Das suas mãos saem obras de arte. Únicas e exclusivas. Sim, ainda há alfaiates
Começou por ser um ofício “desprezado”. Hoje é um luxo ao alcance de poucos. Ainda riscam, cortam, cosem e passam a ferro em oficinas que têm ar de museu. Os alfaiates tradicionais contam-se pelos dedos das mãos e estão perto de encostar as tesouras. Não há quem lhes queira suceder.
Quando Augusto Saldanha chega ao Porto, ainda na década de 60 do século passado, em ruas como Santa Catarina, 31 de Janeiro ou Sá da Bandeira havia uma alfaiataria “porta sim porta não”. Saiu de Freixo de Espada à Cinta com 14 anos rumo à cidade grande para dar continuidade ao processo de aprendizagem da arte, iniciado dois anos antes, para trabalhar com alguns dos grandes mestres do corte e costura de fatos por medida. Trabalhou e aprendeu com os melhores até se estabelecer por conta própria em 1976 no prédio com a entrada número 1 da rua Trindade Coelho, na passagem que une as Flores à Mouzinho da Silveira, onde ainda exerce a actividade.
Hoje, aos 66 anos, é um dos poucos artistas que ainda teima em não fechar a caixa de costura para desistir de uma arte que diz ter espaço para mais concorrência. Há mercado, mas diz faltarem novos profissionais formados de acordo com os princípios básicos da alfaiataria para que esta actividade se renove e não se extinga. No Porto, chegam os dedos de duas mãos para contar os que ainda seguem os processos tradicionais desta actividade que precisa de sangue novo. Na capital o cenário é idêntico.
É lá que está Joaquim Barbosa. Diz estar cansado, mas nem por isso deixa de chegar todos os dias às 9h da manhã ao ateliê que tem na Avenida Infante Santo há 53 anos. "Queria descansar um bocadinho. Tenho mais trabalho do que aquilo que me apetece fazer. Hoje tenho um cliente às seis e meia. Vai dar até às oito de certeza".
Trabalha desde os 11 anos num ofício que exige anos de labuta para escalar na hierarquia e chegar à quase perfeição que é exigida de um bom mestre alfaiate.
Quando procuramos contar as histórias de quem dedicou uma vida inteira ao corte e à costura, os protagonistas tendem a repetir-se. São poucos, cada vez menos, e não têm a quem ensinar a “arte” que uma nova geração tenta reproduzir. No mundo da moda por medida, a tradição foge cada vez mais àquilo que era.
De ajudante a contramestre
Aos 82 anos continua a dedicar a vida a tornar os outros mais elegantes. Começou aos 11 anos, no Alentejo, perto de Mora. Acabou a 4ª classe e começou a aprender a profissão à luz do petróleo. Herdou os ensinamentos do pai que o pôs, primeiro, a tratar dos ferros que funcionavam a carvão. Porque aqui também se começa por baixo há uma hierarquia a respeitar. De ajudante, meio-oficial, oficial, ajudante de mestre, mestre, até chegar a contramestre, a mais alta das patentes que os mais de 70 anos de ofício há muito lhe conferiram.
Trabalhou em terras alentejanas até ir para a tropa. Depois seguiu para Lisboa e por ali ficou. Trabalhou em várias oficinas, fez um curso de corte na Academia Maguidal, “que ainda hoje existe mas não tem alunos”. Um dia cansou-se da tacanhez de um dos patrões. “Ele queria facturar e eu queria ser bonzinho”, conta.
Montou a própria casa aos 29, ali mesmo no 345 da Infante Santo onde ainda se mantém. Hoje, tem ar de museu, fotografias nas paredes e prateleiras com os melhores tecidos.
