O capitalismo é mau, mas o comunismo “nem pensar”
A geração russa que nasceu depois do colapso soviético descrê da voracidade do capitalismo. Mas olha para o passado e fica quieta. Num país avesso à discussão, os jovens são uma força política ainda sonolenta – apesar de Aleksei Navalni ou das Pussy Riot. Há heranças que demoram tempo a demolir.
Depois de mais de duas horas de conversa em inglês e russo, umas fatias de bolo e café, doses imoderadas de memórias e aspirações, desabafos e perguntas sem resposta, Iana Dobrova deixa no ar um suspiro: “Foi bom pensar sobre estas coisas todas da Revolução”. Não é que esta jovem a rondar os 20 anos não tenha falado com os avós, com os pais ou com os colegas do curso de sociologia do assalto bolchevique ao Palácio de Inverno, sobre Lenine, a colectivização, o Gulag ou as glórias soviéticas na Grande Guerra. Depois de duas horas a invocar esse passado, porém, Iana e um grupo de cinco jovens universitários recordaram que há um passado do seu país que lhes causa estranheza e pavor. E um outro passado que lhes suscita enlevo e nostalgia. Talvez a Rússia ideal pudesse depurar os legados da Revolução de 1917 e usá-los como tempero para o presente. Iana e os seus colegas de turma cairam nos dilemas da discussão política.
Sim, “no tempo do socialismo o dinheiro não tinha o valor que tem hoje, não havia este sentido de oportunismo para ganhar a vida a qualquer custo, as relações entre as pessoas eram mais baseadas nos verdadeiros sentimentos humanos”, diz Aleksander, um jovem professor da universidade na disciplina de sociologia das organizações.
Voltado para a plateia em forma de quadrado, Aleksander insiste: “O que contava era o trabalho duro, uma posição boa numa empresa ou na estrutura do partido”. Agora, não. A Revolução foi feita com os belos ideais da Justiça social, mesmo que depois tenham falhado; agora não, o regime capitalista “incentiva o individualismo” e a competição entre as pessoas, sublinha. Antes, “havia um grande apoio do Governo às pessoas normais, como casas etc.”; agora não, o fosso na Rússia entre os mais pobres e os mais ricos é dos mais elevados dos países desenvolvidos.
“O que hoje é importante na nossa sociedade é o materialismo, é o dinheiro”, acrescenta o jovem professor. À sua frente, Anastasiya Ignatova oscila a cabeça em sinal de concordância. O dinheiro e a “injustiça que traz” estão, afinal, entre grandes problemas da Rússia moderna.
É a denúncia da corrupção e da oligarquia que tem estado na origem das acções de protesto lideradas por Aleksei Navalni, que em Março e em Outubro deste ano arrastaram dezenas de milhares de jovens e deram origem uma vaga de detenções que chegou ao próprio Navalni. Este activista serve-se das redes sociais para veicular mensagens de denúncia contra as contradições do Governo e está na origem de um súbito despertar de uma parte dos jovens russos para os problemas do país. “Graças a ele, nós temos mais informações para podermos pensar”, reconhece Iana. “Ele ajudou-nos a aprender a discutir política”, concorda Anastasiya Ivanova.
Depois, vem o outro lado da questão. Se antes havia valores solidários, uma sociedade supostamente sem desníveis sociais, previsibilidade e segurança, vale a pena pensar num regresso ao passado? “Nem pensar. Hoje temos muitas mais oportunidades e a mobilidade social é apesar de tudo maior”, diz Anastasiya.
Em relação ao modelo, não sobram dúvidas: o capitalismo russo é agressivo, propenso a oligopólios, distante de um Estado social com os níveis de protecção da generalidade da Europa Ocidental, mas não é por isso que aquele grupo de jovens se sente capaz de o trocar pelo modelo que vigorou na juventude dos seus pais. Todos, com excepção de Aleksander, consideram que o comunismo na Rússia (ou no Mundo) está confinado à memória e aos livros de História. O jovem professor é um pouco mais céptico.
Para os mais jovens, um factor que os impede de ter dúvidas está no domínio da liberdade. Mesmo que digam ser necessário “distinguir a revolução da organização social e política que lhe sucedeu”, como nota Anastasiya Schukina, para eles “a liberdade de escolher, de pensar ou de falar faz toda a diferença”, sublinha Alya Antonova. Por isso, na clássica opção entre Lenine e Estaline gera-se uma unanimidade: Lenine. “Para nós, Estaline foi um homem cruel. As purgas que fez e a repressão que matou ou mutilou tanta gente foram por vezes organizadas por razões sem importância nenhuma”, diz Anastasyia Schukina. Não que haja razões algumas para matar pessoas, nota a jovem. A sua afirmação serve apenas para mostrar o desdém que Estaline lhe suscita.
Ideias obsoletas
Nascidos depois da queda da URSS, os jovens da Rússia regressam assim ao passado com a distância com que se visita um museu de ideias obsoletas, pessoas detestadas e práticas políticas que muitos consideram inimagináveis. No dia-a-dia, porém, a era soviética está ainda perto de mais e obriga-os a abrir os baús da memória com mais cuidado. “Quando os filhos fazem asneiras ou cometem erros, os pais continuam a dizer: ‘devias viver no tempo do comunismo’. É uma forma de nos lembrarem dos tempos difíceis que viveram”, diz Alexander.
