Houve sonhos e pesadelos electrónicos no Semibreve de Braga

Na noite de sexta os espectáculos audiovisuais de Visible Cloaks e GAS prometiam novos mundos, mas no sábado Deathprod ou Fis vieram recordar-nos que o caos também adquire formas electrónicas. O festival Semibreve termina este domingo com o islandês Valgeir Sigurdsson.

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A dupla americana Visible Cloaks com as imagens gráficas da artista visual Brenna Murphy Adriano Ferreira Borges
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Visible Cloaks Adriano Ferreira Borges
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Com Wolfgang Voigt (GAS) atravessamos uma floresta labiríntica, ao ritmo do batimento cardíaco electrónico Adriano Ferreira Borges
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A compositora argentina Beatriz Ferreyra encheu o pequeno auditório do Theatro Circo Adriano Ferreira Borges
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A japonesa Kyoka no Gnration Adriano Ferreira Borges
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A magnífica Capela Imaculada do Seminário Menor encheu-se para ouvir o americano Steve Hauschildt Adriano Ferreira Borges

Arrojados, com qualidade, muitos deles fora dos grandes centros e capazes de oferecerem propostas únicas. Independentemente da identidade de cada um é hoje nítido que existe em Portugal um corpo de festivais consolidado com estas características. Alguns exemplos? O Out.Fest do Barreiro, o MadeiraDig da Madeira, o Jardins Efémeros de Viseu, o Amplifest do Porto ou o Semibreve de Braga. Podemos ir de olhos fechados a qualquer um destes eventos e sabemos que aquilo que nos é devolvido é aprofundado, terá propostas artísticas válidas, quer na relação com a memória da música, quer na atenção às movimentações actuais, e estará integrado numa dinâmica local mas com uma bitola de âmbito global.

A sétima edição do Semibreve, que começou na sexta-feira e termina este domingo, com espectáculos do australiano Lawrence English e do islandês Valgeir Sigurdsson, mais uma vez cumpriu com estes preceitos. Há muito público curioso, capaz de encher os espaços do Theatro Circo, do Gnration ou da Capela Imaculada do Seminário Menor, mas também gente que já foi crescendo com o festival e que despertou para as músicas electrónicas com ele, e outros agentes mais especializados, a maior parte deles provindos da Europa e não só, participando em oficinas ou conversas, todos em interacção com a envolvente humana e espacial da cidade.

Musicalmente, ou melhor, audiovisualmente, porque é nessa perspectiva que a maior parte dos espectáculos se insere, entre a ideia de concerto e a de instalação vídeo, se a noite de sexta foi de sonho ou de utopia, a de sábado foi de pesadelo, para abanar os sentidos. Curiosamente, apesar de estarmos a falar de projectos de ponta das electrónicas mais abstractas e experimentais, em quase todos eles existe uma relação com a natureza.

No caso da dupla americana Visible Cloaks essa relação é quase uma projecção idílica, como se som e imagens gráficas (trabalho notável da artista visual Brenna Murphy), participassem desse desejo de afirmação de um outro mundo. Um universo onde se vislumbram ainda sons, cores e aromas palpáveis que reconhecemos – muitos deles com ecos orientais – mas que acabam por criar um novo corpo alienígena, numa magnífica experiência sensorial de som e imagem, baseada no álbum Reassamblage, que o duo lançou este ano, e no mini-álbum Lex, a editar em Dezembro.

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Adriano Ferreira Borges

Se a electrónica dos americanos é frágil, a do alemão Wolfgang Voigt (co-fundador da editora Kompakt, histórico do tecno alemão e músico de várias identidades) quando assume a designação GAS é tão hipnótico quanto imponente. Aqui também existe natureza, com as imagens dispostas atrás do músico a fazerem-nos atravessar uma floresta labiríntica, ao ritmo do batimento cardíaco electrónico, com uma camada atmosférica por cima. Há dezassete anos que Voigt não gravava com a designação GAS, mas este ano resolveu lançar Narkopop, o excelente álbum que atribui sentido ao presente espectáculo. A música é densa, repetitiva, por camadas, revestida por ambientalismo, mas à superfície sente-se uma espécie de tecno em câmara-lenta. Ao vivo, na ligação com as imagens, o todo resulta imersivo, como se fôssemos convidados a mergulhar numa paisagem majestosa, com um rumor incessante a perseguir-nos, num ritual que é tão grandioso quanto introspectivo.

Na edição deste ano houve lugar no cartaz para algumas figuras fundadoras, entre elas a compositora argentina Beatriz Ferreyra, de 80 anos, que conquistou quem encheu o pequeno auditório do Theatro Circo para a ver a manipular sons (violinos, vozes, percussões) num sistema de difusão multicanal, numa espécie de viagem electro-acústica para sentir de olhos fechados, e também quem se dispôs a ouvi-la falar do seu longo trajecto, no sábado à tarde, nos jardins da Casa Rolão, no centro de Braga.  

Não muito distante do Theatro Circo situa-se o Gnration, que é para onde toda a gente conflui quando as actividades encerram no primeiro espaço. Ali sem se perder a visão exploratória da música electrónica, existe um sentido lúdico mais pronunciado nas propostas, por vezes até convidando à dança como aconteceu, na sexta, com a japonesa Kyoka e, principalmente, com a americana Karen Gwyer, ou no sábado com a sempre imprevisibilidade do libanês Rabih Beaini e os portugueses Sabre.

Mas nem só de lugares previsíveis vive o evento. O Mosteiro de Tibães ou a Capela Imaculada do Seminário Menor também fazem parte do roteiro do festival. No sábado, ao final da tarde, a magnífica capela, com as cadeiras dispostas de forma elíptica e uma arquitectura dominada por um conjunto de pilares altos de madeira fina, encheu-se para ouvir o americano Steve Hauschildt. De comum entre a oração e a música, o silêncio e essa ideia da digressão interior, que pode ter como indutor um som cósmico e ambiental servido por uma boa acústica e luz natural. Todos esses elementos estiveram presentes e foi assim que, ao longo de uma hora, cerca de 600 pessoas se abandonaram a um som electrónico expansivo que, como dizia alguém no final, parece ter efeitos curativos.

Na noite de sábado é que não houve lugar para tréguas. Se na noite anterior a natureza ainda prometia alguma harmonia, na música do neozelandês Oliver Peryman, ou seja Fis, do norueguês Helge Sten, ou seja Deathprod, e de Yair Elazar Glotman (Blessed Initiative), o que temos são vulcões que expelem lava, contorcendo-se, de forma aparentemente caótica. Claro que na música e nas imagens de Fis ainda se vislumbram delicadeza e tranquilidade, mas apenas por momentos, porque é na tormenta e na hostilidade que se congregam os mundos orgânico e digital.

Algo semelhante se poderia dizer de Deathprod, vagueando entre o ambientalismo e o ruído, com algumas orquestrações pelo meio, num som que consegue ser tão fascinante quanto sombrio, como o cenário sombreado onde se apresentou, quase sempre envolto em névoa. Por vezes o som era de tal forma dilacerante que parecia que as estruturas do Theatro Circo poderiam a qualquer momento ceder. Mas não. Continuam firmes, como o próprio festival, que haverá de regressar no próximo ano. 

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