O maior elogio é ignorar a sua presença
O texto de Sopro foi construído para colocar no centro Cristina Vidal, ponto do Teatro Nacional. Uma nova “heroína” feminina para o teatro de Tiago Rodrigues.
Cristina Vidal fala sem que lhe oiçamos a voz. Mas diz-nos, por exemplo, como foi cativada para Sopro, para subir a um palco, à vista de todos, quando o maior elogio que se pode fazer ao seu trabalho é ignorar a sua presença. “A minha glória é ninguém saber que existo. Sou a única pessoa do teatro para quem receber cumprimentos do público é um fracasso”, revela através da escrita de Tiago Rodrigues e da voz de Beatriz Brás durante a peça que troca por completo as voltas à profissão a que se dedica há 39 anos – 25 dos quais no Teatro Nacional Dona Maria II.
Sopro começa por registar o primeiro encontro entre Cristina Vidal e Tiago Rodrigues, num café junto ao Dona Maria II, a fim de puxar o público para o início desta improvável subida ao palco de quem se dedica a uma profissão em vias de extinção, uma verdadeira raridade hoje em território europeu. Só depois dessa discussão prévia, hesitante ainda sobre o rumo a dar ao espectáculo, as viagens no tempo começam a tomar conta da peça, as memórias de Cristina a agitar-se e a ser recriadas como se, no espaço daquelas nove chávenas de café que leva a ser convencida a entrar em Sopro, a incerteza quanto ao desafio que lhe é proposta estivesse sempre a ser atravessada por algumas das mais fortes recordações que guarda deste seu ofício, em que divide a atenção entre o texto e o actor / a actriz em cena.
“Aceitei imediatamente, não foram necessários os nove cafés”, ri-se a ponto do Teatro Nacional após a estreia do espectáculo em Avignon. “Mais tarde arrependi-me várias vezes, porque achava que não ia conseguir fazer aquilo que o Tiago esperava de mim, porque achava que as expectativas dele iriam ficar goradas e tinha muito medo. Só que já tinha dito que sim, e a palavra para mim é a coisa mais importante. Não há contratos escritos que valham tanto quanto dizer sim.” Não poderia, de facto, ser de outra maneira. A palavra é a matéria de trabalho de Cristina Vidal e o seu valor é algo de inviolável.
Se Sopro assenta, numa primeira linha, na memória daquilo que aconteceu – mais ou menos transformado pela escrita –, há também algo de especialmente belo para Tiago Rodrigues na “memória do que não aconteceu”. “Este espectáculo é, de alguma forma, uma tentativa de completar algo que não aconteceu.” Tiago refere-se às falas que Cristina alegadamente nunca esqueceu (no caso de aceitarmos a veracidade da história), de uma actriz que não as conseguiu dizer em palco, num sintoma de um carregado drama pessoal, e que ficaram para sempre penduradas na vida da ponto, como uma peça fora do sítio, uma constante sensação de algo desarrumado e, até agora, impossível de corrigir.
Essa ideia, no entanto, lembra também o encenador daquilo que acontece no final dos espectáculos do Teatro Nacional, de uma imagem que o comove e a que assistiu em várias ocasiões, quando Cristina Vidal ou João Coelho (os dois pontos da casa) se dirigem aos actores para os “relembrar daquilo que não disseram, fazer-lhes a lista das coisas que não aconteceram naquela noite”. “Sempre achei que isso tinha uma força poética muito grande”, admite.
A deslocação de Cristina Vidal pelo palco, ‘pontando’ como habitualmente, mas à vista do público, e dirigindo cada marcação dos actores, faz com que a sua presença silenciosa, embora orbitando em torno dos outros, se torne algo de central em Sopro. Daí que Tiago Rodrigues se sinta tentado a colocar esta peça ao lado de outras como By Heart, Ifigénia (a sua reescrita do clássico de Eurípedes), Bovary ou Como Ela Morre (a partir de Anna Karénina, de Tolstoi) como um texto que elege uma figura feminina como “heroína”, como centro nevrálgico de toda a acção.
No emaranhado de factos e ficções, não é claro, nem importante, perceber o que é real ou o que é falso. Talvez muitos momentos sejam ambos, em simultâneo. O que é inequivocamente verdade é que uma mulher que nunca teve o menor desejo de estar em cena está de facto a pisar as tábuas do palco e a viver um acontecimento biográfico. Essa parte não é falsa. Está mesmo a acontecer à nossa frente.