se alinha com Moscovo.
Os jogos de tabuleiro, tão tradicionais nos países árabes, são muitas vezes a imagem possível para tentar dar sentido aos acontecimentos no Médio Oriente. Os protagonistas, Arábia Saudita e Irão, avançam e recuam, tentando muitas vezes fazer xeque ao histórico rival. É o que Riad tem feito nos últimos tempos, sem evitar que muitas das suas acções acabem por reforçar a imagem de Teerão como defensor dos oprimidos regionais.
Entre a série alucinante de factos ocorridos durante o fim-de-semana, comecemos pelo míssil balístico lançado a partir do Iémen – alegadamente disparado pelos rebeldes huthis (tribo de confissão zaidita, um ramo do islão xiita), apoiados pelo Irão – contra o território saudita.
O ataque é descrito como um “acto de guerra” num comunicado divulgado esta segunda-feira em Riad. “O papel do Irão e o seu controlo directo dos huthis constitui uma clara agressão”. O país que já gastou milhões e milhões na sua guerra iemenita, provocando milhares de mortos e milhões de deslocados, anunciou que vai encerrar o espaço aéreo e as fronteiras marítimas e terrestres do Iémen até descobrir como é que os mísseis balísticos chegaram aos rebeldes.
“Não vamos tolerar nenhuma ofensiva contra a nossa segurança nacional”, precisou, no Twitter, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Adel al-Jubeir. “As ingerências iranianas na região prejudicam a segurança dos países vizinhos e afectam a segurança e a paz no mundo”, acusou ainda. O Irão considera que a tentativa saudita de o responsabilizar pelo lançamento do míssil é “maliciosa, irresponsável, destrutiva e provocadora”.
“Os sauditas, que falharam nos seus objectivos maléficos durante a sua longa agressão militar contra o Iémen, estão a causar mais problemas com uma operação psicológica desastrada que consiste em lançar acusações totalmente falsas”, respondeu o porta-voz da diplomacia iraniana, Bahram Qassemi.
A guerra por procuração, que Riad e Teerão travam sob a forma de conflito armado no Iémen, mas também na Síria ou no Iraque, começa a parecer-se com uma guerra directa que ameaça desestabilizar ainda mais a região. Pelo meio, os sauditas acabam de lançar outro país para a fogueira, nesta sua escalada para afirmar a supremacia face ao Irão.
Horas antes das explosões ouvidas junto ao aeroporto internacional Rei Khalil, de Riad (e que acabaram por confirmar-se ter origem no disparo de pelo menos um míssil balístico), a capital saudita tinha sido cenário de um acontecimento aparentemente inusitado. O primeiro-ministro do Líbano, Saad Hariri, aliado do reino, estava de visita e anunciou a sua demissão da chefia do Governo de coligação libanês em directo na Al-Arabiya, um canal saudita. Dizendo acreditar correr risco de vida, acusou o Irão de semear “desordem e destruição” no seu país e criticou o Hezbollah por “construir um estado dentro do estado”.
O partido xiita (que é também uma milícia), aliado de Teerão, integra o Governo formado a muito custo há menos de um ano. Numa intervenção com recurso a muitas das expressões que Riad costuma usar para se referir aos iranianos, Hariri descreveu o Hezbollah como “braço iraniano” no Líbano.
“Não queríamos que Hariri se demitisse”, afirmou o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, no canal de televisão do seu movimento, Al-Manar. “Mesmo que tenha sido forçado, esta actuação não reflecte o modo de agir de Hariri. Seria melhor que o tivessem deixado regressar ao Líbano para se encontrar com o Presidente, entregar-lhe a sua demissão e declará-la a partir do palácio”, defendeu Nasrallah. Hariri, que tem passaporte saudita, permanece na monarquia absolutista e não parece ter planos para voltar ao seu país. “Assim fica claro que a Arábia Saudita interfere nos assuntos internos libaneses”, concluiu Nasrallah.
Discurso exacerbado
“A Arábia saudita quer uma escalada na sua guerra de procuração com o Irão – não só no Iémen e na Síria, mas também no Iraque e no Líbano”, diz o analista da Al-Jazira Marwan Bishara.
No eterno conflito Riad-Teerão, o movimento de Nasrallah tem começado a emergir como alvo preferencial, num “discurso anti-Hezbollah muito exacerbado”, nota Carmen Geha, professora de Administração Pública na Universidade Americana de Beirute.
Nos últimos meses, a Administração amerciana, chefiada por Donald Trump e determinada em rasgar o acordo nuclear com o Irão, tem sido crescentemente crítica do Hezbollah. Ainda em Outubro, o Congresso aprovou por unanimidade um novo conjunto de sanções contra o movimento xiita libanês e estados estrangeiros que o apoiam.
Israel também não perdeu a oportunidade para apontar o dedo ao Irão, com o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, a descrever a demissão de Hariri como um “aviso à comunidade internacional para agir contra a agressão iraniana que está a tentar transformar a Síria num segundo Líbano”.
Tudo isto quando a guerra síria se encaminha a passos largos para uma situação em que o Daesh não controla território, Bashar al-Assad (apoiado pelo Irão, Hezbolah e Rússia) é cada vez mais senhor do país que recusou abandonar e o que sobra de resistência são grupos liderados por milícias curdas e apoiados pelos EUA. Não por acaso, Vladimir Putin foi recebido no final da semana passada em Teerão, onde defendeu o acordo nuclear e elogiou a colaboração entre Moscovo e os iranianos na Síria.
Isolar a América
“A nossa cooperação pode isolar a América”, disse, por seu turno, o Líder Supremo do Irão, ayatollah Ali Khamenei. “Esta visita é muito importante. Mostra a determinação de Teerão e Moscovo no aprofundamento da sua aliança estratégica, que vai moldar o futuro do Médio Oriente”, resumiu à Reuters um alto responsável iraniano. “Tanto a Rússia como o Irão estão sob pressão americana… Teerão não tem outra escolha a não ser apostar em Moscovo para aliviar a pressão americana”.
Com viagem marcada para a Rússia está o Presidente turco, Recep Erdogan, que passará por Sochi no dia 13 de Novembro. Isto num momento em que Ancara avalia a compra de um sistema de misseis antiaéreos S-400 a Moscovo e os russos tentam que Erdogan levante o veto à participação de um grupo sírio curdo na conferência da paz sobre a Síria promovida pelos russos e prevista para 18 de Novembro.
Bomba-relógio
Falta referir ainda outro acontecimento extraordinário dos últimos dias em Riad, com as dezenas de detenções entre a elite saudita orquestradas pelo príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman, numa purga de dimensões épicas que diz ser motivada pelo combate à corrupção, mas vista como mais um arriscado passo de MBS (como é conhecido entre os sauditas) para afirmar o seu poder.
Um dos detidos, o milionário Alwaleed bin Talal, é investidor em empresas como o Citibank ou a Apple, no que alguns analistas vêem uma vingança: o custo de guerra no Iémen, conflito lançado por MBS, tem tido consequências graves para a economia saudita e Talal terá recusado o convite para ajudar a estabilizar os cofres do Estado.
Obcecado com o poder, e com a humilhação dos iranianos, MBS, de 32 anos, “mostra que está disposto a arriscar toda a uma região para usar a coroa”, escreve na Al-Jazira Jamal Elshayyal. “As suas acções já destruíram o Conselho de Cooperação do Golfo; o Iémen deixou de ser um Estado funcional; o Egipto [onde os sauditas apoiam e financiam o Governo militar de Sissi] é uma bomba-relógio; e agora pode explodir o Líbano. Há muito com que nos preocuparmos”.