A delirante telenovela da Mala Voadora a caminho do fim
A Mala Voadora instala-se na Amazónia. Em estreia no Teatro São Luiz, de 9 a 19 de Novembro, uma telenovela vanguardista perde o controlo e assume o falhanço na tentativa de mudar o mundo.
Moçambique terminava com um falhanço. O grande projecto de uma exploração de concentrado de tomate no continente africano tombava sob o peso das expectativas e do sonho de influenciar a vida de um país a construir-se no pós-independência. Não que houvesse, mesmo nos limites e no jogo da ficção, a ilusão de que um indivíduo poderia obrar uma transformação de fundo na História. Mas Moçambique terminava com essa interrogação se, afinal, aquela negociação de uma narrativa que os actores empreendiam durante hora e meia poderia contentar-se com um desfecho que se resumisse a sete tipos de papo para o ar, a tomar banhos de sol, a beber cerveja e a comer marisco numa ilha paradisíaca. Era o final feliz que os sete negociavam em palco, não por ser essa a sua verdadeira missão, mas por ser para aí que os conduzia a desilusão com o seu ínfimo papel na capacidade de influenciar a ordem social, política e financeira de um país.
Amazónia aprendeu com Moçambique. E, portanto, assume desde logo o falhanço como ponto de partida. Neste cenário de pinheiros de plástico, em que “um grupo de artistas de vanguarda, com o apoio da Fundação Cartier, foi para a selva fazer uma telenovela ecológica”, já ninguém se propõe mudar o curso da História nem almeja mudar o mundo. Amazónia, em cena no âmbito da Capital Ibero-Americana de Cultura no Teatro São Luiz, Lisboa, de 9 a 19 de Novembro – 24 e 25 no Theatro Circo (Braga), Janeiro no Rivoli (Porto) e Outubro no Cine-Teatro Louletano (Loulé) –, foi pensada, num primeiro momento, como possível continuação ficcional para o desfecho de Moçambique, mas logo se sobrepôs a ideia de trabalhar a temática da ecologia, mormente quando Jorge Andrade começou a questionar-se de que forma podia fazer do espectáculo uma obra de reciclagem. E juntamente com José Capela e o elenco (o mesmo da mais recente apresentação de Moçambique) começaram a ver espectáculos com o propósito de os roubar.
Depois, no primeiro mês e meio de trabalho em conjunto, dedicaram-se à leitura e à visualização de livros e filmes sobre a Amazónia e sobre a questão do direito à terra das comunidades índias, sempre com a ideia de que, desta vez, não havia final feliz possível. Jorge Andrade cita um autor importante neste processo de pesquisa, Timothy Morton, quando este diz que “we all know that we are screwed, so let’s not spend the rest of our lives in this planet telling how screwed we are” [sabemos que estamos lixados, não passemos então o resto das nossas vidas neste planeta a dizer o quão lixados estamos] – uma frase que o texto delega no pai da família, instalada à mesa de pequeno-almoço, a cena central da telenovela a que assistimos no palco.
“Aquilo que procurámos era que em nós artistas, animistas ou quem quer que seja, houvesse algum desencanto e alguma confusão”, diz o autor e encenador. “Ou que não se vislumbrasse uma possibilidade que não a da ironia para lidar com esta ideia de nos vermos a aproximar de um fim ou de uma destruição. Aquela coisa de estarmos à procura do criminoso, sendo nós o detective, e depois descobrirmos que o criminoso é o próprio detective.” A adopção de um impulso ecológico não implica, no entanto, a construção de um espectáculo panfletário ou moralista, uma doutrinação em palco sobre comportamentos bons e responsáveis. Apesar de uma listagem cada vez mais exaustiva de empresas e organizações com interesses na Amazónia ser explicitado, o tom é progressivamente mais descontrolado, rejeitando qualquer didactismo ou pedagogia em favor de uma saturação tal do desvario que tudo se adensa num carrossel burlesco.
“É um espectáculo”, como defende o cenógrafo José Capela, “sem boas intenções. Aqui ninguém é bem-intencionado; o escape e a redenção estão mais numa perda de lógica, no abandono da lógica do que em qualquer tipo de boa intenção.” A haver qualquer vislumbre de consciência, estará numa aproximação (ficcional) a um (real) movimento voluntário para a extinção da humanidade, cuja solução para evitar o desastre planetário passa por a humanidade se retirar da equação da vida na Terra.
