“O quotidiano em Cabo Verde é todo ele pensado, amado, sentido em crioulo”

A pretexto do “maior evento literário dos PALOP”, a Morabeza — Festa do Livro, que arranca a 30 de Outubro, o ministro da Cultura de Cabo Verde, Abraão Vicente, diz como tenciona alicerçar a literatura num país em que ela é sobretudo feita na música. E vinca o seu apoio à oficialização do crioulo.

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Abraão Vicente na sede da CPLP em Lisboa RUI GAUDÊNCIO

Chama-se Morabeza – Festa do Livro e, entre 30 de Outubro e 5 de Novembro, vai reunir na Cidade da Praia, em Cabo Verde, “perto de quatro dezenas de escritores oriundos da Ásia, da Europa e de África”, vindos de países “onde a expressão portuguesa está presente e viva”. Debates, concertos, sessões de poesia, acções de formação marcam este “festival literário”, como lhe chamam, no âmbito do qual se reeditam as obras completas do escritor e compositor Eugénio Tavares, cujos 150 anos do nascimento agora se comemoram.

O festival começa na capital cabo-verdiana, numa parceria com a Booktailors e com outros festivais literários, mas a ideia é torná-lo rotativo. “Em 2018 será no Mindelo”, diz ao PÚBLICO Abraão Vicente, 37 anos, ministro da Cultura e Indústrias Criativas de Cabo Verde. Que quer ver neste festival um ponto de partida para algo mais ambicioso, no futuro.

O que se pretende com esta primeira edição, em Cabo Verde, da Morabeza – Festa do Livro?
O nosso objectivo principal é reactivar a política pública de incentivo ao livro e à leitura através da Biblioteca Nacional, instituição que vai completar 20 anos em 2019 e que ao longo dos anos acabou por abocanhar o papel do Instituto do Livro, que foi extinto. Mas a Biblioteca não tem recebido investimentos nesses 20 anos. Quando eu entrei no cargo de ministro, há um ano e cinco meses, funcionava como uma biblioteca municipal. Mas voltando à festa, é um pretexto para reunir anualmente os autores cabo-verdianos, que não são assim tantos com qualidade como se poderia pensar. Cabo Verde ficou um pouco parado na ideia dos “claridosos” [os escritores ligados à revista Claridade, fundada em 1936 por Manuel Lopes e Baltasar Lopes da Silva], finais do século XIX, inícios do século XX. Todos os que vieram depois, o Mário Fonseca, o Ovídio Martins, a chamada geração “Nova Largada” que inspirou o discurso sobre a independência, praticamente não se fala deles. Nomeadamente o João Vário [1937-2007], que é um pouco um outsider.

Essa intenção terá reflexos a nível editorial?
A nossa ideia é fazer uma política de reedição dos autores cabo-verdianos do século XX, incidindo também nos chamados “nativistas”, Eugénio Tavares, Loff [de Vasconcelos], que também desapareceram da cena. E promover uma nova geração de autores, alguns deles dando os primeiros passos, mas colocando-os a conviver com Germano Almeida, Arménio Vieira, Dina Salústio, Fátima Fernandes; provavelmente, com mais trabalho, podem ter um espaço na esfera lusófona. E convidámos, para a Festa, nomes consagrados da literatura lusófona: Mia Couto, [José Eduardo] Agualusa…

Ou seja: chamar atenções de fora, para depois o movimento se fazer de dentro para fora…
Exactamente.

Pode falar-se numa nova literatura cabo-verdiana?
Da novíssima geração temos o Filinto Elísio, o José Luís Tavares, o Danny Spínola, que não é muito conhecido mas é um escritor com algum pulso; temos o Germano Almeida como o único romancista de fôlego, a Dina Salústio, a Vera Duarte (que ganhou o prémio Sonangol): há um núcleo duro, mas eu creio que é manifestamente insuficiente. Já a música cabo-verdiana é pujante exactamente porque se escreve em crioulo e nos vários “sotaques” do crioulo. Tanto que os temas das mesas na Festa do Livro são títulos de músicas [Dança ma mi criola, Porton di nos ilha, etc.]. Para que as pessoas percebam que a literatura cabo-verdiana é sobretudo feita na música. E é boa literatura. Manuel D’Novas, Eugénio Tavares, B.Leza, Orlando Pantera são grandes escritores. O próprio Mário Lúcio, meu antecessor no cargo, é dos compositores mais finos, hoje em dia.

