A Bacalhau

Num momento de pausa dos Deolinda, Ana Bacalhau aproveita para se aventurar em Nome Próprio. Um disco pop que é tanto da aldeia quanto da cidade, em que se aproxima tanto de Janis Joplin quanto de um mandador de baile.

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Sabia que quando se atrevesse a ter uma existência musical fora dos Deolinda teria de encontrar um ponto de tangência entre as várias formas da música tradicional portuguesa e o ideário anglo-saxónico que a fez crescer

Ana Bacalhau sabia que quando se atrevesse a ter uma existência musical fora dos Deolinda teria de encontrar um ponto de tangência entre as várias formas da música tradicional portuguesa e o ideário anglo-saxónico que a fez crescer a idolatrar Janis Joplin. Mas esse ponto de tangência, algo que lhe permitisse estar em simultâneo na cidade e na aldeia, uma versão pessoal do “entre Braga e Nova Iorque” de António Variações, tardava em revelar-se. Até que ao assistir a um concerto de Fausto, quando o músico arranca com De um miserável naufrágio que passámos, Ana vislumbra naquele momento o equilíbrio perfeito entre os dois mundos e vê acender-se a candeia que há-de mostrar-lhe o caminho a seguir

“Andava à procura de unir esses dois mundos – que são perigosos de juntar, na verdade, sem que fique uma pessegada”, conta ao Ípsilon. “O Fausto, nessa música, usa os ritmos tradicionais portugueses e por cima quase fala. Eu ouvi aquilo e pensei ‘Isto é tipo hip-hop à mandador de baile e é mesmo aquilo que eu procuro’.”

Encontrada essa solução teórica, não muito distante em termos genéricos de algo que Deolinda, Diabo na Cruz ou B Fachada e demais filhos bastardos dos Gaiteiros de Lisboa têm vindo a fazer enquanto recicladores da tradição com recurso aos seus próprios vocabulários, tornou-se claro na cabeça de Ana Bacalhau que teria agora de encomendar a alguém umas quadras movidas pela força do embalo do troar de um ritmo tradicional. E o nome que lhe surgiu com absoluta certeza foi o da rapper Capicua.

Se antecipadamente esse era já o tema que prometia tornar-se o centro do seu primeiro álbum a solo, mais ainda o seria depois de Capicua lavrar uma letra biográfica pronta a expelir às golfadas sobre um corridinho. A Bacalhau é o retrato mais aberto e factual de todos quantos Ana pediu aos vários autores e vai urdindo rimas que são um espelho da cantora tal como a conhecemos dos palcos: de mãos nas ancas, queixo para cima, dona do seu nariz, não se encolhendo com um apelido dado a graçolas vindas de qualquer miúdo com mania que tem piada e fazendo desse flanco aparentemente desprotegido (e à mercê de qualquer golpe) uma razão para se afirmar e se exibir em palco com orgulho.

A composição de A Bacalhau é assegurada por Luís Peixoto, o homem da banda de Ana Bacalhau mais próximo das músicas tradicionais, responsável por cavaquinho, bouzouki e bandolim, contraponto necessário a um Luís Figueiredo no piano formado pelo jazz; e a que se juntam dois todo-terrenos musicais – o contrabaixista Zé Pedro Leitão, também dos Deolinda, e o baterista Alexandre Frazão, cuja bateria parece conter todos os possíveis universos rítmicos constantes entre New Orleans e Nairobi, com escalas óbvias no Rio de Janeiro e em Liverpool.

E Liverpool não cai de pára-quedas nesta cartografia musical de Ana Bacalhau. Da mesma maneira que num dos primeiros ensaios, depois de ter andado a pesquisar corridinhos no YouTube e a experimentar com a letra de Capicua, Ana lançou essa deixa para o tema que pretendia, também quando chegou junto da banda com um dos temas que lhe foi oferecido por Nuno Figueiredo (dos Virgem Suta) era já clara a sua ideia para aquela canção que lhe chegara tímida e hesitante. “O Nuno nem estava certo da música e de que fosse resultar em alguma coisa que me fosse útil.” E logo lançou para o baterista: “Alex, finge que és o Ringo Starr.” E foi assim que aquela ideia pouco confiante ganhou contornos beatlenianos – lembra também algum do tom menos festivo do projecto Humanos, algo que reaparece em Só querer buscar – e a sua voz parece deslizar algures pelos Beatles do período final (de White Album a Let it Be). Essa foi, aliás, uma das grandes conquistas deste Nome Próprio: perceber que ouvia coisas que mais ninguém ouvia nas canções que lhe aterravam no colo e que sabia conduzi-las até à sonoridade com que as embrulhava mentalmente.

