Catalunha: quanto pior, melhor?
Um outro grave risco é a polarização da Catalunha entre dois nacionalismos antagónicos.
1. O president Carles Puigdemont e o govern catalão não têm força para se anteciparem e proclamarem a independência, sob pena de riscos catastróficos, desde o plano económico ao internacional. No entanto, depois de tudo o que se passou, não parecem ter margem para recuo e há fortíssimas pressões para o salto no desconhecido. A força do bloco independentista reside na alta capacidade de reacção e mobilização. Por isso, parece desejar que Mariano Rajoy anuncie a aplicação do Artigo 155 da Constituição, que permite a intervenção estatal na Generalitat (governo catalão).
Como traduzir esta nova realidade, que a alguns parecerá paradoxal? Os independentistas “moderados” prefeririam a realização de eleições autonómicas, para “arrefecer” o conflito e travar a espiral. Os independentistas “radicais” temem uma desmobilização social e apostam em elevar o confronto a um nível tão dramático que assuste a UE e a force a pressionar Madrid a recuar.
2. O executivo espanhol deve aprovar hoje o recurso ao 155. O Partido Popular e o PSOE chegaram a acordo para dar prioridade à convocação de eleições autonómicas na Catalunha no prazo de três meses. Mas a decisão da intervenção só será tomada pelo Senado, entre sexta e segunda-feira. Note-se que não há um prazo para a sua aplicação. Rajoy não tem pressa e não quer repetir os riscos do dia do referendo, o 1-O, que se traduziu num desaire político para o Governo.
“Chegados a este ponto, [Rajoy e Puigdemont] necessitam de um passo prévio do outro para justificar e legitimar o seu”, resumia ontem o jornalista Fernando Garea. Lembre-se que, depois do 1-O, Puigdemont avançou, simulando uma declaração unilateral de independência (DUI) que logo suspendeu. Passou a bola para o campo de Rajoy, que, por sua vez, a devolveu fazendo uma pergunta: declarou ou não a independência? Puigdemont recusou-se a esclarecer.
Invocando a recusa de “diálogo” por Madrid, o president ameaça proclamar a DUI, talvez acompanhada da convocação de “eleições constituintes”. Admite-se tudo, inclusive que Puigdemont salve a face convocando eleições “constituintes” sem DUI. Que faria nesse caso Madrid?
A saída “racional” do impasse seria realizar eleições autonómicas e verificar as relações de força. Ninguém esconde que os independentistas poderiam vencer. Mas o seu roteiro é outro. É carregar no acelerador até ao “momento épico”. O campo independentista está dividido. O govern quase desapareceu e, na primeira linha, estão as associações independentistas, como a Assembleia Nacional Catalão (ANC) e a Òmnium, e a galáxia radical da “esquerda independentista”, cujo rosto público é a Candidatura de Unidade Popular (CUP). A convocação de eleições autonómicas tem sido denunciada como “traição” ou um reconhecimento de derrota. Os independentistas mais realistas opõem-se à independência unilateral, mas são silenciados: nestas conjunturas, a minoria “radical” prevalece sobre a maioria “moderada”. Vem nos livros.
Os realistas, entre eles membros do govern, evocam o isolamento catalão na Europa, confirmado pelo Conselho Europeu de quinta-feira, e a dramática fuga das empresas. A saída da UE seria uma catástrofe. “Mas como travar sem desmobilizar os seus?”, pergunta o filósofo Josep Ramoneda?
3. O senador Jordi Guillot, eleito pela Entesa Catalana (esquerda), constata que “há uma forte inércia para o conflito”. “Demasiadas vozes, cá e lá, pedem vitórias e derrotas.” Apela a que Rajoy e Puigdemont mudem as suas estratégias. Prevê um imenso risco. “É evidente que o procés nunca teve força suficiente para fazer vergar o Estado, nem para conseguir apoios internacionais. Pode haver a tentação de que, tendo chegado onde chegámos, será melhor proclamar a DUI, esperando que o Estado reaja, intervindo na Generalitat. E forçar um ‘Maidan’ popular [referência a Kiev 2014]. Uma mobilização ampla e prolongada a que o Governo central responderia com repressão. Agravar o conflito, custe o que custe, para gerar um descontrolo e uma virulência que obrigue a UE a intervir.”
A ANC e a Òmnium organizam as manifestações de massa. E a “resistência nas ruas” já está a ser preparada com a criação de mais de uma centena de comités de defesa do referendo (CDR), na maioria de iniciativa da “esquerda independentista” (CUP, Arran ou Endavant), que pretendem assumir a direcção das novas mobilizações. Falam em “resistência passiva” e numa “escalada de mobilização”, visando a ocupação de aeroportos, estradas e edifícios públicos simbólicos.
Sabemos que o Estado espanhol perdeu a batalha da imagem ao fazer avançar a Guardia Civil no dia 1 de Outubro. A sua impotência deu a entender que não só perdeu o controlo dos acontecimentos, como está em risco de perder o controlo do território. Doravante, esse desafio será muito mais grave. Os independentistas estendem uma armadilha a Rajoy. Convidam-no ao excesso de força. E se Puigdemont proclamar o Estat Català, como reagirão os Mossos d’Esquadra, a polícia autonómica? A grande questão é saber como e quando vai ser a intervenção.
4. À força de ter os olhos postos na dinâmica independentista, tendemos a esquecer a “outra metade” da Catalunha. A polarização da sociedade catalã tornou-se finalmente evidente com a manifestação anti-independentista de 8 de Outubro. É óbvio que as “duas metades” não têm a mesma coesão nem a mesma capacidade de mobilização.
Avisa o politólogo Roger Senserrich: “As palavras e a retórica têm consequências. A divisão social na Catalunha é cada vez mais profunda e o governo da Generalitat, longe de conter os demónios da divisão, aumentou o nível de confrontação ao procurar uma reacção do Governo central para se justificar.” Mas não é tudo. “A Catalunha está a caminhar perigosamente para o abismo da ‘ulsterização’ [referência à Irlanda do Norte], para um conflito civil talvez violento, tóxico e intratável.” Esta situação ameaça gerar uma contra-reacção de nacionalismo espanhol, não só no resto de Espanha mas dentro da própria Catalunha.
É o que escritor Antoni Puigverd mais teme: o choque entre “dois sonhos”. O de uma “Espanha francesa”, centralista, e o de separar a Catalunha de Espanha. “Ambos crêem ter uma oportunidade de ouro para ganhar. Sendo antagónicos, estes dois sonhos coincidem num ponto: quanto pior, melhor. E estão a consegui-lo.”