Mata Hari, um mistério centenário

Espia, agente secreta, cortesã, princesa, bailarina ou apenas uma rapariga da província que procurou sobreviver num mundo com mais glamour? Mata Hari foi executada fez cem anos no dia 14 de Outubro. Pretexto para uma exposição na sua Holanda natal. O mito prevalece.

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Greta Garbo na personagem da bailarina-espia DR
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Mata Hari DR
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Retrato do casamento com Rudolph MacLeod DR
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Mata Hari retratada por Isaac Israels DR
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Passados já cem anos sobre a sua execução na manhã fria e enevoada – a julgar pelas recriações no cinema – desse dia 14 de Outubro, nos arredores de Paris, continuamos a não saber tudo, ou mesmo a saber muito pouco, do que foi a vida e a acção de Margaretha Geertruida Zelle (1876-1917), que também foi Margaretha MacLeod, mas foi sobretudo Mata Hari, o nome com que ficou registada na história a mais exótica, sensual e misteriosa espia do século XX.

No passado fim-de-semana, e a pretexto do centenário da morte, o museu da sua cidade natal – o Fries Museum, em Leeuwarden, no norte da Holanda – inaugurou a exposição Mata Hari. The Myth and the Maiden (traduzindo à letra, O Mito e a Donzela). Uma recolha inédita de objectos pessoais e de documentos militares até há pouco tempo mantidos fechados nos arquivos dos serviços secretos britânicos e franceses (incluindo a sua suposta “confissão”), mas também de fotografias, retratos, telegramas, correspondência, pinturas, recortes de jornais, livros e cartazes dos inúmeros filmes que glosaram a sua vida, propõe-se lançar uma nova luz sobre a vida desta mulher holandesa que marcou o imaginário do início do século XX. Mas o curador da exposição, Hans Groeneweg, em declaração ao The New York Times (NYT), alerta para que muita coisa vai continuar por explicar e permanecer envolta em mistério.

Depois de referir que os documentos classificados que os serviços secretos franceses abriram à investigação no início deste ano – e que vieram acrescentar-se aos que os seus congéneres britânicos tinham libertado já em 1999 – não vêm resolver todas as dúvidas, Groeneweg acrescenta que, “de algum modo, talvez seja bom não conhecermos a história completa; algo do mito deve ser preservado”. É uma declaração “à John Ford” – quando a história se transforma em lenda, é a lenda que conta –, uma referência cinéfila nada despropositada, de resto, já que, apesar das inúmeras fotografias vintage que documentam a carreira da Mata Hari bailarina exótica e sensual nos palcos de Paris e de outras grandes cidades europeias, foi principalmente ao cinema que coube esculpir para o imaginário colectivo o perfil dessa “femme fatale”, do mito.

A personagem Mata Hari atravessou praticamente toda a história do cinema – uma arte e indústria que, de resto, estava ainda a formar-se nessa segunda década do século. Há notícia da existência de um primeiro filme feito logo em 1920 na Alemanha (Mata Hari, Ludwig Wolff), escassos três anos após a morte, e protagonizado por uma diva do cinema europeu da época, a dinamarquesa Asta Nielsen. Mas foi em 1931 que o cinema americano descobriu as potencialidades da fantástica vida de Margaretha Geertruida Zelle, que fora “mais dramática do que qualquer ficção”, como referia a campanha de lançamento do filme produzido pela Metro-Goldwyn-Mayer, em que a bailarina-espia era encarnada pela já muito consagrada Greta Garbo (Mata Hari, George Fitzmaurice).

No mesmo ano, a concorrente Paramount lançava a sua star, Marlene Dietrich, na recriação da história da espia, mas com um pouco disfarçado pseudónimo, Marie Kolverer, ou a agente X27 (Desonrada, Josef von Sternberg), quando o nome de código de Mata Hari fora H21.