O facto de a criação literária cabo-verdiana ser essencialmente em português e toda a criação musical ser em crioulo, essa duplicidade, é essencial à maneira de ser cabo-verdiana?
A nossa identidade revela-se aí. Na Festa do Livro, o português vai ser a língua de trabalho, porque vamos ter convidados de Angola, Moçambique, Portugal, Brasil. Mas o nosso quotidiano é todo ele pensado, amado, sentido em crioulo, por mais que as instituições se esforcem. Uma das primeiras medidas do novo governo foi o ensino do português como língua segunda, no sentido exactamente de nós interiorizarmos o porquê de o ensino e a fluência do português estarem a perder terreno. Porque o crioulo domina o dia-a-dia, domina a música, domina as próprias instituições. O parlamento cabo-verdiano funciona praticamente em crioulo. Há uma força identitária e aqui entra o debate que vai vir com a revisão da Constituição: oficializa-se ou não o crioulo?

Qual é a sua posição, nesse debate?
Eu, como intelectual e como alguém que vem do campo artístico [Abraão Vicente é artista plástico], sou absolutamente a favor da oficialização do crioulo e da sua imediata implementação. A própria comissão de línguas existente em Cabo Verde recomenda a oficialização paulatina: simbólica, numa primeira fase, dando dignidade à língua materna; e, numa segunda fase, fazendo com que os linguistas nos ensinem a fazer a escrita e a criar um processo. Mas não acredito que tenhamos de chegar ao ponto de padronizar o crioulo, porque isso seria perder grande parte da nossa identidade. Sou contra a padronização, contra um sistema de escrita que elimine os sotaques do crioulo.

Mas isso não contradiz completamente a lógica invocada para justificar o acordo ortográfico da língua portuguesa, que Cabo Verde assinou?
O acordo ortográfico não é adoptado com seriedade em Cabo Verde. Oficialmente já o adoptámos, os documentos oficiais do governo, das instituições, respeitam o acordo, mas também há o fechar dos olhos, o conviver com quem não aceita e não quer. Não houve um processo de ensinamento.

Mas o acordo impõe uma padronização e acabou de dizer que é contra a padronização da ortografia do crioulo num só país, Cabo Verde. Não é o contrário dessa lógica?
Concordo. Até porque na nossa comunidade, a dos países falantes do português, não somos tão próximos quanto o discurso diz que somos. Quem conhece Angola, Moçambique, Brasil, Portugal, Cabo Verde sabe que os processos linguísticos que poderiam levar à padronização estão muito longe de ocorrer. Não podemos confundir aquilo que é a vida lisboeta, onde se encontram todas as culturas lusófonas, com a vida na Praia, no Moxico, em Luanda ou no Rio de Janeiro. Inclusive temos de ter a humildade de perceber que Portugal ou Cabo Verde perdem-se quando chega o universo brasileiro ou o angolano. Pensar que num dia, próximo, nos iremos misturar pela língua é mais uma daquelas ficções que nos impedem de dar os passos que devem ser dados para termos uma verdadeira comunidade de países da língua portuguesa.

Voltando à Morabeza: o intercâmbio que aqui se propõe é para continuar, para ampliar?
Sem dúvida. E não só na língua portuguesa. O que digo é que precisamos de concretizar a CPLP e o espaço da lusofonia. Enquanto continuarmos a fazê-lo com encontros formais entre ministros e chefes de Estado, isso jamais acontecerá. No entanto, a CPLP acontece no B.Leza, nos espaços públicos. Então no próximo ano já vamos ter autores senegaleses e nigerianos. E a nossa ideia é fazer essa ampliação. A embaixada da China também já nos propôs trazer autores chineses, já temos tradução. O português é um bom pretexto para o primeiro ano, vamos ver qual é o resultado.

