A ciência está de regresso à villa romana de Pisões
Desde o início do ano que investigadores da Universidade de Évora têm feito trabalhos de campo na villa romana de Pisões, perto de Beja. Perceber o que está no subsolo ou estudar as argamassas são alguns dos estudos no sítio, que já pode ser visitado.
Num sítio arqueológico há sempre pistas por desvendar. E na villa romana de Pisões, a poucos quilómetros de Beja, há um pormenor que a diferencia de muitas outras villas na Península Ibérica: numa inscrição consagrada à deusa romana da saúde Salus, está um nome que talvez seja o da família proprietária do sítio no século I d.C.: Caius Atilius Cordus. Mais indícios foram encontrados nesta residência em meio rural nos anos 60 e 70, mas o tempo foi passando e houve apenas algumas intervenções. Nunca se investiu a sério na investigação científica e há ainda muito por descobrir. Esta villa está agora na posse da Universidade de Évora (UE) e, desde o início do ano, está a ser posto em prática um plano de acção. Trabalhos para se perceber o que há no subsolo, entender melhor o que está à vista e a limpeza do sítio são alguns exemplos do que se está a fazer nesta residência senhorial romana. Quem a quiser visitar também já o pode fazer.
Algures a dez quilómetros a sul de Beja, mais exactamente na herdade de Almocreva, encontra-se a villa romana de Pisões. Todo o campo arqueológico tem cerca de seis hectares. As ruínas da villa, que tem elementos do século I d.C. até à época visigótica, ocupam mais de 5000 metros quadrados.
Foi aqui que nos anos 60, de forma acidental, o proprietário agrícola dessas terras, José Joaquim Fernandes, deu com ela. “Ao proceder a trabalhos de lavoura estival profunda deparou com algo que se opunha firmemente ao avanço normal da charrua. Utilizando potente tractor, com pá frontal e subsolador, pôs à luz do dia, não as rochas que supunha mas três enormes pesos de lagar com a sua tradicional forma tronco-cónica e os entalhes respectivos”, lê-se no livro Villa Romana de Pisões (1972), de Fernando Nunes Ribeiro.
Foi este erudito e arqueólogo amador de Beja que o lavrador avisou das suas descobertas. “Tendo o Sr. José Fernandes tido a gentileza de nos comunicar o achado, ali nos deslocámos e na impossibilidade de realizar a investigação que o caso requeria, pedimos que conservasse todas as pedras que mostrassem trabalho humano e o tractor retirasse”, escrevia Nunes Ribeiro. Foram-se acumulando pesos de lagar, um pequeno capitel ou um fuste de coluna. Mas em 1967 tudo mudou: o tractor meteu a descoberto um fragmento de mosaico.
Em Villa Romana de Pisões, o arqueólogo amador refere que, a partir daí, se iniciaram trabalhos preliminares de sondagens que “se revelaram férteis como se antevia”, com uma contribuição monetária da proprietária Carolina Almodôvar Fernandes (o anterior proprietário já tinha morrido e também foi ela que concedeu autorizações para o início das escavações) e de um “particular interessado”. Esses trabalhos permitiram uma escavação parcial da residência senhorial e a descrição de 48 divisões em torno de um peristilo de quatro colunas. Nas várias salas de diferentes dimensões foram encontrados objectos como pedaços de chumbo, fragmentos de lucernas, alfinetes de osso e até mesmo um brinco e anel de bronze. A fachada (virada a sul) teria ainda um espelho de água, um dos maiores da Península Ibérica neste tipo de residências. Também se descobriram termas que têm várias salas com placas de mármore. E ainda um conjunto de mosaicos com figuras de aves ou de peixes. Em Junho de 1970, o sítio tornou-se Imóvel de Interesse Público e em 1972 é então publicado o livro já referido.
“O pequeno livrinho é um dos melhores elementos que temos para conhecer o sítio”, diz-nos agora André Carneiro, especialista em arqueologia romana da UE. E que sítio é este? “É uma residência em meio rural, que tem dois tipos de finalidades: a agro-pecuária e a exploração económica do território envolvente; e a residência do seu proprietário, sendo que essa residência está dotada de um conjunto de espaços e elementos de requinte a nível decorativo e iconográfico, e até de uma certa monumentalidade, que permite que esse proprietário desfrute do seu tempo de ócio.” E acrescenta: “É dos exemplos mais bem conservados em toda a Península Ibérica dos protótipos arquitectónicos itálicos. A villa romana de Pisões é uma das poucas que está numa zona de reserva arqueológica e que chegou até nós sem ser afectada nos últimos anos.”
Desvendar o subsolo
Depois de 1972, torna-se difícil reconstituir os trabalhos no sítio porque alguns deles não foram documentados, salienta André Carneiro. “Há trabalhos de escavação documentados entre 1978 e 1984, por exemplo, que não têm qualquer publicação ou divulgação de resultados.” A partir dos anos 80, o sítio teve intervenções de conservação e restauro de estruturas que estavam a ficar degradadas. Depois, como passou a integrar os Itinerários Arqueológicos do Alentejo e do Algarve do antigo Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar), teve mais alguns restauros. “Mas não voltaram a ser feitas escavações. O essencial é o que Fernando Nunes Ribeiro pôs à vista”, salienta André Carneiro.
