A partir de agora já conseguimos trocar todas as letras do ADN
Há uma nova geração de editores genéticos que torna possível a substituição, sem cortes, das quatro moléculas que fazem o nosso ADN. É um lápis em vez da tesoura usada até agora. Um avanço importante para tratar doenças causadas por uma mutação pontual, ou seja, um par de letras trocado num gene.
O cientista David Liu, da Universidade de Harvard, chama “cirurgia química” a esta recente técnica que desenvolveu. Ao contrário do que acontece com a mais mediática versão de edição genética CRISPR/Cas9, esta abordagem não implica um corte no ADN para corrigir um “erro”. Em vez disso, com este novo editor genético, as “letras” do nosso ADN que estão no lugar errado são “substituídas”, sem cortes, como se se tratasse de uma autocorrecção nas células. Num artigo publicado na revista Nature esta quinta-feira, David Liu revela que esta “cirurgia química” já pode ser usada nas quatro bases de pares do genoma, as quatro letras do nosso ADN.
Primeiro, uma pequena e simplificada introdução ao tema: é com quatro letras apenas, A, T, G, C – que o se escreve o nosso ADN, o património genético dos seres vivos. São as iniciais de bases químicas, a adenina, timina, guanina e citosina e a “escrita” destas letras não é feita ao acaso. Para que tudo corra bem, há duas combinações possíveis: o par de bases A-T e o par de bases C-G. Tudo deve estar no lugar certo. Todos os seres humanos têm um total de cerca de três mil milhões de bases de pares no ADN, um conjunto da mãe e outro do pai. Cada par é uma letra numa frase e cada uma destas frases é um gene. Ora, actualmente, são conhecidas mais de 50 mil mutações em genes que estão associadas a doenças. Aproximadamente, 32 mil são denominadas mutações pontuais, ou seja, consistem numa simples troca de um par de letras por outro.
Em 2016, David Liu, investigador do Instituto Broad do MIT-Harvard e professor na Universidade de Harvard, assinou um artigo na Nature com outros cientistas que mostrava como era possível, através de uma “cirurgia química”, substituir o par C-G pelo par A-T sem qualquer corte na cadeia de ADN. Um avanço que já está a ser usado em várias experiências para tentar corrigir este tipo de mutações pontuais de uma simples troca de par de letras que causam doenças genéticas. Esta semana, o cientista é um dos sete autores que relatam na mesma revista um novo avanço: também já conseguiram a tarefa mais difícil de substituir o par A-T pelo par C-G.
Ficou rapidamente famosa a imagem da tesoura molecular associada à técnica CRISPR/Cas9 usada para editar os nossos genes, num jogo de “corta e cola”, substituindo sequências com mutações por uma versão correcta. Agora, David Liu apresenta um outro tipo de edição genética que compara a “um lápis” para corrigir o erro. O cientista faz questão de explicar que não estamos perante uma técnica melhor do que outra. São complementares, assegura.
Aliás, a máquina usada para fazer a correcção a lápis nas experiências de David Liu e a sua equipa inclui muitas peças que fazem parte da CRISPR/Cas9, mas sem os cortes da tesoura. “Usámos uma forma alterada da CRISPR/Cas que não consegue cortar o ADN, mas consegue ligar-se à sequência [genética] certa”, explicou David Liu na conferência de imprensa organizada pela Nature para a discussão do artigo.
Existem “erros” genéticos que serão corrigidos de forma mais eficaz com uma tesourada e outros que devem ser corrigidos a lápis, sublinhou o cientista. “Os métodos que recorrem a cortes no ADN serão, por exemplo, especialmente úteis quando o objectivo é inserir ou eliminar um par de letras. Mas, quando o objectivo é simplesmente fazer uma troca, o lápis poderá ser mais eficiente.”
Desde que David Liu e a sua equipa apresentaram o editor de bases que conseguia fazer a troca do par C-G pelo A-T foram publicados vários artigos científicos. O lápis foi usado para inserir ou corrigir mutações pontuais em bactérias, fungos, arroz, milho, tomates, peixes, ratinhos e até em embriões humanos. Neste último caso, que é o que mais nos toca e que foi divulgado no final do mês de Setembro, a ferramenta foi usada numa “cirurgia química” realizada por investigadores chineses que conseguiram remover uma doença do sangue (beta-talassemia) de embriões humanos, corrigindo um erro entre os três mil milhões de pares de bases que fazem o nosso genoma.
Estes novos editores de bases (ABE, na sigla em inglês que significa editores da base de adenina) serão, então, especialmente eficazes para situações em que existem mutações num só par de bases mas que são suficientes para causar doenças genéticas. Cerca de metade de todas as doenças genéticas associadas a mudanças deste tipo e que envolvem um par de letras no lugar errado estão relacionadas com uma troca do par C-G por uma base do par A-T. Conseguir reverter este erro era importante. E, apesar de ainda ser preciso fazer muita investigação para testar a eficácia e segurança da técnica para uma eventual aplicação deste editor nos humanos, o decisivo passo foi dado.
Testes em duas doenças
No artigo publicado esta semana na Nature, mostra-se que os ABE funcionaram no ADN de bactérias e células humanas. Nas células humanas conseguiu-se a desejada troca genética em todas as diferentes regiões do genoma que foram testadas, revelando, em média, uma eficácia de 53% e sem que fossem observados efeitos indesejados como correcções no lugar errado (fora do alvo), deleções ou outras mutações. “O ABE converteu o par A-T num C-G em todos os casos que testámos. Quando falamos em 53% de eficácia isso significa que, apesar de a conversão ter sido feita em todas a regiões testadas, quando observámos uma colecção de um milhão de células onde inserimos o editor e as sequenciámos vimos a conversão numa média de 53% de todo o ADN.”
