João Nicolau de Almeida, ex-director geral da Ramos Pinto, agora a gozar a reforma, anda perplexo com a sua própria reconversão vitivinícola. Durante décadas, olhou para a vinha e para os vinhos de acordo com o que aprendeu em Bordéus, actuando com base na técnica e no conhecimento académico adquiridos. Hoje, no projecto Quinta do Monte Xisto, um vinho que produz com a família, está nos antípodas dessa visão mais “industrialista”, agindo como um agricultor de antigamente, de forma empírica e baseado na experiência e no respeito pela natureza.
O criador de vinhos como o Duas Quintas não teve nenhuma epifania. Foi mudando quase por inércia, arrastado pelas ideias “loucas” dos filhos, em especial de Mateus Nicolau de Almeida, o ex-Muxagat que vive já há alguns anos no Douro Superior. Mateus também estudou em Bordéus e diz ter ficado horrorizado com a obsessão dos viticultores locais pelos tratamentos químicos das vinhas. A sua adesão a práticas agrícolas mais amigas do ambiente começou aí e, quando, em 2005, o pai iniciou a plantação da Quinta do Monte Xisto, no alto de uma encosta situada na margem esquerda do Douro, perto da foz do rio Côa, já era um entusiasta da biodinâmica e da agricultura biológica. Os primeiros anos não foram fáceis. Parte da vinha demorou um pouco mais a enraizar e Mateus também foi percebendo que os mandamentos da biodinâmica não podem ser aplicados de forma igual em todos os lugares e, pior, que esta corrente tinha “virado um negócio”. Hoje, pratica uma viticultura que é um misto de biológica e biodinâmica. Tem galinhas e ovelhas, faz estrume de giestas e protectores da vinha e fungicidas à base de cactos e de outros produtos naturais, poda de forma tradicional e usa mais mão-de-obra do que máquinas. Os resultados começam agora a aparecer e notam-se no vigor e saúde da vinha e também na pureza e profundidade dos vinhos.
Não é uma agricultura barata, mas, hoje, João Nicolau de Almeida não a trocava por nada. “É uma coisa bestial”, diz. Há algo de natural e humano nesta sua nova forma de encarar a terra. Ninguém quer morrer num chão impuro e todos nós, a dada altura da nossa vida, sentimos a necessidade de voltar a desfrutar da essência da natureza e a comungar com ela. Pode parecer poesia, mas é isso mesmo, poesia e emoção telúrica, que se sente em João Nicolau de Almeida e nos três filhos: Mateus, João (enólogo da Quinta do Pessegueiro) e Mafalda (é a responsável pelo marketing no projecto da família). A mesma poesia que usam para descrever o novo Quinta do Monte Xisto Tinto 2015, apresentado na semana passada: “Imaginemos que as diferentes notas de um piano correspondem aos diferentes sabores do vinho. A Quinta do Monte Xisto é um piano. Na encosta virada a norte extraímos os sons mais agudos: a acidez, a frescura, a finesse, a alegria, a juventude. Na outra encosta, virada a sul, são extraídos os sons mais graves: o volume, o corpo, a estrutura, potência, intensidade de fruto. Aos tons agudos da mão esquerda e aos graves da mão direita são adicionadas as notas intermédias, os sustenidos, os bemóis, equivalentes às diferentes altitudes a norte e a sul e que em pequenas quantidades vão imprimir ao vinho complexidade, sensualidade e uma multiplicidade de agradáveis surpresas. O final é forte, solto e expressivamente agradável.”
O vinho é um lote de Touriga Nacional (60%), Touriga Francesa (35%) e Sousão (5%). As uvas foram vinificadas em lagar com pisa a pé, fermentando de forma espontânea, e o vinho estagiou depois 18 meses em pipas de 600 litros. Esta é a quinta colheita de Monte Xisto e, em comparação com a inaugural, de 2011, percebe-se um ajustamento no volume alcoólico, bem mais contido no 2015. É um registo mais fino e fresco. O primeiro Monte Xisto era um Douro clássico, mais concentrado, extraído e maduro. Este mostra outro refinamento e elegância. Não impressiona pela exuberância da fruta, nem pelo volume e vigor tânico, mas está lá tudo, de uma forma sóbria e agradabilíssima. É um vinho cheio de pureza, vivacidade e profundidade que já começa a reflectir a forma orgânica como a vinha é trabalhada. Sendo ainda demasiado jovem, já mostra um acabamento primoroso, mas merecia ter ficado mais algum tempo na penumbra da adega. Esse tempo iria acrescentar-lhe ainda mais complexidade e tornar mais evidente a sua riqueza e qualidade. O problema é que só os grandes produtores se podem dar ao luxo de dar anos de cave aos vinhos. O Quinta do Monte Xisto é quase um vinho de garagem. A quinta tem 40 hectares, mas apenas dez são vinha. E as produções são baixas, o que explica que só tenham sido cheias seis mil garrafas e que o preço recomendado seja de 65 euros.