Posso fumar um charro e conduzir? Tenha cuidado com a quantidade
A cannabis tem passado de substância ilícita a lícita com a legalização do consumo em alguns países e com o seu uso medicinal. A condução sob o seu efeito aumenta os acidentes de viação.
A legalização do consumo de cannabis em alguns estados norte-americanos e o seu crescente uso para fins medicinais colocou uma dúvida a quem se preocupa com os acidentes de viação. Qual é a percentagem de THC no sangue humano a partir da qual a substância activa da marijuana ou do haxixe diminui a destreza rodoviária? A resposta depende de Estado para Estado, até de continente para continente, mas polícias e especialistas coincidem num aspecto: A cannabis não é uma droga benigna, pois afecta a habilidade de conduzir.
A Doug Berneiss, professor universitário e especialista do Centro Canadiano de Abuso de Substâncias do Canadá (CCAS), coube antecipar o impacto da legalização, prevista apenas para Julho de 2018, na sinistralidade daquele país. Doug tem uma certeza e algumas dúvidas. “A legalização vai aumentar o risco de acidentes entre jovens e novos condutores; a cannabis que se consome hoje não é a mesma da década de 60; há uma variedade de produtos e alguns são mais potentes que no passado; e há uma linha estreita entre melhorar a segurança rodoviária e aumentar a repressão sobre o consumo de droga.”
Condutores pouco conscientes dos riscos
Amy Porath, directora do CCAS, explica as inquietações canadianas com mais detalhe: há uma tendência para considerar que a cannabis não interfere com a condução; que não faz qualquer mal; que estimula a concentração ou que é mais inofensiva que o álcool. Em suma, os condutores não estão muito conscientes dos riscos que correm quando a consomem.
Voltando ao início, qual é a quantidade de cannabis (marijuana na sua versão enquanto planta e haxixe na sua versão de resina) aceitável para conduzir? Como devem os polícias reagir? Doug e Amy, que têm até Julho para sugerir se o máximo de THC no sangue será de 5 ou de 50 nanogramas de THC por mililitro de sangue, foram dois dos participantes num painel sobre droga e condução que fez parte do Lisbon Addictions 2017.
A segunda conferência europeia sobre comportamentos aditivos, que terminou esta quinta-feira em Lisboa, organizada pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência e pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, desloca para a Lisboa preocupações com esta.
A antecipação canadiana vem na sequência da preocupação do outro lado da fronteira, em Estados como o Colorado e Washington que, entre outros, legalizaram o consumo de cannabis por referendo, com as suas implicações na segurança rodoviária. E não só. A legalização da cannabis no Colorado teve um impacto semelhante nos Estados Unidos da América ao que a legislação holandesa exerceu na Europa.
“Sejamos realistas”, é o que pede Gleen Davids, um polícia experiente do Departamento de Transportes do Colorado que trabalha exclusivamente com condutores sob influência de cannabis, ou, por outras palavras: “Consciência.”
É claro que ninguém quer permanecer demasiado tempo no interior de uma esquadra no Colorado ou em qualquer outra de um outro Estado, pelo que o ideal é “educar para a condução sem efeitos da droga”.
Aumento de acidentes
Gleen menciona dois factores inibidores para eventuais fumadores excessivos ao volante: o receio da prisão e a cobertura dos media com o objectivo de expor publicamente os prevaricadores. Quanto ao resto, sejamos realistas: a indústria da cannabis no Colorado representou cerca de um bilião de dólares em 2016 e claro que o número de acidentes envolvendo condutores com consumo (isolado ou associado a álcool ou a outras substâncias) tem vindo a aumentar com a sua transição de substância ilícita para lícita.
Darrin T. Grondel, director da Comissão de Segurança Rodoviária daquele estado, não tem dúvidas que conduzir sob efeito da cannabis aumenta o risco de um acidente, os seus efeitos podem durar de 2 a 8 horas, consoante seja ingerida ou fumada, e que esta é a droga mais presente nos casos de sinistralidade neste Estado, cujo número também aumentou após a legalização. O que não quer dizer que tenha sido ela a causa de acidente, mas que estava presente no sangue das vítimas estava. Em Estados como Washington, frise-se, a maioria dos acidentes não envolve condutores com álcool ou cannabis.
No caso destes Estados, a percentagem mínima de cannabis é de 5 nanogramas de THC por mililitro de sangue, algo difícil de definir quantitativamente, dada a multitude de opções de mortalhas, voracidade ou de pureza, ligeiramente superior à praticada na Holanda, mas que para os norte-americanos corresponde a uma linha irrevogável.
Em Portugal não há percentagem mínima
Em Portugal não há uma percentagem definida por lei a partir da qual o consumo afecta as capacidades dos automobilistas e os especialistas acham que essa precisão é muito difícil de estabelecer. As brigadas de trânsito só efetuam testes de despistagem de consumo de drogas quando suspeitam de indício. Ao contrário do que acontece com a despistagem da ingestão de álcool, o seu uso não se traduz na inibição automática de condução, na medida em que os condutores têm um prazo para se apresentarem num hospital, de modo a ser efectuada uma recolha de sangue que será analisada no Instituto de Medicina Legal. A inibição de conduzir só pode ser determinada por um tribunal.
Na Europa, o tema tem sido discutido com mais acuidade no Reino Unido, onde foi criado em 2012 um grupo de especialistas para estudar o impacto do consumo de estupefacientes nos acidentes de automóvel. Kim Wolff, professora de Ciência Aditiva no King’s College de Londres, refere que, no caso inglês, os testes ao consumo de droga revelam que a cannabis e a cocaína são as mais frequentes entre os condutores sinistrados e que 94 por cento destes são homens.