Num delírio cada vez mais excessivo e em que cada novo episódio da telenovela recomeça a cena de pequeno-almoço familiar, a narrativa de Amazónia coloca esta gente caída de pára-quedas na floresta a debater a captação de investidores para uma região habitada ainda por índios e a procurar formas de ludibriar os primeiros para não perceber o “problema” que constituem os segundos. O tom de delírio e de imersão surreal, enquanto resposta artística à questão – uma resposta em que a Mala Voadora faz mais uso da invenção e do que da crítica social e política –, decorre também da memória do romance de Mario Vargas Llosa, A Tia Júlia e o Escrevedor, livro em que um autor que se dedica à escrita simultânea de quatro radionovelas começa a baralhar os argumentos. Mas a telenovela, aqui, é sobretudo um meio para atingir um certo efeito de ridículo e surge como potenciadora do andamento hipnótico e delirante a que Amazónia se entrega.
Lidar com o inimigo
Começa tudo com uma família sentada à mesa. A matriarca ocupa o seu lugar, recebe a filha e o genro, os netos, dá ordens ao mordomo local para um pequeno-almoço com “qualquer coisa típica”. Há beijinhos de bons dias, raspanetes da avó, os mais novos são avisados de que “é tudo muito bonito” mas da janela, não devem aventurar-se pelo mato, a rapariga queixa-se que dormiu mal por causa do ruído produzido pelos ramos das árvores. Se assim foi, pois que se cortem os ramos. Começa por aquilo a que José Capela chama “uma sucessão de teatro quase realista, que podia ter cem anos”. Só que a cena há-de repetir-se durante toda a peça, em círculos cada vez mais alargados, perdendo aderência à realidade e aproximando-se do espectador – ser-lhe-á explicado, às tantas, que por razões ecológicas o cenário é proveniente de uma anterior peça de Cláudia Gaiolas, The Hunting Scene, o jogo de luzes de Rui Monteiro é recuperado da peça O Nome da Rosa, de Pedro Penim, e algumas das frases que ouviremos das bocas dos actores são colhidas directamente de outra fonte. E também as relações familiares hão-de começar a distorcer-se e a natureza a reclamar uma outra vida.
À medida que se torna mais insustentável e desadequada a presença da família naquele cenário – “Uma pessoa sufoca aqui com tanto verde, parece que ficamos malucos”, diz Tânia, filha da matriarca; “Isto não faz nada bem à saúde, temos de começar a deitar abaixo esta floresta” –, cada novo episódio traz mais uma chusma de patrocinadores. Aos poucos, sem que a família se adentre no mato, assumindo-se sempre como estranha àquele espaço, a ingerência exterior vai-se tornando mais gritante e, fintando as lições morais graças a um absurdo que impede qualquer seriedade de discurso numa primeira camada, vinca o quanto mãos que nunca se sujaram naquela terra ditam de longe o seu destino.
Não é por acaso, de resto, que se ouvem alusões cinematográficas a A Desaparecida, de John Ford, ou a Fitzcarraldo, de Werner Herzog. Aquilo a que acedemos em Amazónia é sempre esse olhar mediado, a impossibilidade de ser o outro. Se em Moçambique a história pessoal de Jorge Andrade e a recolha de imagens reais do arquivo da televisão estatal no pós-independência colocava sempre a ficção como um possível caminho paralelo, em Amazónia, muito simbolicamente, na visita que Jorge Andrade fez ao centro de documentação do Museu da Borracha, após telefonemas e marcações, deu com a porta fechada. E conseguindo finalmente o acesso, a frágil condição dos jornais do arquivo, no esquecido estado brasileiro de Acre, levava a que as páginas se fossem desfazendo nas suas mãos enquanto as folheava. Como se aquela História, não lhe pertencendo, não se deixasse agarrar.
É por isso que se fala de um espectáculo que parte de uma demissão de qualquer intento de mudar o estado das coisas. O que implica também uma noção, profundamente política, de não estar no centro. Capela lembra que “há uma maneira de lidar com o inimigo que é levar a sua própria lógica até a um limite para demonstrar aonde o caminho do inimigo conduz”. “Acho que este espectáculo tem alguma coisa disso, porque é de uma crueldade enorme em tudo o que tem que ver com a relação colonialista com o outro – e aqui não é evitada, pelo contrário, é muito exacerbada.” Até mesmo os actores da telenovela se vestem de preto lembrando que aquele é o traje oficial dos maus da fita.
Aqui o colonialismo é de gabinete, capitalista, acompanhado em live streaming, numa telenovela em que o product placement é recorrente. Em Amazónia, os actores não dominam a narrativa, não sabem para onde correm, estão agarrados a uma vanguarda estéril, em colisão com uma reciclagem teatral que apenas acentua a falência de soluções. A família presa dentro de uma telenovela pouco pode, afinal, perante as corporações que ditam os seus destinos. Destinos ficcionais, claro, que nada em Amazónia é, de facto, real.