Pelas décadas adiante, entre o grande e o pequeno ecrã, houve muitas dezenas de novas versões da vida da personagem – que voltou a ser interpretada por actrizes como a francesa Jeanne Moreau (Mata Hari, Agente H21, Jean-Louis Richard, 1964), ou a sua compatriota Sylvia “Emmanuelle” Kristel (Mata Hari, Curtis Harrington, 1985). Mas ninguém como Garbo e, talvez mais ainda, Dietrich inscreveu na tela o mito da espia sedutora, cuja vida foi “um cocktail dramático de coragem e glória, de perda e traição”, como se lhe refere o Museu de Friesland.

Na memória cinéfila fica, sobretudo, o plano inicial em que Marlene “X27” Dietrich ajeita a sua meia antes de revelar o rosto, gesto que rima com a sequência final do filme de Sternberg, quando Mata Hari aproveita um compasso de espera do pelotão de fuzilamento para retocar a cor dos lábios e voltar a acertar as meias, antes de cair crivada de balas…

Adolescência difícil

Regressando à história que é possível fixar, tudo começou a 7 de Agosto de 1876, quando, em Leeuwarden, Margaretha nasceu filha de um abastado comerciante de chapéus e especulador financeiro. Já adolescente, a sua vida começou a mudar. A falência do pai, seguida de divórcio, a morte da mãe, quando ela tinha apenas 15 anos, e a entrada num colégio de onde seria expulsa, levam-na a procurar um destino diferente. Aos 18 anos, Margaretha responde a um anúncio de jornal de um militar holandês colocado no exército colonial no Oriente, Rudolph MacLeod, cerca de 20 anos mais velho, à procura de mulher. O casamento realiza-se poucos meses depois e a jovem, já Margaretha MacLeod, acompanha o marido para nova campanha nas Índias Orientais (actual Indonésia). Aí aprendeu danças tradicionais javanesas; nasceram dois filhos, mas a morte precoce de um deles, Norman-John, aos 3 anos, começou a fazer desabar a relação do casal, muito marcada pela violência do marido. O divórcio surge inevitável, e Margaretha regressa à Holanda deixando com o pai a filha Jeanne-Louise.

Em 1903, chega a Paris, com 27 anos, à procura de uma vida nova, e melhor. Depressa substitui o apelido MacLeod – no interrogatório da polícia francesa, justificará assim a escolha da capital francesa: “Eu pensava que todas as mulheres que fugiam dos maridos iam para lá” – pelo de uma nova personagem que inventa para si própria: Mata Hari, que no idioma malaio significa “olho do dia”, ou “pupila da aurora”.

Trata-se de uma bailarina hindu – às vezes, uma princesa – supostamente nascida na ilha de Java, que com um criterioso uso do seu corpo sedutor depressa se insinua nas elites da aristocracia e da burguesia, mas também dos meios militares parisienses. “Com uma vida inventada, bailando seminua, à excepção dos seios (dizem que por falta de um mamilo, que lhe teria sido arrancado pelo ex-marido) que sempre manteve cobertos, cheia de braceletes e de exotismo, Mata Hari cativou todos os homens de Paris com a sua estreia no Museu de Arte Oriental, numa sessão promovida pelo coleccionador Émile Guimet”, escreveu o jornalista e escritor espanhol Julio Llamazares no El País.

Atracção pelos militares

Mata Hari foi rapidamente contratada para actuações sucessivas em salões privados de Paris, onde cobrava mil francos por noite, e facilmente chegou também ao palco das Folies Bergère e do Olympia, pela mão do agente Gabriel Astruc.

Foram dez anos de sucesso, excitação, sensualidade e glamour, em encontros e casos passionais com milionários de diferentes sectores e origens, mas com uma preferência especial por militares. “Sempre gostei dos militares. Prefiro estar com um militar qualquer do que com o banqueiro mais rico da cidade”, disse.

Durante essa década, “pelos seus braços adornados de jóias e pela sua cama passaram uma infinidade de homens, todos rendidos à sua beleza. Políticos, militares, poetas, compositores, toda a aristocracia do pré-guerra, com raras excepções, sucumbiram ao seu mistério e ao seu exotismo, que ela mesma se encarregou de alimentar inventando uma vida que não tinha”, acrescenta Llamazares. Entre essas figuras estiveram milionários como Alfred Kiepert, Xavier Rousseau ou o barão Henri de Rothschild, figuras das artes como Massenet, Puccini e o pintor Isaac Israels (autor de um conhecido retrato seu), ou militares como o oficial russo Vadim Masloff ou o alemão Arnold Kalle.

