Entre o desvendar e o ocultar, eis Grace Jones

Para uns continua a ser uma diva aristocrática – será por isso que se nega a revelar a idade. Para outros é eterna, e por isso não tem idade.

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Nunca saiu de cena, mas dir-se-ia que depois de muito tempo em que parecia esquecida, eis que nos dois últimos anos Grace Jones tem estado mais presente do que nunca. O que não deixa de ser surpreendente para quem começou por ganhar protagonismo na segunda metade dos anos 1970.

Em 2016 um dos seus álbuns mais marcantes (Warm Leatherette, 1980), teve direito a reedição luxuosa e lançou a autobiografia I’ll Never Write My Memoirs – escrita na companhia do jornalista, crítico e produtor inglês Paul Morley – onde a sua vida foi revista, ao mesmo tempo que dava concertos pelo mundo, conquistando até plateias que à primeira vista não seriam óbvias, como aconteceu na meca das músicas alternativas, o Primavera Sound de Barcelona. Até em Portugal tem sido lembrada, bastando recordar uma das festas mais badaladas do ano passado, no espaço do Lux, em Lisboa, onde era a visada. E agora surge o documentário Bloodlight and Bami, realizado por Sophie Fiennes (o Doclisboa exibe-o esta sexta-feira, às 21h30, no Cinema São Jorge), tanto retrato do quotidiano da mulher, como da transformação da mulher em ícone quando sobe ao palco. 

Aos 69 anos (nem confirmados, nem desmentidos, pela própria) tem sido imensas coisas: cantora, modelo, actriz, ícone de estilo, esfinge, diva ‘disco’, capa da Playboy e da Vogue, Bond girl na cama com Roger Moore ou guerreira em Conan, O Destruidor com Schwarzenegger, ou ainda símbolo do pós-modernismo (em 2011, na exposição Postmodernism: Style and Subversion 1970-1990 do Victoria & Albert de Londres, era um dos grandes destaques).

Nesse sentido não espanta que a sua sombra paire sobre muitas das facetas da cultura pop actual. Quase todas as cantoras que a partir dos anos 1980 alcançaram protagonismo (de Madonna a Rihanna ou Lady Gaga) se inserem no mesmo padrão, amálgama de cultura sonora e comunicação visual, promessa de partilha de intimidade e manutenção de mistério. É verdade que no documentário de Sophie Fiennes somos confrontados com alguns dos seus traumas, como os abusos que alegadamente terá sofrido durante a infância às mãos do padrasto, mas o enigma sobre os seus desejos, ambições, ideias políticas e até a idade, onde vive e o estado civil, são calculadamente uma incógnita.

Nesse jogo, entre desvendar e ocultar, Grace Jones é perita. E nisso os números musicais apresentados no documentário, através de algumas das canções mais conhecidas (Slave to the rythm, Warm leatherette, Pull up to the bumper, La vie en rose ou My jamaican guy), são exemplares.

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George Pimentel/WireImage

Surge quase sempre de máscara, mas a figura imperial e exótica é a de sempre, feminina e masculina, sensual andrógina. Faz o mínimo de movimentos, precisos e claros, mas nunca deixa de ser teatral. Cenicamente, são espectáculos aparentemente despojados e minimalistas mas de impacto maximizado. Até a sua forma de empregar a voz – entre o registo cantado e falado – se movimenta entre a manifestação de emoções e a quase inexpressividade.

Nasceu na Jamaica e na adolescência mudou-se com a família para Nova Iorque onde foi descoberta por uma agência de modelos, embora o seu porte andrógino não colasse com os padrões americanos, acabando por tentar a sorte na Europa, onde viria a trabalhar para designers como Yves Saint Laurent, Kenzo e, principalmente, Issey Miyake, que nunca mais a viria a abandonar.

De regresso a Nova Iorque, a meio dos anos 1970, viria a conhecer o designer gráfico, ilustrador e fotógrafo francês Jean-Paul Goude, de quem viria a ter o único filho, e que se viria a revelar decisivo no seu percurso: foi responsável pela sua imagem, pelas coreografias de palco, pelos vídeos e capas de álbuns, nos momentos decisivos da sua carreira.

O geométrico corte de cabelo, de estética militar, e o corpo atlético, que alimentou durante anos o mistério sobre o seu género, para além de canções ‘disco’ como I need a man (1977), converteram-na em símbolo da comunidade gay, ao mesmo tempo que se tornava imagem desse período hedonista. Era vista ao lado de Andy Warhol, Keith Haring ou Robert Mapplethorpe no mítico Studio 54.

Quando se fartou dos desfiles, virou-se para a música, acabando por gravar três álbuns (Portfolio de 1997, Fame de 1978 e Muse de 1979) em plena febre "disco", ao lado do produtor Tom Moulton, embora o período musical mais rico, e que ainda hoje permanece intocável, seja o que se lhe seguiu. Foi no álbum Warm leatherette (1980) que se reinventou, libertando-se da imagem de diva ‘disco, conseguindo aliar o sucesso popular com a credibilidade artística.

Foi Chris Blackwell, o histórico patrão da editora Island, que a convenceu a mudar. No "disco" o centro era o produtor. Agora o que lhe era sugerido era o ênfase ser ela e os músicos, ao mesmo tempo que mudava o conceito: qualquer coisa que promovia um encontro entre a Jamaica das suas raízes e do reggae com a Nova Iorque do pós-punk e da new wave, sublinhada pelo estilo da Paris mais elegante.  

O balanço físico orgânico, mas tecnologicamente desenvolvido, da sua música dessa época, deve-se em grande parte ao trio de músicos que ainda hoje a rodeiam, como é visível no documentário: o guitarrista Barry Reynolds e, principalmente, a extraordinária e histórica secção rítmica constituída por Sly Dunbar (bateria) e Robbie Shakespeare (baixo). A sua maneira de cantar mudou aí, num registo meio-cantado, meio-falado, entre a revelação emocional e a ausência da mesma, entre contar uma história e parecer que estava a viver um sonho, sendo ao mesmo tempo desafiadora e imponente, corpo raro em postura germânica. Sonoramente é quando a sua música é mais atmosférica, em torno dos elementos rítmicos, que se torna mais precisa e estimulante.

Ao longo dos anos lançou dez álbuns de originais, o último dos quais, Hurricane em 2008, encontrando-se, pelas indicações no documentário, a trabalhar num novo registo. Mas a definição do som encontra-se inscrito para a posteridade nesse álbum de 1980 onde escolhia canções de Tom Petty, Bryan Ferry ou Smokey Robinson, e fazia-as suas, acabando por marcar posição tanto na Londres que via nascer os "novos românticos" (Spandau Ballet, Human League), como na Nova Iorque do pós-disco-punk, sem deixar de ser ela própria.

No fim de contas essa forma híbrida como sempre operou é talvez a grande marca de Grace Jones e o que permite que, hoje, seja fácil deixarmo-nos tocar por um dos muitos elementos que constituem a sua vida e arte. Para uns continua a ser uma diva aristocrática - será por isso que se nega a revelar a idade. Para outros é eterna, e por isso não tem idade.

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