Presidente do Supremo pede aos juízes prudência na linguagem
Henriques Gaspar aproveitou cerimónia para deixar avisos a propósito do controverso acórdão dos juízes do Porto. Neto de Moura estudou num seminário mas dizia-se ateu, e surpreendeu mesmo quem o conhecia de perto.
O presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar, pediu nesta terça-feira aos juízes prudência em relação à linguagem que usam e à forma como fundamentam as suas sentenças.
Sem nunca referir o polémico caso do acórdão dos juízes do Tribunal da Relação do Porto que desculpabiliza a violência doméstica contra as mulheres em caso de adultério, o também presidente do Conselho Superior da Magistratura não deixou dúvidas, numa cerimónia em que deu posse a dois juízes conselheiros do Supremo, que se referia a Neto de Moura e Maria Luisa Arantes, os magistrados responsáveis pela controversa decisão.
Implicações na sociedade
Henriques Gaspar disse ainda que os juízes não podem perder de vista que as sentenças que proferem podem ter implicações não só para aqueles que afectam directamente como para a sociedade em geral, como foi o caso – muito embora considere excessivas as dimensões que o caso assumiu.
Desde que o acórdão foi conhecido já foram marcadas duas manifestações de protesto para esta sexta-feira e lançado um abaixo-assinado (ver texto em baixo). As posições públicas de repúdio têm-se sucedido, da Ordem dos Advogados à Amnistia, passando pela Conferência Episcopal.
Estudou num seminário
Mas afinal quem é Neto de Moura? Filho de uma família numerosa, o juiz de 61 anos nasceu numa localidade da região de Paços de Ferreira. E terá sido a condição humilde da família a fazer com que tenha ido estudar para o seminário, como tantos outros naquela altura. Ao contrário de outros colegas do Tribunal da Relação do Porto, o desembargador criticado por ter citado a bíblia na sua condenação das “mulheres adúlteras” nunca se assumiu como católico, e muito menos fervoroso. Bem pelo contrário: costuma dizer-se ateu.
Quem com ele tem lidado de perto não o reconhece sequer na posição conservadora que assumiu tanto neste acórdão, datado de 11 de Outubro passado, como num outro do ano passado em que expressava o mesmo tipo de posições – tão ou mais graves do que esta, na opinião de colegas.
A juíza Adelina Barradas de Oliveira, que trabalhou sete anos directamente com o magistrado no Tribunal de Loures, assegura que nunca foi confrontada com atitudes machistas da sua parte. Tal como várias outras pessoas que se cruzaram com ele ao longo da vida, destaca-lhe a enorme capacidade de trabalho – ao ponto de ficar a despachar serviço em vez de ir almoçar, ou de ficar a trabalhar noite dentro quando era preciso.
"Um magistrado exemplar”
“Não colocava considerações pessoais nos acórdãos”, assegura, adiantando que também não tratava de forma especial os casos de violência doméstica que lhes passavam pelas mãos. “Aplicava as regras constitucionais. Até agora tinha sido um magistrado exemplar”, observa.
Não é a única a mostrar espanto. “É um bom juiz”, repete o advogado João Carlos Gralheiro, que esteve em vários julgamentos dirigidos pelo magistrado em S. Pedro do Sul, uma das comarcas em que Neto de Moura trabalhou no início da carreira.
“Não esperava que lhe sucedesse isto. Terá sido um acidente de percurso”, equaciona. Um acidente que já levou o bastonário dos advogados a avançar a possibilidade de o magistrado ser proibido de julgar crimes de violência doméstica – o que, no entender de alguns juízes contactados pelo PÚBLICO, será inviável, por a lei não permitir esse tipo de punição. Coisa diferente é vítimas deste tipo de crime a quem venha a calhar o magistrado alegarem que Neto de Moura não reúne as condições de imparcialidade necessárias para julgar o seu processo. Nesses casos caberá ao Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se.
Outra hipótese seria o magistrado pedir a auto-exclusão destes casos, mas quem o conhece não acredita que o venha a fazer.
Desde que a polémica estalou, no domingo, não prestou quaisquer declarações públicas, mas nas trocas de palavras que teve com algumas pessoas sobre o assunto desvalorizou as numerosas e violentas críticas de que foi alvo, defendendo o direito a expressar a sua opinião. “Ninguém o imaginava a escrever este tipo de coisa”, observa uma colega do Porto.
Pessoa cordata e bem preparada
No Tribunal da Relação de Lisboa, por onde passou antes de ser colocado no Porto, também deixou a imagem de uma pessoa cordata e tecnicamente bem preparada.
O que se terá passado nos últimos tempos? Há quem recorde que esteve de baixa no ano passado, sem se alongar em mais explicações. Quem pense que podem ter sido acontecimentos da sua vida pessoal a fazê-lo enveredar por um rumo diferente do que seguiu a vida inteira. Casado com uma procuradora que conheceu quando esteve colocado na Madeira, ainda no Verão passado era visto a passear na rua com a mulher de mão dada em Lisboa, cidade em que mora e onde fez Direito. “No tempo da faculdade era um homem de esquerda”, lembra-se um colega da universidade, adiantando que antes de vestir a beca ainda exerceu como advogado.
Em S. Pedro do Sul, João Carlos Gralheiro continua admirado: “Um dia gostava de falar com ele, para que me explicasse isto”.