Durante esses anos, foram os organismos da tutela da cultura (o Instituto Português do Património Cultural, o Ippar, o Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico e a Direcção Regional de Cultura do Alentejo – DRCALEN) que tiveram a responsabilidade da conservação, valorização, abertura ao público e de diversas intervenções, como a construção de um pequeno centro interpretativo e a vedação do sítio. “Durante vários anos, a questão da propriedade deste sítio arqueológico esteve pendente de definição devido a um diferendo, sendo a posse reclamada quer pelos anteriores proprietários quer pela UE, à qual tinha sido doado”, explica ao PÚBLICO Ana Paula Amendoeira, directora Regional de Cultura do Alentejo. “No final de 2012, a UE informou a DRCALEN que a situação estava finalmente esclarecida e que a universidade era a efectiva proprietária do sítio.” A UE tomou posse da “villa” em 2013 e no início de 2016 recebeu as chaves do recinto e teve acesso pleno ao sítio. A 24 de Agosto deste ano, foi assinado um acordo de protocolo de colaboração entre a UE, a DRCALEN e a Câmara Municipal de Beja, para que este património seja valorizado.
Voltemos ainda a 2016, a UE apresentou um plano de acção, que tem como director Bento Caldeira (geofísico) e como responsável científico André Carneiro. Este plano tem três frentes: a investigação, a valorização patrimonial e divulgação, assim como a formação. “Apesar de a villa de Pisões ter sido descoberta há 50 anos, é pouco conhecida do ponto de vista científico”, considera Bento Caldeira.
Como tal, dentro desse plano, prepara-se um campo experimental para o sítio. “É um campo onde se desenvolvem actividades de investigação e de valorização. Toda a dinâmica que queremos dar a Pisões vai passar-se no âmbito desse campo, que vai congregar investigação de muitas áreas disciplinares, desde a arqueologia, a geofísica, as arqueociências, a química ou a agricultura”, conta o geofísico.
Para se pôr em prática este plano, é preciso arranjar financiamento. Neste momento, há já um projecto na área da agricultura de precisão em que uma parte é dedicada à villa de Pisões (afinal está integrada numa herdade com agricultura). Foi aprovado pelo programa Interreg e desde Setembro que está a funcionar. “Geralmente, [aqui] as alfaias trabalham em locais onde há vestígios arqueológicos. Somos parceiros neste projecto para encontrar uma forma de utilizarmos os dados recolhidos pela agricultura de precisão com utilização na arqueologia”, explica Bento Caldeira.
Há também um projecto submetido na Fundação para a Ciência e a Tecnologia para se contratarem investigadores. A equipa quer ainda construir um centro de interpretação em Pisões com um laboratório, um espaço de exposições, de divulgação e um pequeno auditório. “Esse centro acolherá todas as áreas de investigação e toda a investigação que daí resultar será para interpretarmos aquele território”, diz ainda.
Termas em 3D
Desde Fevereiro que se têm feito trabalhos de geofísica no terreno. Para já, está-se a perceber quais são as melhores técnicas para estudar Pisões, para depois fazer um modelo global do que se esconde logo abaixo da superfície. “É para vermos o que se passa abaixo da superfície, aquilo que não é visível aos nossos olhos”, sublinha Bento Caldeira.
Através de métodos não invasivos, como o georradar e a tomografia eléctrica, procura-se assim desvendar o que são as “anomalias” detectadas no subsolo e uma das aplicações é a arqueologia. Por exemplo, algumas das anomalias detectadas poderão ser estruturas arqueológicas. Depois, só com escavações se poderá saber que material é esse. “Em princípio, não estão previstas [sondagens], nem nenhum trabalho de escavação arqueológica”, avisa André Carneiro. “A nível arqueológico, tencionamos fazer o registo completo e rigoroso de todas as estruturas que existem neste momento.”
Em Junho, houve também uma campanha de fotogrametria. Esta técnica usa fotografias tiradas em vários pontos e permite fazer reconstituições tridimensionais do sítio. Ainda numa fase experimental, há já resultados dessas fotografias. Um deles é uma imagem em 3D das termas, tanto do chão do edifício como do interior do hipocausto, o compartimento onde se aquecia os banhos.
Outro dos trabalhos foi o estudo das argamassas da villa romana, feito pelo Laboratório Hércules (da UE) e pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil. Analisaram-se as argamassas de pavimentos de mosaicos, de assentamentos, das estruturas de água e de reboco (incluindo das pinturas murais). Pretende-se conhecer as técnicas usadas pelos romanos e, usando esses conhecimentos, fazer intervenções futuras no sítio. “Os romanos tinham uma técnica de produção muito apurada”, considera António Candeias, director do Laboratório Hercules, salientando que a resistência das argamassas já dura há mais de dois mil anos.
Depois de trabalhos de limpeza no Verão, desde o final de Setembro que já é possível visitar o sítio. Para tal, terá de se contactar a UE (pelo telefone 266-740 875), seja para visitas de pequenos grupos (até três pessoas) ou para grupos maiores. Para as escolas, a universidade já está a preparar programas de visita consoante os vários anos de escolaridade. Quanto aos cientistas, vão continuar por lá a tentar seguir as pistas deixadas nesta desta villa romana em pleno Alentejo.