Os clientes foram-lhe aparecendo, “uns mandavam os outros”. Durante a conversa, levanta-se e procura nas gavetas as velhas fotografias que lhe recordam as mais de sete décadas de ofício. Mostra uma fotografia onde está a atender um cliente israelita com 2,04 metros. “Tive que me pôr em cima de um banco”, diz do alto do seu metro e oitenta. É também por isso que muitos recorrem ao alfaiate hoje em dia. Porque têm medidas fora do que o padronizado pronto-a-vestir oferece ou porque podem pagar milhares de euros por uma "obra de arte" que lhes assenta no corpo como uma luva.
Nas mãos de Joaquim, e da sua equipa, um fato demora cerca de 60 horas a fazer. E o que é que é preciso para entregar um fato de excelência? "Que o cliente goste", atira. Alfaiate não gosta de revelar os preços. "Varia consoante a fazenda", diz.
Já passaram por ali grandes representantes das elites políticas e económicas nacionais e internacionais. Já viu os seus finos fatos em casamentos reais. Não gosta de dizer nomes. Gosta da discrição. Assim se manteve sempre. Mas há uma família que faz questão de referir. É o da família Pereira Coutinho que lhe "salvou a casa da falência" a seguir ao 25 de Abril.
Já lhes passaram pelas mãos pelo menos três gerações. Hoje, Joaquim Barbosa diz que veste dos 18 aos 95 anos. “Alguns clientes têm a mania de o primeiro fato dos filhos ser feito por mim”, conta Joaquim.
Mais a norte, no Porto, Augusto Saldanha, alfaiate de Paulo Portas e outras figuras “de relevo” também prefere manter o anonimato dos clientes. Só fala do antigo líder do CDS/PP porque o próprio o tornou público.
Numa manhã de um dia da semana, divide o espaço do ateliê onde põe mãos à obra com mais uma costureira com quem trabalha. É uma de duas funcionárias da equipa que colabora com o mestre. Noutros tempos eram cinco.
Ao som da música que toca no rádio, de fato e gravata, dedal no dedo e fita métrica ao pescoço, passa a ferro parte de uma peça ainda em construção. Para maior conforto tira apenas o casaco. É assim que todos as manhãs se apresenta ao serviço até horas incertas da noite, que acaba quando o serviço o permite. Gosta de estar bem vestido porque é lá que também recebe os clientes: maioritariamente “gente nova”. “São eles que trazem os pais. No outro dia tive aqui três gerações a fazer uma prova: avô, filho e neto”, conta. Bem-disposto e com piada pronta na ponta da língua recebe-nos para falar sobre a arte que conhece “desde sempre”. O dia é atarefado, mas conversar faz também parte do trabalho e esse é feito maioritariamente com as mãos.
É no ateliê onde tudo começa e tudo acaba. É lá que o cliente escolhe o tecido, onde se define o desenho do fato, tira-se as medidas, faz-se o corte e se executa a peça. Esta é condição sine qua non para definir o que é trabalho de alfaiataria ou não. “O processo começa e acaba aqui. Fazer à medida há muito quem faça, mas depois as peças são enviadas para fábricas. Aqui é trabalho de artesão. É loja e fábrica ao mesmo tempo“, afirma. É assim no Saldanha e em qualquer outro alfaiate tradicional. Se a peça segue para uma confecção, já a considera outra “coisa qualquer” menos alfaiataria. No limite chama-lhe alfaiataria industrial, o que diz não ser a mesma coisa.
A sala de provas é como um confessionário
Como o colega de Lisboa e todos os outros alfaiates tradicionais, aprendeu esta arte com os mestres mais antigos. Passou por todas as etapas necessárias até chegar ao topo. “Comecei como aprendiz sem receber dinheiro até chegar a mestre. À medida que se ia subindo de categoria ia também subindo o ordenado”, recorda.
Aos 12 anos, ainda em Trás-os-Montes, dá os primeiros passos, sem qualquer tradição familiar na alfaiataria. O mesmo destino escolheu um irmão que ainda hoje também continua com ateliê aberto na rua 31 de janeiro, no Porto. É na capital do Norte que se faz artista. “Passei por muitos mestres, mas um dos que mais me marcou foi o Albino Correia Martins, da Alfaiataria Real”, conta.
