Rapsody: a sabedoria da avó e o rap da neta
A etiqueta “rap feminino” é supérflua quando elas são tão boas ou melhores do que eles.
Quando uma rapper como Cardi B chega a n.º 1 do Top Hot 100 da Billboard e iguala a proeza só conseguida na história por uma outra senhora chamada Lauryn Hill, está tudo dito sobre o foco mediático e o protagonismo que, actualmente, o rap americano feito por mulheres recebe. Ou melhor, não está tudo dito, é importante trocar as entrelinhas pela afirmação de uma ideia clara: a pobreza confrangedora em que uma parte do rap americano (mais concretamente, o trap) está mergulhado estende-se ao consumo de rap feito por mulheres, e isso é por demais evidente quando um “legado” estatístico como o atrás referido passa, em 2017, de uma rapper como Hill (política, poética, profunda, sensível, mobilizadora) para uma como Cardi B, produto plástico, chiclete, vazio e inconsequente (como o são Nicki Minaj, Iggy Azalea e outras figuras sinistras que tais, autênticos avatares visuais das não menos sinistras irmãs Kardashian).
A responsabilidade é – importa dizê-lo claramente – de grande parte da imprensa especializada, cada vez mais voraz e acrítica na busca incessante de novos protagonistas. Se atrás dissemos que estava “tudo dito” relativamente ao “foco mediático” e ao “protagonismo” concedidos a artistas como Cardi B, e não quanto à qualidade propriamente dita do rap feito por mulheres, não foi por acaso; confundir as duas coisas seria passar um atestado de óbito a mulheres que, não gerando milhões de clicks na histeria das redes sociais, fazem rap de excelente nível, de tal forma que, só por pura ignorância (ou tique anacrónico, mesmo que involuntário), se possa continuar a falar, hoje, em “rap feminino” e “rap masculino” (infelizmente, como sabemos, em Portugal, a coisa ainda tem o seu quê de exótico, algo natural quando, para além de Capicua, o resto é paisagem).
Rapsody, que não é propriamente uma novata no panorama (vários EP e álbuns desde 2011), é um dos melhores exemplos disso (Akua Naru é outro), na medida em que o mérito da sua música faz com que a etiqueta “rap feminino” deixe de fazer sentido, porque supérflua. É, por isso, a partir daqui, desta ideia de um rap “pós-feminino” (diferente de “feminista”) – e por isso é que nunca a ouvimos a fazer ego trip centrada na sua condição de mulher “no meio de homens”, o que não invalida, lá está, que assuma posições feministas –, que a devemos olhar (a ela e a outras) sob a mesmíssima bitola que usamos para rappers (homens) reputados (como alguns dos que colaboram neste álbum, casos de Kendrick Lamar, Black Thought ou Busta Rhymes). Num álbum em que o produtor 9th Wonder é, como habitualmente nos seus trabalhos, o principal arquitecto sonoro, a coralidade é marca distintiva, sendo uma voz essencial, clássica, que inicia o disco, essa de Aretha que ouvimos samplada de Young, Gifted and Black, a qual desde logo imprime o cunho político, emancipador e afro-cêntrico transversal ao discurso de todo o álbum. Vozes “nos bastidores” como essa repetem-se, seja a de Lance Skiiwalker (um dos nomes mais brilhantes, se bem que ainda marginal, do rap americano geracionalmente recente, entretanto já assinado pela TDE, a editora de Lamar), a da actual coqueluche da música negra Anderson .
Paak (em Nobody e, sobretudo, no enorme dueto em OooWee), a de BJ The Chicago Kid, Heather Victoria, Terrace Martin ou Amber Navran (um dos maiores elogios a fazer-lhe é o de que tantas vezes a sua voz evoca a de Erykah Badu). Enfim, tudo convidados de bom gosto que ajudam a compor um trabalho globalmente sólido mas que nunca ofuscam aquilo que o ouvinte percebe quando a voz de Aretha se cala e a batida entra: o rap de voz segura, acutilante (por vezes quase bélica), de Rapsody, o sentido de comunicação e a dicção perfeitos, a personalidade no momento de exprimir ideias e convicções.
Aparente agressividade que sabe ceder nos momentos certos, travestindo-se de doçura, meiguice, sensualidade, tesão; mescla-síntese, afinal, de toda a música negra, sempre entre a atitude combativa e o romantismo incurável. Por essa razão é que, depois de momentos confrontacionais, introspectivos e reflexivos em que Rapsody dá uso à wisdom que lhe foi transmitida pela sua avó Laila (a do título do álbum), casos de Power, Black & Ugly ou Nobody (as fabulosas e omnipresentes teclas a erguerem um dos melhores momentos do álbum), a sua voz desliza, com o groove certo, para o funk de Pay Up, “Sassy” (com ginga de breakbeat) ou U Used 2 Love Me, para depois voltar a emprestar o flow assertivo às cordas de faroeste, com direito a patada na porta do saloon, que se ouvem em OooWee. Curiosamente, se Kendrick Lamar, como acontece em 99% dos casos em que é convidado para uma faixa, não abafa o protagonismo de Rapsody em “Power” (curiosamente, muitas das canções têm um “b-side”, como acontecia em DAMN.), é ao veterano Busta Rhymes que caberá esse papel no final de You Should Know – Let me get on my Barry White shit, diz antes de uma gargalhada, uma vez mais nos deixando a impressão de que nele se poderá ter perdido uma grande voz do jazz ou da soul.
Num álbum com composições sempre de elevado nível (a espaços brilhante), há que lamentar, contudo, o discurso por vezes demasiado auto-centrado, circular, “de batalha” (vulgo ego trip), que perde decididamente para o que de relevante se ouve à americana noutras canções, como é o caso de Jesus Coming (que joga ironicamente com o Time to go home que se ouve da voz samplada de Otis G. Johnson), momento altíssimo, elegíaco, que encerra o disco na maior das comoções. Lauryn Hill, Bahamadia, Jean Grae, mas também KRS-One ou Nas: por aqui, sim, o seu legado está mais do que assegurado.