A bruxa do primeiro esquerdo
One-woman-show de Anna Biller que utiliza os códigos do cinema de género para questionar a representação da sexualidade feminina.
O OVNI (Objecto Visual Não Identificado), filme tão idiossincrático que parece caído do céu sem ter aparentemente nada a ver com o mundo onde surge, parece ser um modo na moda no cinema independente contemporâneo. Mas é legítimo dizer que ninguém terá levado essa ideia tão longe como a americana Anna Biller. A Feiticeira do Amor, a sua segunda longa, é um one-woman-show: realizou, escreveu, produziu, assinou os cenários e os figurinos, montou, compôs parte da música e fez sabe-se lá mais o quê neste filme que não é mero projecto de vaidade pessoal, mas toda uma tese de discurso sobre o género — cinematográfico e feminino.
Assume-se como pastiche do exploitation dos anos 1960/1970, nas vertentes de erotismo soft-core e terror gótico, algures entre a pré-história do giallo, as cores saturadas dos filmes de terror da Hammer e a displicência das produções de Roger Corman. Situado num “tempo de ninguém” que ora remete para as décadas que o inspiraram ora para os dias em que vivemos, conta a história de Elaine, bruxa perseguida pelas más experiências românticas com homens e pela necessidade de se impor como mulher independente, que acredita que o amor é um absoluto que nos consome e descobre através das suas magias que nenhum homem consegue igualar a força da sua paixão. Nesse processo, este filme tão lúdico quanto sério dá à mulher — tradicionalmente vítima objectificada — o papel central, “masculino”, da personagem que dá as cartas e decide a narrativa, mesmo que o seu carácter de “heroína” esteja mais do lado da “anti-heroína”.
Por trás da aparência de filme de género perdido, descoberto num recanto ignorado de um armazém de cópias, A Feiticeira do Amor esconde um discurso inteligente sobre o poder da sexualidade feminina e a sua relação complexa com o mundo patriarcal (afinal, as bruxas sempre foram personagens sedutoras…).
Anna Biller percorre territórios estilizados semelhantes aos que Tarantino e Rodriguez exploraram no díptico À Prova de Morte/Planeta Terror, sem problemas em piscar o olho a estilistas aclamados como Dario Argento e Mario Bava. Basta ver que, para lá das composições próprias, são temas de época dos giallos italianos (assinados por Ennio Morricone, Luis Bacalov ou Piero Piccioni) a funcionarem como banda-sonora do filme. É verdade que a obsessão de Biller em reproduzir a estética visual do cinema de exploitation, somada a uma duração excessiva, corre o risco de sufocar o projecto. Mas se não é um filme perfeito, é também um dos mais interessantes objectos surgidos do cinema (verdadeiramente) independente americano, um filme que vira do avesso as noções pós-modernistas que o percorrem, e Anna Biller é, a julgar pelo que aqui faz, uma autora que vai valer a pena seguir com atenção.