Quase metade dos 1500 refugiados que chegaram já deixou Portugal
Entre Dezembro de 2015 e a semana passada, 1511 pessoas foram acolhidas em Portugal através da recolocação da União Europeia. Mais de 720 interromperam o programa e saíram do país.
Lara e Khaled viviam no mesmo bairro em Damasco, mas só se conheceram num campo de refugiados na Grécia, onde se casaram, depois de fugirem da Síria. Khaled, com 24 anos, foi coagido a ser agente secreto do regime de Bashar al-Assad, recusou e foi preso. Foi libertado três meses depois quando fingiu aceitar ser espião. Fugiu para o Líbano, apanhou um avião para a Turquia e depois um barco para a Grécia.
Ainda na Síria, Lara Alhalabi, 20 anos, era estudante de Literatura Inglesa na Universidade de Damasco quando foi sequestrada por um dos movimentos rebeldes e libertada a troco de resgate. Deixou de se sentir segura e partiu sem a família. Fugiu para a Turquia, com um grupo de pessoas, e de lá de barco para a Grécia.
Os dois chegaram a Portugal em Maio passado, num avião que trazia outros requerentes de asilo, entre os quais outros 20 sírios que foram acolhidos pelo Conselho Português para os Refugiados (CPR). Destes 22 em Portugal a partir de Maio, apenas seis permanecem em Portugal.
Quinze foram para a Alemanha e um está na Holanda. Fizeram-no, diz quem ficou, porque não tinham nada a perder, não concordaram com a forma como foram acolhidos, sentiram-se humilhados, como ainda se sentem Khaled e Lara, que vivem numa casa no Cacém. Zozan e Shehar e a irmã dele, Shadega, que estão numa outra casa na zona de Sintra, fugiram de Alepo.
Portugal não estava na lista de oito países escolhidos de Lara e Khaled, quando se inscreveram na Grécia para o programa de recolocação da União Europeia (UE). No âmbito desse programa aprovado em Setembro de 2015, os países comprometem-se a acolher requerentes de asilo, da Grécia ou da Turquia, e a conceder-lhes o estatuto de refugiado ou protecção internacional. Agora que cá está, o casal quer ficar.
Do conjunto das 362 pessoas acolhidas pelo CPR, desde Dezembro de 2015, no início do programa de recolocação, apoiado pela UE, “216 abandonaram os projectos de acolhimento”. Permanecem 146 pessoas.
"Não há abandonos"
Para estas saídas de 60% das pessoas que acolheram, o CPR avança com explicações semelhantes às das outras entidades: os refugiados saem para reencontrar familiares ou as suas comunidades noutros países, diz a porta-voz do CPR, Mónica Fréchaut. “Muitas das pessoas que vieram para Portugal decidem juntar-se a familiares que estão noutro ponto da Europa”, corrobora o responsável da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), Rui Marques.
“Para nós não há abandonos, muito menos fugas, porque as pessoas não estão presas. O que há são processos de autonomização precoce. Há pessoas, adultos, que livremente decidem autonomizar-se mais cedo”, acrescenta Rui Marques. “No nosso caso, das cerca de 600 que nós acolhemos, cerca de 300 já se autonomizaram e 300 mantêm-se connosco.” Ou seja, metade.
O mesmo aconteceu com os cidadãos estrangeiros acolhidos pela União das Misericórdias Portuguesas (UMP), uma das cinco grandes instituições que celebraram protocolos com o SEF para o acolhimento, juntamente com a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e a Câmara Municipal de Lisboa (CML), além da PAR e do CPR.
“Desde o primeiro acolhimento, em 17 de Dezembro de 2015, até ao último, em 5 de Outubro deste ano, foram acolhidos 141 migrantes distribuídos por 25 misericórdias”, esclarece a UMP. Destes, “76 abandonaram voluntariamente as entidades de acolhimento não terminando o programa de recolocação que tinha um período de 18 meses.” A CML acolheu 231 refugiados e 136 saíram (58%).
Das cinco entidades responsáveis contactadas, apenas a CVP não disponibilizou os seus dados. "Consideramos que a nossa resposta não será uma mais-valia”, tendo em conta que o SEF já havia disponibilizado os dados globais, respondeu Joana Rodrigues, responsável da Área de Desenvolvimento Social da instituição.
Em cada uma das quatro que responderam, metade ou mais dos refugiados acolhidos deixaram Portugal antes de terminarem os 18 meses de programa (dois anos no caso da PAR). As quatro instituições totalizam 728 saídas de pessoas, às quais acresce o número (não divulgado) de saídas de pessoas acolhidas pela CVP. E isso resulta em metade ou mais de metade das 1511 que chegaram.
