Perdemos Fats Domino, o génio discreto do rock'n'roll
O cantor e pianista norte-americano era uma referência do rock'n'roll, do qual foi uma das primeiras grandes estrelas. Referência para várias gerações (Elvis Presley, Beatles, Led Zeppelin), deixa clássicos como Fat man ou Ain't it a shame
Fats Domino, o famoso músico de Nova Orleães que ficou para História como um dos pioneiros do rock'n'roll, com mais de 65 milhões de álbuns vendidos, morreu esta quarta-feira, aos 89 anos, rodeado pela sua família.
Antoine “Fats” Domino Junior nasceu em Fevereiro de 1928 e lançou o primeiro disco em 1947. Aproveitando a riquíssima e diversa tradição musical da sua cidade natal, fundiu o blues, o rhythm'n'blues e o boogie-woogie no som que veio a ser conhecido como rock'n'roll. Entre 1955 e 1960, apenas Elvis Presley o ultrapassou em número de discos vendidos. Homem pacato e dado aos prazeres do lar (casou aos 20 anos, teve oito filhos e viveu praticamente toda a vida no mesmo bairro), fez da música a sua carreira ainda na adolescência, tocando num dos vários clubes de Nova Orleães onde a música se ouvia ininterruptamente.
Com o produtor Dave Bartholomew, trompetista e líder da banda que Domino integrou em meados da década de 1940, assinou canções como Fat man, Ain't that a shame, Blue Monday e I'm walking e teve como o maior êxito da sua carreira Blueberry Hill, versão de um original jazz de 1940. No final da década de 50, Fats Domino parecia ominpresente nas rádios e nas tabelas de vendas americanas – entre 1950 e 1963, as suas canções figuraram nas listas da Billboard umas impressionantes 63 vezes. Outro filho célebre da cidade, Dr. John, considerou a parceria entre Domino e Bartholomew, no que à influência na história da música popular urbana diz respeito, apenas equiparável à de Lennon & McCartney.
"Toda a gente começou a chamar à minha música rock'n'roll, mas não era nada mais nada menos do que o mesmo rhythm'n'blues que andava a tocar em Nova Orleães", disse o génio discreto em 1991, citado esta quarta-feira no obituário da Rolling Stone. De certa forma, Fats Domino tinha razão. Deve o Fats com que foi imortalizado à sua devoção pelo estilo boogie-woogie de Fats Waller – e ao facto de, logo a seguir à música, a gastronomia, especificamente a da sua cidade, ser a sua maior paixão. Para ele, os acordes fortemente marcados no piano com a mão esquerda, acompanhados pelo bailado frenético sobre as teclas com a mão direita, tal como o estilo da banda que o acompanhava, nada mais eram do que consequência de ter nascido onde nasceu, rodeado por músicos como o lendário Professor Longhair e atento aos sons que faziam a banda-sonora da cidade.
No entanto, a dinâmica do seu canto, toda ela ritmo e expressividade, e a cadência que impunha às canções sinalizavam algo novo a florescer – e quem o ouvia estava atento. Os Beatles compuseram Birthday e Lady Madonna com ele em mente e Ain’t that a shame foi a primeira canção que John Lennon aprendeu a tocar na guitarra. Em 1969, Fats Domino estava entre a assistência numa conferência de imprensa de Elvis Presley, que acabara de dar o primeiro concerto da sua série de residências em Las Vegas. Um dos jornalistas iniciou uma pergunta referindo-se a Presley como “Rei”. Elvis interrompeu-o e apontou para Fats Domino: “Não. O verdadeiro rei do rock’n’roll está ali”.
Quando se impuseram definitivamente no cenário os novos e rebeldes jovens do rock'n'roll, como Little Richard, Chuck Berry, Elvis Presley, Carl Perkins ou Jerry Lee Lewis, a sua carreira discográfica perdeu o brilho dos anos 1950, quando dominava as tabelas de vendas e era também estrela no cinema, surgindo em filmes como Shake, Rattle & Rock (de Edward L. Chan, 1956) ou The Girl Can’t Help It (de Frank Tashlin, com Jayne Mansfield, 1956). Ainda assim, era obrigado a assistir às estreias do balcão, impedido que estava, numa América segregada racialmente, de ocupar os lugares de honra reservados aos convidados – nas digressões, pela mesma razão, ele e a sua banda eram obrigados a viajar dezenas de quilómetros após os concertos, até encontrarem lugar que os hospedasse.
Durante as sete décadas em que esteve activo a nível musical, editou dezenas de álbuns, ainda que, desde a década de 1970, fosse celebrado principalmente enquanto músico de palco. Viveu a maior parte da vida no mesmo bairro de Nova Orleães em que nasceu, rodeado dos amigos de sempre. Ensaiava diariamente, nos intervalos dos jogos de cartas com os companheiros e da actividade na cozinha – mesmo no seu período de sucesso retumbante, quando era uma das maiores estrelas dos Estados Unidos, fazia questão de transportar consigo o necessário para cozinhar nos quartos de hotel uma boa refeição, “New Orleans style”.
Alive and Kickin', editado em 2006, foi o seu último trabalho, lançado um ano depois de ter sido dado como morto durante uma semana, vítima do furacão Katrina – a sua casa foi então arrasada, e assim se perdeu grande parte do espólio que reunira ao longo da carreira, mas Domino, bem como Rosemary, a sua mulher, foram salvos a tempo por um helicóptero. “Não sinto falta de nada”, disse à imprensa depois de ser descoberto vivo. “Imagino que tenha sido só uma coisa que aconteceu. Só lamento que me tenha acontecido a mim e a todos os outros." Pouco depois, regressava de forma mais consistente aos palcos, em concertos de beneficência para apoio dos afectados pela tempestade.
Nova Orleães foi a cidade em que se construiu, a cidade em que se inventou como Fats Domino. Nela, através dela e do seu génio, chegou ao mundo e transformou o panorama musical. Em 2007, chegou às lojas o álbum de tributo Goin' Home. Participaram nele nomes do rock, do blues, do jazz, do reggae, da pop, gente como Tom Petty, Herbie Hancock, Buddy Guy, Dr. John, Neil Young, Elton John, Randy Newman, Willie Nelson, Toots & The Maytals ou os Skatalites. Uma diversidade que espelha bem o quão longe chegou a música que criou, essa a que chamaram rock’n’roll sem ele perceber porquê.