Se já falámos de Fausto e aludimos a Variações, foram essas mesmas as balizas que Ana Bacalhau concretizou no pedido de canções que fez a Figueiredo, Samuel Úria, Francisca Cortesão (Minta), Nuno Prata, Miguel Araújo, Jorge Cruz (Diabo na Cruz), Afonso Cruz, Carlos Guerreiro (Gaiteiros de Lisboa) ou António Zambujo. “E já é um universo tão vasto”, diz, “que a partir daí podiam fazer o que bem entendessem.” Deu-lhes ainda uma outra pista, uma subtil cola temática para todo o álbum: “Como nos Deolinda canto os outros, fazia sentido num trabalho a solo cantar-me a mim.” Assim, as palavras dos outros são sempre uma procura de alcançar Ana. Nunca de defini-la, mas de tocá-la e sugeri-la.

Bacalhau em Janeiro

Do elenco anterior de autores foram subtraídos propositadamente Márcia e Janeiro. Expliquemos agora porquê. Antes de Nome Próprio, Ana Bacalhau arriscou um primeiro passo fora dos Deolinda com o espectáculo 15, apresentado no Teatro São Luiz em Dezembro de 2013, em que se transmutava numa cantora de um reportório feito de referências tão díspares quanto Pearl Jam e Amália Rodrigues, Janis Joplin e Miriam Makeba. “Esses concertos permitiram-me perceber o que daqueles tempos de adolescência ainda me servia e o que já não me servia”, diz.

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“E servia-me uma forma de cantar de peito e coração abertos, aquilo que encontrei na Janis Joplin, que foi uma das minhas primeiras influências no canto. Essa coisa de pôr cá para fora as feridas todas, o sangue todo, uma coisa quase gore [risos], que ainda existia em mim” e que, agora, transborda sem um grama de vergonha para o final de Ciúme. “Foi um teste para mim mesma, para ver o que é que acontecia comigo quando me propunha fazer algo em meu nome e fora de uma banda – porque sempre estive em bandas, desde o início”, recorda. Mesmo tratando-se de versões, havia já em 15 a procura por uma sonoridade pessoal que, aos poucos, Ana começava a esboçar. Desde logo pela presença chave de Luís Figueiredo, com piano e teclados a criarem uma distância de segurança em relação ao mundo particular que os Deolinda vêm construindo nos últimos dez anos.

Só que depois de 15 a agenda dos Deolinda intrometeu-se, os álbuns Mundo Pequenino e Outras Histórias mais respectivas digressões exigiram atenção, e essa vontade de seguir pelo seu pé que atiçara no São Luiz era deixada em sossego, à espera de ser reactivada num momento mais propício. Pelo meio, porém, em Setembro de 2014, num excepcional convite para se juntar ao cartaz do Caixa Alfama, preparou um reportório composto por fados tradicionais – “Estava para morrer de nervos porque ia meter-me mesmo no epicentro do fado e tinha muito medo de não sair de lá inteira se não fizesse um bom trabalho”, confessa –, a que resolveu acrescentar um inédito pedido a Márcia. Maria Jorge tornar-se-ia, assim, o primeiro tema de Nome Próprio.

Enquanto se descobria nas canções dos outros, em 15, Ana Bacalhau voltava também a pegar na guitarra, companheira de adolescência quando amontoava umas palavras em inglês para soar e se sentir próxima dos seus heróis musicais. A aposta num caminho próprio tornava também quase obrigatória a tentativa de reacender um fogacho autoral que costuma ser apagado pela sua confessa preguiça. Nome Próprio só nos permite conhecer esse lado da cantora através do tema Deixo-me ir, embora duas outras letras da sua pena surjam musicadas por Janeiro.

Músico de Coimbra, formado no Hot Clube, Janeiro lançou um discreto EP em 2016, mas Ana Bacalhau percebeu naquelas poucas canções um jeito para domar melodias muito pouco alinhado com os seus (então) 22 anos. Na sequência de um encontro fortuito num concerto, em que ele achou que ela estaria equivocada e a confundi-lo com outro qualquer autor, os dois lá se entenderam o suficiente para perceber que Ana tinha uma pilha de letras à espera de sair do papel e Janeiro tinha uma facilidade quase irritante de colar música às palavras. Ana tirou três letras desse monte e em dois dias ele musicou-as. São duas das grandes pérolas de Nome Próprio: Só eu e Menina rabina.

Aquilo que Janeiro oferece a Ana Bacalhau é um certo classicismo pop, de quando a música popular se engrandecia com jeitos jazzísticos. Junte-se a isso um registo baladeiro folk, sugestões do melhor cançonetismo português dos anos 50/60, jazz trôpego à Tom Waits, Gainsbourg ou Dionysos, Beatles, Variações e Fausto e aquilo que se obtém é um óptimo exemplar da fauna pop. Com o cuidado de não se ver atropelado pelo nome Deolinda.

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