Para João Afonso, vereador da CML com o pelouro dos Direitos Sociais, estas saídas eram previsíveis, não comprometem o bom desenrolar e o sucesso do programa de acolhimento em Portugal. "As pessoas são colocadas num país e têm que aceitar esse país. O que acontece é que chegam aqui, não encontram as suas comunidades ou familiares e tentam juntar-se a eles noutros países", justifica.
Notificações para regressar
A estimativa do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) aponta contudo para uma taxa de abandono da ordem dos 30%, inferior à indicada pelas quatro instituições. Explica o SEF que “o número de pessoas que sa voluntariamente não pode ser fixado de forma absoluta, pois umas regressam voluntariamente a Portugal ou então quando detectadas em outros Estados-Membros são objecto de um pedido de retoma a cargo”.
E informa que cerca de 250 pessoas foram objecto de um pedido de retoma a cargo: significa que os Estados onde se encontram estas pessoas notificam-nas para regressarem a Portugal e informam o Estado português a quem solicitam que as aceite de novo. Não significa que todas voltem.
Das 216 pessoas que abandonaram o programa de acolhimento do CPR, “duas regressaram a Portugal voluntariamente”. Das 13 que voltaram porque foram notificados de que tinham de regressar a Portugal, uma família de quatro pessoas “voltou a fugir”, diz Mónica Fréchaut. A porta-voz acrescenta: “Muitas vezes fomos esperar as pessoas [notificadas para voltar] ao aeroporto e não vinham no avião.”
Lara Alhalabi conhece a situação de vários refugiados que deixaram Portugal ou querem fazê-lo. Diz que isso acontece mais pela demora na clarificação da sua situação do que pelo facto de “o projecto inicial ter sempre sido ir para um país do Norte da Europa”, se necessário passando por um país do Sul, como defende André Costa Jorge, do Serviço Jesuíta aos Refugiados.
Alemanha, Holanda, França ou Noruega faziam efectivamente parte das preferências de Lara e Khaled. Mas foi entusiasmo que sentiram quando chegaram a Portugal. Gostam muito das pessoas e do sol, e sentir-se-iam bem não fosse o que dizem ser "as falhas" encontradas. De país não escolhido, Portugal passou a destino aceite na expectativa de aqui terem um trabalho, a garantia de aulas regulares de português e um estatuto que se reflectiria na autorização de residência por três ou cinco anos.
Vidas em suspenso
A demora na concessão do estatuto de refugiado é um dos principais motivos que levam as pessoas a sair de Portugal, diz Lara Alhalabi, para quem as perspectivas continuam a depender da Autorização de Residência Provisória, de seis meses, renovável.
“Desde o primeiro dia, adorámos o facto de termos vindo para Portugal e queremos ficar. Mas não esperávamos que as condições fossem estas”, lamenta Lara, embora reconheça que conhece alguns refugiados que “tiveram a sorte de serem acolhidos por organizações que os acompanham de perto e que já têm documentos, aulas de português e trabalho”.
Várias vezes, Lara e Khaled deslocaram-se ao local onde esperavam ter aulas de português, e várias vezes se depararam com a ausência do professor. Deixaram de ir, para evitar a frustração de gastarem dinheiro com o transporte “para nada”, conta Lara.
Com os 150 euros mensais que recebem, pagam alimentação e transporte. O passe social não é opção para todos pelo elevado custo, quase 70 euros para quem está no Cacém e pretende circular na região de Lisboa. O CPR – que como todas as instituições anfitriãs recebe 333 euros por mês por refugiado – assegura as despesas com o alojamento, gás, água e luz.
Ensino intermitente
Contactada, a organização diz que só não acompanha mais de perto os refugiados por falta de condições e garante que neste momento o professor da instituição já voltou a dar aulas no Cacém. Mas reconhece as limitações existentes para fazer chegar o ensino da língua a todas as pessoas que acolheu. A oferta depende, em grande parte, do voluntariado por parte de pessoas, associações ou empresas de formação.
Isto resulta numa grande diversidade das respostas, seja nas opções para o ensino da língua, seja na atribuição de documentos aos requerentes de asilo em Portugal no âmbito do programa de recolocação.
Lara e Khaled estão inscritos no centro de saúde e têm número de contribuinte. “Isso resolveu-se bem e de forma muito rápida”, dizem. Porém, a empresa estrangeira que ofereceu a Khaled um emprego de tradutor para árabe, compromete-se a contratá-lo apenas quando ele tiver um número da Segurança Social e uma conta bancária. Isso não tem, e enquanto não tem, aguarda na incerteza.