Começa por trabalhar para todo o “tipo de clientes” numa altura em que “não havia outra alternativa” para quem quisesse comprar um fato. Nas principais ruas comerciais do Porto não faltava concorrência. É depois do 25 de Abril que há uma mudança.
“Muitos colegas foram trabalhar para fábricas”, diz que procuravam empregos mais estáveis. “Na altura recebíamos à semana. Nas fábricas já se recebia ao mês e melhor”, lembra. Aparece o pronto-a-vestir e muitas alfaiatarias fecham. Augusto Saldanha optou por continuar. Depois de cumprir o serviço militar, que o cumpriu na especialidade de alfaiate, volta ao Porto com um propósito definido: estabelecer-se.
Hoje, em Santa Catarina, 31 de Janeiro ou Sá da Bandeira as alfaiatarias deram lugar a outro tipo de comércio. Não é por isso que se arrepende da decisão que tomou há mais de 40 anos. “Há cerca de 20 anos trabalho para um público mais seleccionado que procura peças exclusivas”, afirma. É uma selecção que não é feita pelo mestre.
Naturalmente a carteira de clientes fiéis, faz-se através do “passa a palavra”. Não se queixa de falta de trabalho. “Fui-me adaptando aos tempos, mas não tenho uma presença forte na Internet. A verdade é que não preciso de publicidade”, diz. “Também não quero tornar a minha obra corriqueira. Quero manter a exclusividade”, sublinha.
O que mais gosta é de fazer fraques e tem orgulho nos forros que usa nos casacos: “Estão escondidos, mas é o que dá a alegria a um fato”. Depois da obra feita dá-lhe “um certo gozo” ver as peças serem usadas nalgumas cerimónias públicas. Porém, é só uma questão de vaidade. “Sou vaidoso, mas não meto gasolina no carro nem pago o metro de tecido com a vaidade”, sublinha.
Antigamente havia uma cultura, um quase "ritual" de ir ao alfaiate, contam. Por isso, o contacto com o cliente é quase tão importante como a perícia do corte e cose. Iam para serem vistos ou para verem pessoas. Criavam-se amizades, conhecimentos, até negócios na sala de espera do alfaiate.
“Lembro-me de ter uma sala às vezes com dois, três, clientes à espera para provar. Antes até havia clientes que perguntavam quando é que o administrador de tal banco ou o político x ia provar o fato para terem a oportunidade de se encontrarem com eles”, conta Fernando Silva, o gerente da J. Gomes dos Santos.
O recato do gabinete de prova permitia que fosse como "um confessionário", diz João Ribeiro. Até quando os clientes iam provar os fatos com as amantes.
"Não era de bom tom vestir bem"
Como diz Saldanha, o 25 de Abril foi “um problema” para o negócio, corrobora João Ribeiro, 68 anos, da Alfaiataria Piccadilly, em Lisboa. “N alfaiates desapareceram nessa altura. Não era de bom tom vestir bem”, diz o alfaiate que tirava as medidas a Mário Soares enquanto esteve na Presidência. Os que podiam pagar saíram do país.
Algumas casas trataram de se reinventar e tiveram o “bom senso” de começar a vender pronto-a-vestir. Foi o que aconteceu na alfaiataria onde trabalhava praticamente desde que foi morar para a capital com 15 anos, depois de ter aprendido “o ABC” da arte com o tio, aos 11 anos, quando saiu da escola, em terras alentejanas de Avis.
Nessa altura estava sozinho em Lisboa, apeteceu-lhe desistir, mas resistiu. Trabalhou na mesma casa durante 29 anos. Pelo meio, não escapou à guerra. Foi para Angola, regressou à mesma casa até sair para pegar na Loureiro & Nogueira, na rua de Santa Justa, onde ficou até comprar a histórica Piccadilly há seis anos. O edifício da rua Garret foi vendido, mas manteve-se nas oficinas, onde trabalha hoje entre manequins vestidos com casacos, calças, sobretudos à espera que os donos os venham provar.
