O desprezível Carrilho e o nosso silêncio
Se isto não são questões para serem debatidas em jornais de referência, então não sei para que servem os jornais de referência.
O primeiro processo intentado contra Manuel Maria Carrilho por violência doméstica terminou com a sua condenação a quatro anos e meio de prisão, com pena suspensa. Lamento a suspensão da pena, mas não está excluída a hipótese de o ex-ministro da Cultura ainda vir a ser preso: corre um segundo processo nos tribunais relativo a factos ocorridos durante o casamento com Bárbara Guimarães — este apenas julgou acontecimentos posteriores ao divórcio —, e se Carrilho for aí condenado (já tem duas condenações anteriores, por ameaça e difamação) é provável que o cúmulo jurídico ultrapasse os cinco anos, obrigando à aplicação automática de pena de prisão efectiva.
Aquilo que a Justiça deu como provado é uma galeria de horrores, que ultrapassa em muito os maus-tratos a Bárbara Guimarães. Além de “humilhar e maltratar” a ex-mulher, Carrilho manifestou “total indiferença pela integridade física e psicológica dos filhos”, utilizou-os para atacar a mãe, simulou agressões que nunca sofreu (daí também ter sido condenado por denúncia caluniosa), acusou falsamente Bárbara Guimarães de bater nas crianças, expôs a sua vida nos jornais e, sobretudo, manipulou os filhos, ao ponto de o mais velho — que está neste momento a viver com Carrilho — insultar violentamente a mãe e se ter transformado, segundo uma perícia psicológica ordenada pela juíza, numa criança “muito agressiva”, com “pouca empatia” e incapaz de “distinguir a verdade da opinião”. Reagindo à sentença à porta do tribunal, já depois de condenado, Manuel Maria Carrilho voltou a invocar os filhos e a lançar acusações à ex-mulher. Bárbara Guimarães optou, como sempre, pelo silêncio.
Se o caro leitor for daqueles que leu os dois parágrafos anteriores e pensou “por que é que eu estou a ler isto aqui, se sou leitor do PÚBLICO e não do Correio da Manhã”, fique a saber que foi exactamente para combater esse obtuso preconceito que escrevi este texto. A violência doméstica é um crime público. A violência doméstica não é um assunto da vida privada de um casal. E embora nós sintamos um pudor natural perante a exposição da intimidade de duas figuras públicas, estes são os casos em que não podemos virar a cara, fechar os olhos ou deixar de expor publicamente o quão desprezível tem sido o comportamento de Manuel Maria Carrilho ao longo de todo o processo, numa tentativa sistemática de destruir a ex-mulher, mesmo que para isso tenha também de destruir a vida dos seus dois filhos.
Carrilho é uma pessoa perturbada e perigosa, e as reflexões sobre a justiça não se podem limitar aos acórdãos delirantes do senhor Neto de Moura. Também aqui há muita matéria de reflexão, que eu não vejo ser feita pelos jornais — à excepção do i, onde destaco os excelentes textos de Ana Sá Lopes, e do Correio da Manhã, a notícia da condenação foi modestamente tratada em todo o lado —, ou sequer em plataformas activistas tão badaladas como as Capazes, na qual não encontrei qualquer texto sobre a sentença. E, no entanto, muito há a dizer sobre as práticas da justiça portuguesa nesta matéria, do número de penas suspensas em casos de violência doméstica, ao facto de a tutela dos filhos menores não ficar estabelecida no decorrer destes processos. Que sentido faz Carrilho continuar a ter a guarda do filho mais velho após uma sentença deste calibre? Nenhum. E se isto não são questões para serem debatidas em jornais de referência, então não sei para que servem os jornais de referência.