Em que é que tais objectivos jogam com a estratégia do seu ministério?
O meu objectivo como ministro não é ter resultados concretos, estamos a plantar a longo prazo. Eu acredito que a cultura é o sector de onde o Estado não deve sair e onde não deve desinvestir, não se pode deixá-lo só aos privados. Se quisermos formar cidadãos com um nível de excelência e compreensão da nossa identidade, temos de reforçar as instituições. Herdei um ministério onde grande parte das instituições não são formalizadas. Temos os centros culturais, mas nenhum deles foi criado por decreto nem tem estatuto ou orçamento. Temos museus, mas nenhum foi criado oficialmente, e isso significa que não podem interagir com nenhum museu em Portugal ou pelo mundo. Então a minha principal preocupação é fixar os estatutos, criar as estruturas para que possam crescer.

E é fácil alterar essa informalidade, neste momento?
É difícil, porque há resistência. E para se criar instituições é preciso financiamento e recursos do Estado. Portanto o Governo, do qual eu faço parte, tem de compreender que é necessário que essas instituições existam. Museu é pedagogia mas também é um serviço acessório ao turismo. O turismo em Cabo Verde não pode continuar a ser só praia e mar, música e mulheres bonitas. Temos de ter estruturas museológicas com projectos modernos, interactivos e que falem de Cabo Verde abarcando, de certa forma, a parte científica. Toda a investigação ligada à história imaterial tem sido feita, ao longo dos tempos, de debates informais, a partir de intelectuais. O que eu quero é fixar esses debates, criar actas, criar documentação, publicar livros, para darmos o próximo passo: o ensino. Fundámos por isso, há cerca de um ano, a Academia Cesária Évora. E temos o programa Bolsa de Acesso à Cultura, através do qual financiamos o acesso ao ensino artístico a jovens ou crianças com talento mas cujas famílias não têm chance de os pôr a frequentá-lo. Formalizámos, assim, iniciativas artísticas em ilhas antes marginais; e promovemos o acesso ao ensino artístico.

Em que é que isso difere, na essência, do que tinha sido feito antes?
Os sucessivos ministérios da Cultura de Cabo Verde investiram em eventos, em financiar projectos pessoais. E a nossa perspectiva é criar políticas públicas que dêem consistência, no tempo, à promoção da cultura. A lógica era: o estado tem de financiar o CD, o concerto, a digressão do artista tal. A minha lógica é outra: criar pequenos auditórios em cada município, criar escolas de ensino artístico e estruturas para que as nossas crianças aprendam. Não tenho de ter pressa em ser aplaudido porque criei uma estrutura. Mas daqui a 20, 30 anos, já vamos provavelmente ter miúdos que só foram ao ensino superior de artes porque tiveram uma base.

Em lugar de uma política informal, criar alicerces: é essa a ideia?
42 anos depois da independência, é essa a ideia. Temos muitos músicos considerados virtuosos, mas se os convidam para fazer parte de uma orquestra não podem porque não sabem ler pauta. É por isso que a academia tem duas vertentes: o ensino formal, normal; e o ensino da música popular de Cabo Verde. Porque aprender a tocar guitarra, pode-se aprender em Portugal ou na Noruega; mas aprender do jeito cabo-verdiano só se faz em Cabo Verde com os mestres cabo-verdianos atrás. Costumo dizer que nós não somos um povo com 42 anos, temos 556 anos. E esse é um dos alvos do debate que estamos a fazer: desconstruir a ideia de que o país só foi fundado pelos que criaram a independência, o PAIGC e o PAICV; nada mais errado. Temos por isso um projecto de resgate histórico, que é ir a Portugal, ao Brasil, a França, buscar os documentos que fazem parte da história de Cabo Verde, incluindo os combates navais, ingleses, franceses, ao largo da Cidade da Praia.

O que é que gostava de deixar, como legado, no seu cargo?
Não tenho ilusões quanto a legado. Porque como estou na política mesmo, sei que isto é muito provisório. Convivo diariamente com ex-ministros, ex-primeiros-ministros, ex-presidentes, e vejo que isto é de uma fugacidade terrível. O meu desapego em relação a este cargo é total. É por isso que me atrevo a tomar decisões ditas como polémicas: só faço aquilo que acho que tem de ser feito. 

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