O início da guerra, em 1914, vem alterar o contexto da vida na Europa. Quando o conflito deflagra, Mata Hari mantinha uma relação com o comandante da polícia de Berlim. Há algum tempo já sem palcos para a sua personagem, a bailarina centrara a sua atenção nos militares, que, de mão em mão, a vão levar a um alemão em Amesterdão, que a põe em ligação com os serviços secretos deste país.

Aqui começa a parte da sua biografia que permanece mais misteriosa. A verdade – e isto consta dos documentos já conhecidos – é que os serviços secretos franceses (e britânicos) começam a segui-la nas suas sucessivas viagens, e em 1916 Mata Hari é mesmo contratada pelo comandante da espionagem francesa, George Ladoux – torna-se agente dupla.

Mas em Janeiro de 1917 os serviços secretos franceses interceptam uma mensagem rádio para Berlim e confirmam que Mata Hari recebera dinheiro, 20 mil francos, das autoridades alemãs, que ela justifica como “pagamento de favores”, sem especificar de que tipo. É presa a 13 de Fevereiro em Paris, encarcerada na prisão de Saint Lazare, começando aqui o lento processo que a levará à frente do pelotão de fuzilamento em Outubro, em Vincennes.

Tanto quanto se sabe, Mata Hari nunca admitiu ser espia, muito menos ter traído a França, que de algum modo adoptara como seu país. “Quando lemos que informação é que ela transmitiu aos alemães, vemos que se trata de algo irrelevante. Do género de dizer que haveria uma ofensiva militar na Primavera, mas toda a gente sabia já disso”, nota Hans Groeneweg.

Algumas leituras do processo vêem no estado de algum desânimo das tropas aliadas nesse ano de 1917 a razão para fazer de Mata Hari um caso exemplar de punição de qualquer acto de fuga ou de traição ao esforço de guerra. Mas haverá certamente muito ainda a investigar e a descobrir para se compreender melhor como tudo se passou.

O curador da exposição no Museu Friesland – que poderá ser visitada até 2 de Abril de 2018 – explica que Mata Hari. The Myth and the Maiden está “mais focada em aspectos da sua vida” do que na sua carreira artística ou de espia. Além de que, de algum modo, ela permitirá à população local e aos holandeses reconciliar-se com a sua compatriota.

“Quase toda a gente na Holanda pensa que ela se tornou famosa por causa da sua dança exótica, e as pessoas não gostam disso. Acham que se tratou de uma espécie de prostituta a quem ainda dão demasiada atenção”, disse por sua vez ao NYT Klaas Zandberg, responsável pelo arquivo histórico de Leeuwarden.

A verdade é que o centenário está a mobilizar uma atenção considerável por esta figura que continua sobretudo a fazer valer o mito. O Ballet Nacional da Holanda repôs em Amesterdão (até 3 de Novembro) o espectáculo de bailado criado no ano passado pelo coreógrafo Ted Bransen e dedicado a celebrar a bailarina-espia – as lotações da sala estão esgotadas desde o ano passado. E a actriz e cantora Tet Rozendal está a fazer uma digressão pelo país, que se prolongará pelo próximo ano, com o espectáculo Mata Hari.

“A história de Mata Hari continua a ser relevante, porque se tratou de uma mulher que não se conformou com as normas da sua sociedade, nem às ideias dos outros”, disse Ted Brandsen ao NYT. “É verdadeiramente um caso de transgressão feminina; ela rompeu com os limites da respeitabilidade”, acrescentou o coreógrafo.

Diz também a lenda que, antes de ser alvejada pelo pelotão de fuzilamento, Mata Hari atirou beijos para os soldados que se preparavam para disparar, e que alguns deles ficaram de tal modo perturbados que falharam o alvo. Quando a história se transforma em lenda, é a lenda que fica.

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