Como é evidente, esta receita é algo que um jovem português da mesma idade também conhece porque, como nota Iana, “para os nossos pais o comunismo corresponde aos anos felizes da sua infância ou juventude”. Não é que os pais, dizem os cinco jovens em uníssono, acreditem que antes a vida era melhor: o que está em causa é uma certa nostalgia por um tempo perdido.
Quando frequentaram a escola primária e o segundo ciclo, ou seja, até aos dez ou 12 anos, os jovens que estão hoje na universidade tiveram diferentes experiências nos seus primeiros contactos com as memórias da Revolução e da era Soviética. Depois de uma leitura amarga sobre o período entre 1917 e 1991 estabelecida na era de Ieltsin, o primeiro Governo de Vladimir Putin tentou reequilibrar as visões negativas do leninismo ou do estalinismo recorrendo apenas ao enunciado alegadamente frio dos factos. “Nos nossos livros só havia factos e havia professores que se limitavam a citá-los. Mas essa maneira de ensinar a História variava de escola para escola. Havia também professores que se preocupavam em ir para lá do que vinha no livro”, diz Iana. Aí, os mesmos factos apresentavam valores diferentes.
Sobre a Revolução, aquele grupo de jovens foi capaz de reter os tais factos. A luta contra o regime vinha em crescendo desde 1915, dizem. Lenine, ao contrário do que se dizia na era soviética, não esteve no princípio da revolução (a explosão nas ruas de Petrogrado iniciou-se a 23 de Fevereiro e Lenine só chegou do seu exílio na Suíça em Abril). Depois, todos são capazes de fazer leituras pessoais sobre os factos que memorizaram. Ou seja, de lhes emprestar uma leitura política ou ideológica. “O czar Nicolau II já sabia que a Revolução estava para vir e quando abdicou (em Março de 1917) estava apenas a aceitar o destino”, diz Alya Antonova. Sabem também que no espírito original da Revolução havia um sentido de justiça e a denúncia de um regime tirânico que acabaria por gerar um novo regime igualmente tirânico e injusto.
Quando Vladimir Iliyich Ulianov, mais conhecido por Lenine, arriscou a sorte dos bolchevistas e ordenou o assalto ao poder em Petrogrado tinha já entrado nos seus 47 anos. Mais novo, o seu fervoroso companheiro Leon Trostky celebrou os seus 38 anos no preciso dia em que as “massas” lideradas pela vanguarda do partido tomaram de assalto o Palácio de Inverno. A Grande Revolução Russa de 1917 não foi liderada por jovens, mas foram os jovens soldados e operários que lhe deram consistência e assumiram o controlo das ruas. No caos de Petrogrado viam-se “multidões de todas as idades e condições” desde que a insurreição começou em Fevereiro, de acordo com um relato do jornal britânico The Times. Mas muitos dos grevistas, agitadores e activistas integravam a enorme mole de camponeses jovens desesperados que a pobreza e a economia de guerra tinham levado para a indústria militar ou para os caminhos-de-ferro.
Não discutem política
Poderá esta reflexão sobre o passado confrontar os jovens com as suas responsabilidades? A verdade é que “nós não vamos a encontros políticos nem costumamos discutir política”, reconhece Aleksander. Estudos de opinião indicam que esse alheamento é partilhado por dois em cada três jovens russos entre os 18 e os 22 anos. Nas eleições legislativas de 2016, só 30% dos eleitores mais jovens se empenharam em votar. Acções de protesto seguidas de repressão como as protagonizadas pelo grupo punk Pussy Riot em 2012 ou a onda de manifestações em dezenas de cidades russas mobilizadas por Aleksei Navalny são a expressão de uma vanguarda do activismo jovem que parece carecer de massas para se tornar uma ameaça para Vladimir Putin.
Porquê? Talvez as memórias da era soviética tenham aqui alguma importância. “Se falarmos com alguém sobre um político qualquer, as pessoas não querem falar, mudam de assunto”, nota Aleksander, de longe o membro mais politizado do grupo. Talvez o receio em falar abertamente, de discordar, ainda exista.
O contexto em que esta reunião entre o PÚBLICO e este grupo de jovens se realizou diz alguma coisa sobre esse receio. A reunião foi comunicada à direcção da universidade, que recomendou que se fizesse fora das instalações. Para evitar constrangimentos aos directores, foi ainda pedido que não se mencionasse o nome do estabelecimento. Inicialmente, os cinco alunos envolvidos tinham pensado em que se usasse o seu apelido apenas com a inicial. Depois concluíram que essa camuflagem não fazia sentido.
Durante aquelas duas horas, os cinco jovens, o jovem professor e a organizadora do encontro (Valentina Vassilievna, também professora da turma) tiveram a oportunidade de revisitar o passado da Rússia, identificar o que era bom e rejeitar o que consideram ser mau. Iana estava feliz porque talvez tenha dado conta que falar da Revolução pode não ser uma atitude tão distante da realidade do presente como inicialmente tinha suposto. Quanto mais não seja porque “ao contrário do que acontecia nos tempos soviéticos, hoje temos de saber pensar na política como uma coisa importante para o nosso futuro”.