Centenas protestam contra acórdão judicial: “Juiz machista não faz justiça”
Nesta sexta-feira 40 organizações da sociedade civil em Portugal entregaram ao Conselho Superior da Magistratura.
Mais de duas centenas de pessoas protestaram nesta sexta-feira no centro de Lisboa contra um acórdão do Tribunal de Relação do Porto que consideram machista e que desculpabiliza o crime de violência doméstica. No Porto, uma concentração feita na mesma altura e para o mesmo efeito terá reunido cerca de meio milhar de pessoas, em frente àquele mesmo tribunal.
“Machismo é crime” ou “Juiz machista não faz justiça” foram algumas das palavras de ordem ouvidas, em Lisboa. E embora uma das associações que convocaram a concentração não defendesse qualquer sanção contra o juiz, outra das palavras gritadas pelos foi “demissão”.
Em causa está um acórdão, datado de 11 de Outubro passado, no qual o juiz relator, Neto de Moura, faz censura moral a uma mulher de Felgueiras vítima de violência doméstica, minimizando a culpa do agressor pelo facto de a vítima ter cometido adultério.
Os manifestantes, entre eles deputados do Bloco de Esquerda, empunharam cartazes com palavras como “Contra a cobardia”, “No século XXI não queremos juízes do século XIX”, ou “Diga não à violência contra a mulher”.
No Porto, numa praça a poucos metros do Tribunal da Relação do Porto,o final de tarde reuniu homens e mulheres de todas as idades. Com cartazes, palavras de ordem e canções, mostraram o seu desagrado pelo acórdão.
O juiz invoca a Bíblia, o Código Penal de 1886 e até civilizações que punem ainda o adultério com pena de morte, para justificar a violência cometida contra a mulher em causa por parte do marido e do amante, que foram condenados a pena suspensa na primeira instância.
Segurando um cartaz em que se lia “o juiz é adúltero”, Jorge Milheiro exibiu a sua indignação, considerando, em declarações à Lusa, que “não é justo que o juiz tenha usado os termos que usou dirigidos a uma mulher que caiu numa cilada provocada pelo amante”.
Criticou também o recurso pelo juiz “ao código penal de 1886 que já está caduco há muitos anos” e, sobre a posição do Conselho Superior de Magistratura de avançar com um procedimento disciplinar considerou ser pouco.
“Não me parece boa ainda, eles estão a ver no que é que isto dá, mas a opinião pública é unânime em rejeitar o que o juiz fez e isso devia ser levado em consideração”, disse o cidadão de 72 anos para quem o Ministério Público “devia tomar uma posição sobre isto”.
Richard Zimmler, escritor norte-americano radicado no Porto juntou-se aos manifestantes, explicando que o fez para “mostrar solidariedade às vítimas de abusos, de violações, e para exigir um sistema de justiça que responda às necessidades e que defenda as pessoas mais frágeis vulneráveis”.
E sobre o acórdão, não poupou nas críticas: “o raciocínio do juiz é um bocado grotesco ao referir a Bíblia”, defendendo “uma separação total entre a religião e o Estado”.
“Temos o exemplo do “casamento” entre a religião e o governo, que se chamou a Inquisição portuguesa e que durou de 1536 até 1770”, recordou o escritor, considerando que apesar de não poder comentar decisão por não conhecera lei, já o raciocínio “foi caricato, grotesco e anacrónico”.
E prosseguiu: “a parte mais preocupante, para mim, é esta tentativa de legitimar a utilização de violência doméstica. O sistema de justiça que legitima a utilização de violência é um falso sistema de justiça”.
Para a jovem Luísa Barateiro o acórdão provocou-lhe surpresa e revolta, explicando que este “além do carácter machista viola vários direitos constitucionais desde a igualdade de género até à laicidade do Estado”.
“A posição deste juiz é antiquada, de um machismo medonho e é acima de tudo uma posição de quem não sabe desempenhar a função dele, uma pessoa que não consegue ser imparcial”, disse, antes de rematar o tema admitindo ser este “um caminho muito perigoso”.
Em nome da organização, a plataforma “Parar o machismo construir a igualdade” Patrícia Martins mostrou a “indignação feminista” pelo acórdão que foi lavrado no Tribunal da Relação do Porto em que um “colectivo de juízes fez julgamentos morais e de valores sobre o comportamento de uma mulher, pondo em causa um crime de violência doméstica”.
Em declarações à Lusa, uma das organizadoras, Patrícia Martins, disse que as pessoas estão “indignadas” e querem mostrar publicamente essa indignação, assim como querem “tomar a palavra contra um colectivo de juízes misógino que prejudica as mulheres vítimas de violência com os seus preconceitos”.
Nesta sexta-feira 40 organizações da sociedade civil em Portugal entregaram ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) uma petição colectiva. Nela consideram que o acórdão integra “passagens atentatórias” do Estado de Direito Democrático.
Na petição dirigida àquele órgão de gestão e disciplina dos juízes, as 29 organizações promotoras dos Direitos Humanos das Mulheres, apoiadas por 11 organizações de outros sectores da sociedade civil, lembram que o Estado de Direito Democrático está consagrado na Constituição e na lei, garantindo a igualdade entre cidadãos e cidadãs.
Os subscritores da petição solicitam ao Conselho Superior da Magistratura a tomada das medidas que considere “justas, proporcionais e eficazes” face ao dano público e notório “à imagem da justiça em Portugal” e à “confiança dos cidadãos e das cidadãs na independência e na imparcialidade dos tribunais” causado pelas palavras dos juízes.
O CSM tinha adiantado na terça-feira que iria analisar e dar resposta às participações e manifestações de desagrado recebidas contra o acórdão.