Nestes casos específicos em que a doenças são causadas por uma mutação numa das bases a probabilidade de não acertar o alvo correcto é, segundo os autores do artigo, inferior à que tem sido alcançada pela CRISPR/Cas9. Nas experiências realizadas, os investigadores observaram que, na maioria dos casos, quando o editor genético ABE se ligava a uma parte errada do ADN, fora do alvo, a reversão dos pares de bases não chegava sequer a acontecer. “Ainda não percebemos por que é que isto acontece, mas assim não temos de nos preocupar com esse tipo de erros ou problemas”, referiu o investigador, adiantando que a CRISPR/Cas9 regista 14% de falhas no alvo e que em cada 12 abordagens da tesoura em locais errados se detectam nove cortes realizados enquanto, no caso do lápis, os desvios na rota são de 1,3% e que em cada 12 desses destinos incorrectos a “correcção” das letras só é feita em quatro.
Aos jornalistas, David Liu também falou sobre o complexo trabalho que envolveu a procura de uma enzima capaz de enganar uma célula e induzi-la a escrever a letra A (de adenina) no ADN. “Até agora, não era conhecida nenhuma enzima que fosse capaz de o fazer no ADN.” Na verdade, o que os cientistas fizeram foi usar uma base que desempenha múltiplos papéis biológicos para enganar as células. Assim, para trocar o A para um G no par de bases usaram a inosina, componente que é geralmente encontrado na estrutura do ARN que existe nas células e desempenha várias tarefas vitais. “No ADN, a inosina está normalmente acompanhada pelo C, ou sejam imita o G. Assim, quando o ADN é lido para ARN ou quando é copiado para ADN numa divisão celular, a inosina comporta-se eficazmente como um G e faz um par com o C”, explicou David Liu. Durante os últimos meses no laboratório, os investigadores dedicaram-se ao estudo dos mecanismos moleculares em bactérias, passo a passo, testando várias “formas” para fazer com que a célula aceitasse as instruções “químicas” para usar o lápis e corrigir o erro. A cada avanço, o editor de bases evoluía e passava a ser denominado com uma nova versão. Chegaram à geração sete, ABE7.
Neste artigo, mostram que com o ABE7 conseguem enganar a célula introduzindo-lhe uma “máquina” química onde estava a enzima, com a ajuda da ferramenta da CRISPR/Cas9 para a guiar para o lugar certo. Depois, fazem com que o par de letras correcto seja lido e copiado.
Mas era preciso mais ainda. Perceber, por exemplo, como é que este editor funcionava em células humanas com mutações em genes associados a doenças específicas. Os investigadores realizaram duas experiências. Testaram-no numa doença rara do sangue chamada persistência hereditária de hemoglobina fetal (HPFH) e noutra doença comum na população caucasiana que é caracterizada por uma anormal absorção de ferro chamada hemocromatose hereditária. Nas experiências realizadas com a HPFH, o editor genético conseguiu trocar as letras C-G pela versão A-T pretendida (e correcta) com cerca de 30% de eficácia. A conversão no caso da hemocromatose foi de 28%.
David Liu vê nesta nova técnica uma possibilidade de, no futuro, tratar doenças genéticas para as quais não existe qualquer resposta e que muitas vezes acabam por resultar em sérias incapacidades e reduzida esperança de vida dos doentes. Os próximos passos passam por testes em modelos animais com este editor de bases e, avisa, no topo da lista das doenças a explorar pelos cientistas do seu laboratório e colaboradores estão patologias relacionadas com o sangue, a surdez, a cegueira e “algumas perturbações neurológicas”.
Do ADN ao ARN, novos passos
Talvez também alimentadas pelo entusiasmo do investigador, as comparações com a CRISPR/Cas9 ou mesmo outras técnicas de edição do ARN divulgadas na edição desta sexta-feira da revista Science surgiram várias vezes na conferência de imprensa. O avanço inédito na edição de ARN em células humanas também é da responsabilidade de uma equipa de investigadores do Instituto Broad do MIT e Harvard. A nova ferramenta chamada “Repair” (que significa reparar e que na sigla em inglês corresponde a edição de ARN para substituição programada de A, de adenosina, para I, de inosina) apoiou-se na CRISPR que foi adaptada para editar a estrutura responsável por funções vitais nas células, conseguindo trocar letras do ARN, alterando o que os genes produzem sem fazer alterações no genoma. Segundo os autores do artigo publicado na Science sobre a edição de ARN, esta nova rota que foi testada em células humanas e tem o potencial de tratar várias doenças sem afectar o genoma.
David Liu reagiu a este e outros avanços com uma boa dose de optimismo. “Não gostava que vissem esta técnica do ABE como melhor do que outra. Não é melhor do que a Cas9, isso seria o mesmo que dizer que uma tesoura é melhor do que um lápis. Para umas situações a CRISPR será o ideal, para outras será o ABE. Em relação ao ARN, também julgo que são complementares. Acredito que todas estas técnicas vão ter aplicações terapêuticas diferentes. Vejo-as, todas, como desenvolvimentos entusiasmantes neste campo”.
Um campo rapidamente povoado de novas descobertas (a caixa de ferramentas de edição genética vai-se tornando cada vez mais completa) mas ainda muito frágil. “É preciso mais investigação para usar esta maquinaria no contexto humano. Temos de assegurar todas as questões de segurança e eficácia. Já temos colaborações com outros laboratórios para testar esta ferramenta em modelos animais. Ainda falta muito trabalho até uma aplicação nas doenças humanas. Há sempre muitas coisas que podem falhar. Mas ter estas ferramentas é um excelente ponto de partida.”