Extracto de um grupo de plantas medicinais provoca cancro do fígado
Sabe quais são os compostos das ervas medicinais e os seus efeitos? Um novo estudo conclui que o ácido aristolóquico, um extracto de plantas medicinais, é uma das causas do cancro do fígado.
Há quem pense (e diga) que as ervas medicinais são produtos naturais e, por isso, são bons para a saúde. Mas, afinal, o que é um produto natural? É o oposto de químico? Os produtos naturais também são químicos. Por isso, as ervas medicinais são produtos químicos e podem ter efeitos tóxicos na saúde. Uma equipa de cientistas de Singapura e Taiwan publicou esta quarta-feira um artigo científico na revista Science Translational Medicine em que se concluiu que o ácido aristolóquico – extraído das aristolóquias, plantas trepadeiras – está também relacionado com o cancro do fígado.
O ácido aristolóquico é um composto das plantas do género Aristolochia, bem como do Asarum. Em todo o mundo, são cerca de 100 as espécies de plantas que contêm este ácido, avisa o coordenador do trabalho, Steve Rozen, da Faculdade de Medicina da Universidade de Duke (Estados Unidos) e da Universidade Nacional de Singapura. Steve Rozen indica-nos ainda três espécies presentes em Portugal que têm ácido aristolóquico: a Aristolochia baetica, a Aristolochia paucinervis e a Aristolochia pistolochia.
Estas plantas são usadas há séculos na China e noutros países para fins medicinais, como o tratamento da artrite reumatóide e de outras inflamações, para emagrecer e tratar picadas de cobras, aranhas ou escorpiões.
Contudo, os efeitos tóxicos deste ácido têm sido cada vez mais visíveis. Na década de 90, na Bélgica, cerca de 1800 mulheres tomaram uns comprimidos para emagrecer. Esses comprimidos tinham extractos da raiz de uma planta da família das aristolóquias e cerca de 100 dessas mulheres acabaram por ser hospitalizadas em Bruxelas com falência renal e a precisar de hemodiálise.
Mas há outros casos. Por exemplo, nos Balcãs percebeu-se que as aristolóquias, que crescem nos campos espontaneamente, contaminavam os alimentos à base de trigo. Descobriu-se assim a origem da doença nefropatia endémica dos Balcãs, que só afectava as comunidades rurais na Bósnia, Bulgária, Croácia, Roménia e na Sérvia.
As autoridades de saúde têm consciência do perigo deste ácido e, em 2001, a agência que regula os medicamentos e os alimentos nos Estados Unidos (a Food and Drug Administration) alertava para o risco cancerígeno deste ácido. Também a Organização Mundial da Saúde o considerou cancerígeno. O seu uso como erva medicinal está proibido na Europa e nos Estados Unidos desde 2001, e em países asiáticos como Taiwan e o Japão desde 2003.
Em 2013, dois artigos científicos, também na Science Translational Medicine, indicavam que este ácido provoca cancro do trato urinário. Além disso, através da identificação das marcas (assinatura molecular) que o ácido aristolóquico deixa na molécula do ADN, também se percebeu que provoca cancro dos rins e do fígado.
Muitas mutações genéticas
Agora, a equipa de Singapura e Taiwan voltou a encontrar uma relação entre o cancro do fígado e esse ácido. Para isso, os cientistas analisaram sequências de ADN de tecidos com cancro do fígado (o carcinoma hepatocelular) para perceber se existiam mutações genéticas associadas ao ácido aristolóquico.
O ADN é uma longa cadeia com pequenas moléculas, identificadas com as letras A, C, G e T, que compõem os genes e são eles que dão instruções às células para fabricar as proteínas, com uma multiplicidade de funções. Quando há mutações genéticas, significa que há mudanças nessas letras. Por exemplo, o ácido aristolóquico muda normalmente as “letras” A e T. “Por vezes, essas mutações aleatórias têm o efeito de activar um gene que causa cancro ou de desligar um gene que evita o cancro”, explica Steve Rozen.
Neste estudo, verificou-se que o ácido aristolóquico causou 59% das mutações em genes envolvidos no cancro. Um desses genes é o famoso p53, que, quando o seu ADN é danificado, desenvolve-se cancro.
Ao sequenciar o ADN do cancro do fígado em 98 pessoas de Taiwan, a equipa percebeu que em 76 (78%) havia a assinatura do ácido aristolóquico. Também foi identificada a marca deste ácido em 42 de 89 cancros do fígado na China (47%), cinco entre 26 no Vietname (19%), cinco entre nove em outros países do Leste asiático (56%). Fora da Ásia, onde tradição de consumo destas plantas não é tão antiga, os valores são mais baixos: dez casos entre 209 na América do Norte (5%) e quatro entre 230 na Europa (1,7%).
“Foi uma descoberta inesperada. Não suspeitávamos que a exposição ao ácido aristolóquico fosse tão predominante em tantas áreas diferentes”, frisa Steve Rozen num comunicado da sua instituição. E acrescenta que a sua equipa está a desenvolver testes de sangue e de urina para detectar a exposição de cada pessoa a este ácido.
Os cientistas deixam também uma mensagem sobre a venda de produtos com este ácido. “As ervas que contêm ácido aristolóquico são difíceis de regular”, alerta Steve Rozen. Afinal, mesmo que sejam proibidas em alguns países encontram-se à venda na Internet e podem estar na composição de alguns produtos sem estarem devidamente identificados e rotulados.
“A educação e a consciencialização pública são importantes para se evitar o seu uso”, sublinha Alex Chang, do Hospital Tan Tock Seng (Singapura) e também autor do artigo. Até porque, como salienta Steve Rozen, muitas vezes não se tem noção dos efeitos deste extracto. “Não penso que a maior parte das pessoas compreenda que o ácido aristolóquico seja perigoso ou saiba o que as plantas contêm. Até nós ficámos muito surpreendidos pela prevalência das mutações genéticas provocadas por este ácido no cancro do fígado em Taiwan e noutras partes da Ásia.”