Com a transferência de muitos alfaiates para fábricas, perde-se “uma escola de alfaiataria”. “Nós começamos a aprender tudo. A pessoa da fábrica não sabe fazer nada”, diz Manuel Cadete, 70 anos, há 45 anos alfaiate da J. Gomes dos Santos, casa que se instalou em Lisboa, em 1926, na Praça dos Restauradores, e que já vestiu o rei de Espanha Juan Carlos, o príncipe Rainier do Mónaco, primeiros-ministros e presidentes da República dos PALOP e do Brasil. António de Oliveira Salazar também foi cliente. Há dois anos passou para rua Conde do Redondo por causa do aumento das rendas. Menos visível, a casa voltou a dedicar-se quase em exclusivo à alfaiataria, depois de no pós 25 de Abril ter apostado no pronto-a-vestir para conseguir sobreviver. Tal como os colegas de ofício, começou cedo a aprender arte, logo quando saiu da escola. Tem um irmão que lhe seguiu os passos. Agora, lamenta, há cada vez menos mestres para ensinar.
Não há bons alfaiates sem boas costureiras
Já costuraram para mulheres, mas preferem as medidas do homem já que as senhoras têm “medidas diferentes” que obrigam a mais cortes. Além disso, é preciso ter cuidado onde se toca, diz Joaquim Barbosa. “E são as mulheres e as filhas dos meus clientes e eu tenho muito respeito”.
Mal tinha aberto casa ali na Infante Santo teve o desafio de vestir as enfermeiras da Cruz Vermelha por ocasião do centenário da instituição. “Um tailleur com uma saia cinzenta, com um macho atrás. Foi uma barafunda. Trabalhamos aqui dia e noite”, recorda o alfaiate.
Hoje, longe do fulgor de outros tempos, ainda se atende alguns clientes mais antigos. Na oficina de Joaquim chegaram a trabalhar 28 pessoas. Hoje, trabalha o alfaiate e mais duas costureiras, uma que o acompanha há 53 anos. “Tem umas mãos”, exclama.
Antigamente “era tudo feito à mão, só com uma máquina de coser a direito, com ferros a carvão”. Hoje há máquinas para ajudar, mas o processo continua manual. Afinal, não há bons alfaiates sem boas costureiras. A falta delas é que é mesmo “o grande mal”, aponta João Ribeiro. Consigo tem a trabalhar três costureiras especializadas. Duas estão reformadas – algo comum noutras alfaiatarias - e trabalham o dia inteiro sentadas num banco e curvadas a pontear. “Vai mesmo acabar. E nem lhe dou dez anos”, vaticina.
Falta formação adequada
Antigamente era vergonha ser-se alfaiate. Era um trabalho mal pago e mal visto. “Dizia-se na minha terra que sapateiros e alfaiates eram a última carta do baralho”, diz Joaquim Barbosa. João Ribeiro recorda que se dizia que ia para alfaiate quem era coxo. Ri-se. Não é o seu caso, mas reconhece que era uma profissão “desprezada”. Hoje é um luxo porque é também cada vez mais rara.
Para Vítor Gonçalves, alfaiate há 48 anos, há lacunas para corrigir no âmbito da formação. Terceira geração de uma família de alfaiates considera fundamental formar novos profissionais. “Da mesma forma que existe formação para carpinteiros por que motivo não existe também para alfaiates?”, questiona. “Estão à espera que os antigos morram?”, lança outra pergunta.
Com 59 anos, começou a dar os primeiros passos com 10, 11 anos. Era um “menino rebelde” que foi sendo puxado pelo pai para o ateliê que existia ao lado do sítio onde tem o que actualmente mantém aberto, no 36 da Rua Galerias de Paris, no Porto. Na mesma rua existiam quatro. Hoje só lá está o de Vítor Gonçalves, que apesar de filho de alfaiate foi com outros mestres da mesma geração do pai que foi aprimorando a arte.
