A corrida mais louca de Astérix
Astérix e a Transitálica é o 37.º volume das aventuras de Astérix, Obélix e os restantes gauleses. Falámos com Jean-Yves Ferri e Didier Conrad, respectivamente, o argumentista e desenhador que tomam conta da saga desde 2013. O livro sai em Portugal e no mundo esta quinta-feira.
Depois de Astérix entre os Pictos, de 2013, e O Papiro de César, saído dois anos depois, o argumentista Jean-Yves Ferri e o desenhador Didier Conrad voltam à carga com uma aventura de Astérix, o gaulês, criado por René Goscinny e Albert Uderzo em 1959.
Desta feita, em Astérix e a Transitálica, que sai na quinta-feira em Portugal editado pela Asa-LeYa ao mesmo tempo que no resto do mundo, Astérix, Obélix e Ideiafix embarcam numa corrida que atravessa Itália (de onde a família de Uderzo era originária), num plano aprovado por César para atestar a superioridade das vias romanas. É, dizem os próprios autores, um regresso paródico ao ambiente de filmes dos anos 1970 e 1980 como A Corrida Mais Louca do Mundo e Mad Max.
Ferri e Conrad estiveram em Lisboa na segunda-feira para promover o lançamento do álbum.
Ambos começaram a trabalhar em livros originais, agora estão a continuar o trabalho criativo de outras pessoas, da forma como eles o fariam. Como é que isso funciona?
Jean-Yves Ferri – Bem, é preciso dizer que lemos o Astérix em jovens e portanto esse estilo não nos era desconhecido. E passou um bocado para os nossos genes.
Mas como é a adaptação de um modo para o outro?
Didier Conrad – Nós os dois não temos a mesma experiência.
Pois, o Didier já tinha feito o Lucky Luke antes de pegar no Astérix, o Jean-Yves nunca tinha trabalhado neste registo antes de 2013...
D.C. – Sim, o Lucky Luke, o Marsupilami…e, por prazer, fiz uma série de álbuns num estilo muito hergéiano. Mudei de estilo como quem muda de língua, pode-se exprimir coisas diferentes. E o estilo do Uderzo permite muito o que é emocional, que envolve acção, de uma maneira particular. E põe alguém a pensar de uma forma diferente.
J.-Y.R. – Isto acaba por ser um exercício criativo. Se julgamos estar a fazer algo menos criativo do que nos nossos próprios livros? Não, porque é preciso reinventar, não é copiar. É recriar uma história que seja realmente nova a partir de material antigo. É um trabalho de criação que tem constrangimentos, mas é criativo por si só.
D.C. – E os constrangimentos, sobretudo, envolvem ser-se avaliado por toda a gente em comparação com o original. Se tu fazes algo com o teu estilo pessoal, podes acabar e dizer que está bem como está – porque foste tu quem criou, quem delimitou, quem sabe o que se podia fazer de melhor. A zona de conforto não é a mesma.
Sempre houve, e continua a haver, referências actuais nas histórias. Como é que se actualiza, enquanto se continua, um estilo com quase 60 anos?
J.-Y.R. – O que Goscinny criou foi uma aldeia gaulesa, intemporal, que pode servir de suporte a temas bastante modernos. Não está datada no tempo. É possível falar do espírito do tempo, da época de hoje, servindo-nos destas pequenas personagens, todas tipos bem definidos, o chefe, o artista que canta, o religioso…
D.C. – É um estilo de banda desenhada em que todas as formas são feitas pelo criador, não pelas pessoas que a praticam. É feita para ser acessível a qualquer leitor.
Qual é o limite?
J.-Y.R. – O limite é não falar da actualidade ainda quente. No terrorismo, por exemplo; se um dia quisermos abordar esse tema no Astérix, será através piratas, por exemplo, mas de uma maneira que não se possa ligar a um facto específico, porque é preciso ter em atenção que isso torna-se antiquado bastante rapidamente. É preciso que seja engraçado de ler, mesmo que não se percebam as referências.
Albert Uderzo aprova o que vocês fazem?
J.-Y.R. – Ele encoraja-nos e não intervém nos álbuns. Só fez um comentário, que foi pôr um ponto num i. E achámos que ele exagerou. É a ditadura. [risos]
Há elementos nos livros originais que não seriam tão bem recebidos hoje – por exemplo, as personagens de origem africana, que continuam a existir, são estereótipos que o mundo não reconhece da maneira que o fazia há 60 anos.
D.C. – O desenho não podemos mudar – por exemplo, não podemos pôr o Astérix com lábios grandes. As ideias é que as podemos apresentar de uma maneira diferente. Se virmos como é que as mulheres são tratadas nos livros originais, têm uma imagem próxima das donas de casa dos anos 1960. Não as podemos tratar da mesma maneira, seria bizarro.
J.-Y.R. – O olhar sobre a diferença mudou. É verdade que na época do Goscinny se usavam os lábios grossos e não havia problemas. Hoje, vive-se uma época em que há uma crítica que provavelmente não conhece os livros e aproveita a ocasião para apontar e dizer: “Ah, a imagem dos negros!” É rebuscado, porque o Astérix é muito conhecido, é um símbolo e estão a tentar aproveitar-se disso.
D.C. – [Em O Papiro de César] As pessoas tiveram um problema com o Babá [vigia dos piratas], que não sabe ler e dizem que é um estereótipo dos negros que não sabem ler. E, de facto, há escritores-fantasma negros no livro. O leitor que fez essa reflexão não leu, viu um detalhe e apontou. São estereótipos. E é o estilo da série. Se um certo estereótipo fosse usado e outro não, seria um pouco bizarro.
J.-Y.R. – Goscinny ria-se sobretudo dos gauleses. São os primeiros a serem caricaturados.
D.C. – São os gauleses que têm os narizes grandes, os italianos não, têm narizes mais finos, mais elegantes.
Goscinny era alguém com um enorme amor pelo cinema, que era uma influência grande na obra dele, e depois uma arte que ele perseguiu. Que influências de filmes tiveram para fazer este livro?
J.-Y.R. – Pensei nos filmes dos anos 1970 e 1980, de ralis e rotas, um tipo de cinema como a A Corrida Mais Louca do Mundo ou Mad Max. Este livro é um bocado uma caricatura disso.
D.C. – A mim o cinema não me influencia particularmente, o máximo foi o Ben-Hur, por causa dos carros.