Combinei encontrar-me com a Ana Pérez-Quiroga (Lisboa, 1960) às 14h, mas estava longe de desconfiar que a minha visita ao seu atelier duraria até à meia-noite, com ida à Galeria Monumental e jantar incluídos. Quando saí da sua casa pensei que não iria saber o que escrever. Nunca tinha estado onze horas a conversar com uma pessoa que nunca tinha conhecido antes, sem sequer ter anotado uma única frase. Este texto é um desafio à minha memória.
Quando entrei no seu primeiro espaço, uma sala pequena e naquele momento atulhada, ainda não sabia que a Ana era uma pessoa muito metódica e organizada. Uma certa obsessão por espaços feitos à sua medida e esteticamente agradáveis apressou a justificação de que aquele local não costumava estar assim. Só tínhamos combinado encontrar-nos naquele sítio porque a Ana tinha trabalhos para arrumar. Com o passar do tempo vim a perceber que o seu atelier não se reduzia a um espaço e que aquele sítio era onde guardava alguns trabalhos e recebia pessoas. O que interessava era a conversa que estávamos a ter enquanto me ia mostrando cada objecto.
Não creio que alguma vez, durante estas horas, tenhamos chegado a um espaço particular de trabalho. A Ana usa a rua, o espaço habitado por toda a gente, os objectos manuseados por todos nós, para construir o seu corpo de trabalho. Não precisa de um espaço especificamente designado para concretizar as suas peças. O seu atelier é a combinação daquilo que vai pensando, da rua, do tempo e das pessoas com quem está, dos passeios e dos sítios onde manda executar as ideias que lhe surgem.
Escrever sobre este atelier é ir descrevendo quase gesto por gesto, conversa por conversa. À medida que o ambiente ia mudando, à medida que a Ana me ia mostrando determinado trabalho ou contando algum episódio da sua vida e eu ia retribuindo com as minhas próprias histórias, fui estando cada vez mais dentro do tom do seu trabalho.
A Ana conta com os outros para que o trabalho se concretize. Como a própria diz, é uma pessoa muitíssimo sociável; eu diria quase ubíqua. Mas quando lhe perguntei se não gostava de estar sozinha, respondeu-me que por vezes passava dias e dias sem falar com alguém.
Define-se como feminista e lésbica e afirma que os seus trabalhos falam para mulheres. As questões de género tomaram conta de grande parte da conversa — é um assunto que lhe é muito caro e é também sobre isto que fala o seu trabalho: sobre a sua condição de mulher feminista em conjunto com outras mulheres e também sobre o mundo se dividir, pelo menos ao primeiro relance, em dois géneros. Afirma que não há pessoas, há géneros e vontade de corresponder ao estereótipo ou não. Para viver no mundo onde vive é necessário que assuma uma atitude radical. O trabalho que faz, a forma como vê os objectos e os utiliza são consequência dessa condição de mulher, física e cultural, sob a qual nasceu.
Há uma energia vital nas palavras da Ana que é a mesma energia que habita os seus trabalhos. Se a tivesse visitado no dia anterior ou um mês depois, teríamos feito outro percurso, ter-nos-íamos expressado de forma diferente, mas creio que reconheceria este seu movimento interior. Há um vigor naquilo que diz, na seriedade educada com que se expressa que é facilmente reconhecível como sendo a desta pessoa particular. Conversar com a Ana é como estar dentro de um trabalho seu.
Saímos do primeiro espaço e fomos descendo até à Galeria Monumental, no Largo Mártires da Pátria, onde estava uma exposição da Alice Geirinhas para a qual a Ana contribuiu. Pelo caminho, num passo decidido e rápido que acompanhava a velocidade da conversa, eu ia reparando que a Ana estava impecavelmente vestida de seda. Mais tarde disse-me que desenhava e mandava confeccionar a sua roupa à medida com tecido que trazia da China, onde costuma ir todos os anos para trabalhar. O trabalho é a própria vida e é o que a faz deslocar-se também para o outro lado do mundo. As idas à China começaram com uma bolsa da Fundação Oriente numa altura em que estava a trabalhar sobre o país. Ganhou-a e desde então tem regressado com frequência.
Pelo caminho contou-me que está a iniciar o pós-doutoramento, mas foi do doutoramento recentemente defendido que mais conversámos. Entre outras coisas, o projecto consistiu na catalogação de todos os seus objectos (4888 até 12 de Julho de 2016), na exposição fotográfica online no seu site desses objectos, na possibilidade de se marcar um jantar-performance com a artista, cuja comida é confeccionada pela própria, e na transformação da sua casa em obra de arte, podendo ser arrendada por duas noites. Este Breviário do Quotidiano #8 pode ser visto aqui.
Cada passo está contaminado pela sensação de que a Ana não quer perder nada, quer estar absolutamente consciente de tudo. A sua parte racional foi muito enfatizada pela própria e é importante que mantenha a consciência alerta. Não foram raras as vezes em que reparou em pormenores que me passaram despercebidos mas que foram alvo da sua atenção. É verdadeiramente atenta e muito presente no sítio onde se encontra.
O seu Instagram é um dos seus trabalhos — é um auto-retrato da artista enquanto parte da sociedade. Um álbum com mais de vinte mil fotografias para o qual a Ana contribui diariamente com bastantes publicações. No caminho a pé que fizemos, parámos várias vezes para fotografar detalhes, objectos ou situações que lhe chamaram a atenção e que não deixou de comentar. A Ana não parou de fazer o que tinha planeado para conversar comigo: prosseguiu o seu dia incorporando nele a minha companhia, conversando sem nunca haver falta de assunto. De facto esta era a única forma que havia para visitar o seu atelier.
Depois da visita à galeria prosseguimos até sua casa, na Baixa. É o último andar de um pequeno prédio com madeira à vista que cheirava a caril. À porta do andar, a Ana tem uma placa dourada dizendo "Ana Pérez-Quiroga - Artista" que faz lembrar as entradas em consultórios médicos. Não me pareceu estranho, dado que conversámos bastante sobre a sua relação com a mãe, médica e uma das suas pessoas mais próximas. A influência dos pais sobre si, nomeadamente as constantes mudanças de casa a que se sujeitaram quando a Ana era criança, foi de tal modo determinante que hoje vai para onde lhe apetece sem estar presa a lado algum. Diria que só está presa à condição de artista, apesar de só ter começado a sê-lo depois dos 30 anos.
A sua casa é absolutamente o seu reflexo. As cores dos objectos e das paredes são indescritíveis e tudo parece estar no seu sítio. Sente-se que cada objecto foi pensado para onde está, não há outra forma de explicar. Mas tudo dá vontade de usar e vê-se que é uma casa vivida. Tal como a maior parte das casas de artistas que visitei, à nossa volta estavam trabalhos de outros artistas seus amigos ou de que gosta. A Ana não tem qualquer pudor em tirar os trabalhos da parede para me mostrar ou explicar alguma coisa — nada ali é estático e tudo pode ser feito de maneira diferente.
Não requereu ajuda para o jantar, a minha única função foi fazer companhia e continuar a conversar. Tal como havia intuído, a Ana vive "aqui e agora" e um reflexo disso foi quando me disse que nunca tem comida no frigorífico apesar de gostar muito de cozinhar. Compra sempre frescos, comida do dia, que cozinha no próprio dia. Durante a confecção do jantar baixei a guarda e a máquina fotográfica. Como disse a Ana, a comida desinibe tanto como o vinho. Foi com uma conjugação de ambos que terminámos a noite.