Na impossibilidade de se poder passar os conhecimentos às novas gerações da mesma forma que era feito quando começou, seria a sala de aula a melhor solução. “A escolaridade obrigatória termina mais tarde, e ainda bem, por isso já não é praticável seguir o mesmo processo de antigamente”, nota.
Já teve alguns estagiários no ateliê que acabam por condicionar o rendimento por não terem a formação adequada. Contudo, há quem tenha mostrado algum potencial. Fora de questão está contar com alguém que trabalhe a custo zero no processo de aprendizagem, algo que “por princípio” é contra.
Face às mudanças de paradigma na entrada para esta actividade que tinha os primeiros aprendizes a darem os primeiros passos nos ateliês numa idade muito jovem, seria responsabilidade dos centros de formação da especialidade substituir o trabalho anteriormente feito pelos mestres mais antigos. Contudo, a “pouca” oferta que existe, considera não responder às necessidades do mercado. “Não posso aceitar mais trabalho porque não tenho como dar resposta a novos pedidos. Há escassez de alfaiates e de costureiras. Das escolas não chegam preparados”, afirma, considerando que no mercado mais espaço há para novos alfaiates que sigam os métodos tradicionais.
João Ribeiro tem um aprendiz que é Engenheiro do Ambiente, com “trinta e tal anos” que lá aparece aos sábados. “Tem algum jeito, mas isto é difícil de aprender”. O ideal, aponta, é começar aos 16, 17 anos para ter tempo de se tornar num bom profissional.
E não é que não existam profissionais mais recentes que façam fatos por medida, mas “são executados a partir de um molde com recurso a maquinaria avançada”. Tradicionalmente, o processo tem que ser artesanal: “Não há um corpo igual ao outro. As fábricas nunca vão conseguir resolver a questão das proporções”.
Actualmente, na cidade, diz não existirem mais do que uma dezena de profissionais que obedeçam a essas regras. O mesmo acontece em Lisboa. De cabeça lembra-se de Augusto Saldanha e do irmão António Saldanha, Carlos Sousa que trabalha na Boavista, António Fonseca, na rua de São Brás, e mais recentemente, de Ayres Gonçalo, neto de Ayres Carneiro da Silva, a “sumidade” por trás da extinta Ayres Alta Costura, na Gonçalo Cristóvão. Há ainda o Atelier des Créateurs, na rua José Falcão.
Na Modatex – Centro de Formação Profissional da Indústria Têxtil, Vestuário, Confecção e Lanifícios, com sede no Porto e com delegações por todo o país, há um curso específico de alfaiataria.
A formação mais recente realizada no Porto, de acordo com dados do centro, foi concluída por 35 formandos, sendo que a taxa de inserção profissional é de 60% à saída da formação. Em Lisboa, neste momento decorre uma formação modular composta por 30 formandos. “A pedido de empresas”, estão ainda a ser realizadas formações em alfaiataria nas próprias instalações de várias empresas, frequentadas em horário laboral por 25 formandos.
Diz a directora da Modatex, Sónia Pinto, que a formação é mais orientada para uma componente industrial. No entanto, diz, quem frequentar os cursos sairá com bases de alfaiataria tradicional. Num mercado, que diz ter potencial, apesar de uma procura ainda escassa de novos alunos, entende ser necessária a adaptação às exigências dos tempos que correm. Sendo que os empregadores passam sobretudo pelo sector industrial, é esse o foco dado pelo centro. Para Vítor Gonçalves não chega.
De avô para neto
Da nova geração de alfaiates tradicionais portuenses faz parte Ayres Gonçalves, com 36 anos. É neto de Ayres Carneiro da Silva, da antiga Ayres Alta Costura, que aos 88 anos já não exerce a profissão. Foi com o avô que aprendeu a apaixonar-se pela arte da alfaiataria tradicional. “Andava no infantário duas ou três portas ao lado da loja do meu avô. A minha mãe trabalhava lá e funcionava quase como um ponto de encontro da família. Era para lá que ia quando saía do infantário”, recorda. É nessa altura que começa a criar uma relação com “os trapos”.
