George Saunders ganha o Booker com um livro a desafiar as regras do romance
George Saunders, mestre do conto americano, venceu a edição de 2017 do Booker Prize com a sua estreia no romance. Lincoln no Bardo conta a dor e o absurdo da morte a partir de um dos maiores símbolos do país: Abraham Lincoln. Decida se quer entrar neste mundo.
E a um americano segue-se outro americano. George Saunders é o vencedor da edição de 2017 do Man Booker Prize com Lincoln no Bardo, o primeiro romance na carreira deste escritor de que se tornou admirado pela qualidade dos seus contos e de uma novela, Pastorália. O júri do prémio destacou o carácter único e extraordinário da obra, que parte da morte do filho de 11 anos de Abraham Lincoln. Numa noite de 1862, um homem que acontece ser presidente dos Estados Unidos, um país em guerra civil, curva-se na sua dor ao enterrar Willie num cemitério de Georgetown. A partir daí Saunders constrói um coro tão invulgar quanto complexo de vozes que fintam a fronteira da realidade, cruzando o absurdo no que se revela uma espécie de épico sobre a perda e a aceitação da perda.
Com a estrutura de um diálogo, o romance, que conheceu edição portuguesa na Primavera deste ano (Relógio D’Água), convoca textos históricos, cartas e citações do então presidente com falas de personagens criadas a partir de um relato que Saunders nunca esqueceu: um dia, a sua mulher contou-lhe como Willie morrera e a imagem que lhe surgiu foi a de uma Pietà, um homem em profundo sofrimento pessoal com o país imerso numa guerra fratricida. Vinte anos depois, o celebrado autor, mergulhou num texto que lhe levou quatro anos de escrita e testou a sua capacidade de criar uma narrativa de maior fôlego. Saudado pela crítica, conotado como um livro difícil de chegar ao grande público, Lincoln no Bardo (numa alusão a uma espécie de limbo, segundo a filosofia tibetana) foi considerado uma obra de arte extraordinária, palavras de Lola Yong, porta-voz do júri. Sublinhando o desafio que o romance põe a quem o começa a ler, Yong acrescenta que esse desafio faz parte da sua singularidade. "Está como que a dizer: 'Desafio-o a que se envolva neste tipo de história, que vá por este caminho.' É incrivelmente gratificante."
Lincoln no Bardo sucede, assim, a O Vendido (Elsinore 2017), do também americano Paul Beatty, e ganha este prémio que distingue a melhor obra de língua inglesa e que, há quatro anos, se estendeu aos autores norte-americanos. Na lista de candidatos estavam Outono, da escocesa Ali Smith (Elsinore, 2017), 4321, do norte-americano Paul Auster, Elmet, da inglesa Fiona Mozley, Exit West, do paquistanês Moshin Hamid, e History of Wolves, da norte-americana Emily Friedlund.
Admirado entre os seus pares, considerado um autor de culto, Saunders, de 58 anos, tem aqui mais uma legitimação do seu sucesso no teste que muitos lhe pediam: que experimentasse o romance. Como se ser um autor de contos não fosse suficiente para o considerar um dos grandes autores de língua inglesa.
Natural do Texas, onde cresceu numa pequena cidade num meio familiar pobre, estudou em Chicago e no Colorado, formou-se em engenharia, foi funcionário numa fábrica, aprendeu literatura; vive no estado de Nova Iorque, ensina escrita e passa temporadas na Califórnia. Com seis volumes de contos e novelas e um de ensaios, esteve inédito em Portugal até 2016, ano em que a Ítaca publicou Dez de Dezembro, colectânea de contos que mereceu rasgados elogios em 2014, quando foi publicada nos Estados Unidos, mas a sua obra mítica é Pastoralia, original de 2000 que a Antígona trouxe para português, uma novela sobre o absurdo da actualidade, caricatura de uma América seduzida pelos reality-shows. Nesse corpo de trabalho, destaque para personagens miseráveis, alienadas, indefesas, frágeis, que coloca numa rede de absurdos, criando uma linguagem que desafia a norma. Numa entrevista ao PÚBLICO, afirmou: “A minha abordagem artística é intuitiva. Quando começo uma história, tento não ter nenhuma noção sobre o tema porque a minha cabeça não é suficientemente sofisticada para os abandonar se tiver de ser. Sei que se tiver um plano para uma história, ela vai falhar. Há, sobretudo, improvisação. Quando começo, tenho apenas uma noção muito pequena, e geralmente é algo divertido. Então prossigo, tentando seguir aquela energia, e lentamente os traços daquilo a que chamamos literatura começam a aparecer.”
Lincoln no Bardo, apesar da temática, faz parte dessa enorme paródia do absurdo que é a escrita de Saunders. Uma gargalhada que contempla a ambição, a luta por ser aceite, o medo da falha, a dor de um pai perante a morte do filho como a lemos no romance que agora ganhou por unanimidade as 50 mil libras do mais prestigiado dos prémios de língua inglesa.
"Para nós, ele destacou-se pela sua inovação, o seu estilo muito diferente", disse ainda Yong, sublinhando o modo paradoxal com que justapôs o mundo dos vivos e o dos mortos. Havia a "tragédia pessoal" de Lincoln com a morte do filho, a par da "vida pública". "Temos a morte individual, muito próxima e pessoal; e uma questão muito mais ampla, do cenário político e da morte de centenas de milhares de jovens", acrescentou a porta-voz do júri, que que ao dar este prémio a Saunders não foi pelo caminho mais fácil. Nem pelo mais óbvio. Saunders é desafiante para o leitor, como foi para ele a ideia de partida: como enquadrar uma Pietà num teatro do absurdo? Fazendo quase um poema, montando uma dramaturgia, desafiando as fronteiras do romance.