Desde cedo acompanhava o avô nas provas e nas visitas aos clientes. Começa a ajudá-lo depois das aulas e aos fins-de-semana, altura que Ayres da Silva escolhia para fazer os cortes, quando havia mais “paz e silêncio”. “Não podia sequer falar com ele porque é uma fase que exige muita concentração”, conta. Aí já sentia que esta podia ser a via a seguir no futuro.
Aprendeu “à moda antiga” com o avô. Ainda “pequeno” já fazia alguns cortes e cosia. Aos 18 anos, completamente decidido relativamente ao caminho que iria seguir decide “fugir” de um “ambiente protegido” para deixar de ser “o neto do patrão” e viaja para conhecer a alfaiataria internacional e para se especializar.
Em Portugal não havia cursos “à excepção de um em Lisboa que estava a terminar” e por isso segue para Espanha para aprender com Pedro Muñoz, “o maior alfaiate de Madrid”. Acabado o curso, com 23 anos, tem a oportunidade para se mudar para Londres para trabalhar em Savile Row, a “meca dos alfaiates”. “Durante meses andei a sonhar. Não queria acreditar que estava ali a trabalhar”, diz. Lá, chegou a fazer um fato para o príncipe Carlos.
Passa ainda por Nova Iorque e regressa ao Porto em 2011 por uma questão afectiva e por “num mercado global e cada vez mais próximo” ser possível trabalhar para o mundo inteiro a partir de “qualquer lado”. É nesse ano que abre o ateliê no 22 da Praça Dona Filipa de Lencastre. Tem outro em Lisboa.
Regressa numa altura em que a alfaiataria está em “declínio”, para em anos seguintes assistir a um período de ressurgimento, mas de uma “alfaiataria industrial”, que diz não considerar como tal. “A alfaiataria é artesanal”, sublinha. Diz que no Porto e em Portugal é dos poucos da nova geração de alfaiates a trabalhar de acordo com o método tradicional. À imagem do que foi dito pelos outros alfaiates com quem falamos, diz-nos existir espaço para mais profissionais, que só não existem “porque não há formação”. “Há clientela, mas não há oferta. Este é um emprego com taxa de desemprego zero”, sublinha.
Actualmente, 80% dos clientes são internacionais. Outra parte representativa de clientes são familiares, “alguns netos”, de clientes do avô. No mesmo dia, passou no ateliê de Ayres Gonçalo um neto de um cliente de Ayres da Silva.
O alfaiate mais antigo do Porto
Ayres da Silva será o mais antigo alfaiate vivo do Porto. Já há muito que se reformou, mas um “alfaiate é alfaiate para vida toda”. É o próprio que nos diz. No dia em que fomos conhecer o ateliê do neto também lá estava. Passou por lá para ajudar o neto a “resolver um problema” com o fato de um cliente. Aos 88 anos recorda-nos os tempos áureos da alfaiataria portuense, antes das ruas da cidade se abrirem ao mercado internacional do pronto-a-vestir. Perguntamos se os homens se vestiam melhor dantes ou agora. Antes de abrir a boca, a expressão da cara deixa transparecer a resposta.
“Os homens agora não se sabem vestir”, assegura. Pelo menos a maior parte.
Conta que muitas personalidades conhecidas foram vestidas por ele. Recorda José Maria Pedroto, antigo treinador do Futebol Clube do Porto e diz ter feito o “último fato de Salazar”. No balcão do neto está uma tesoura que pertence a um conjunto que comprou a um alfaiate mais antigo do que o próprio e que agora pertencem a Ayres Gonçalo. “Esta tesoura já cortou tecidos para fazer fatos para o Rei D. Carlos”.
E preços? Alfaiate que se preza não os revela. No entanto, na Piccadilly e na J. Gomes dos Santos, um fato custa, no mínimo, 1500 euros, mas pode ir aos milhares. Mas são fatos que, se bem estimados, duram uma vida, diz João Ribeiro.