Gulag, mais um dia de vida
Um livro contra um império. O Arquipélago Gulag teve este ano uma nova e cuidada edição em português. A memória dos campos de trabalho e morte, ainda hoje um território de confronto na Rússia de Putin, a terra dos oligarcas. Por coincidência ou não, no centésimo aniversário da revolução russa
O Arquipélago é tão-somente o herdeiro, o filho da Revolução.
Aleksandr Soljenítsin, O Carvalho e o Bezerro
Três homens correm na neve, em fuga. Dois deles conceberam o plano, desafiando um terceiro a acompanhá-los. Era o cozinheiro do campo, gordo e anafado, que iria servir-lhes de sustento na jornada. Prática comum nas evasões do Gulag: convidava-se a escapar um homem bem nutrido para depois ser morto e devorado pelos seus companheiros de fuga. Na gíria dos campos chamavam-lhes “a carne” ou “fornecimento com pernas”, falando-se também em “sangrar a vaca”. Os novatos, mais crédulos e inocentes, aceitavam participar em tentativas de evasão sem saber que iriam ser mortos para lhes comerem as vísceras; geralmente o sangue, os rins e o fígado, mas também os pulmões e os seios, que eram ingeridos em cru, uma vez que os fugitivos não acendiam fogos com medo de serem detectados. Como previsto, os dois homens mataram o cozinheiro e comeram-no. O caminho era mais longo do que pensavam. Então regressou a fome imensa, anoiteceu. Ambos sabiam que o primeiro que adormecesse seria morto pelo companheiro. Por isso, como na lenda de Xerazade, fingiram que não estavam cansados e passaram a noite a contar histórias fabulosas um ao outro, observando-se mutuamente. De madrugada, um deles não resistiu ao sono. O seu parceiro de fuga, amigo de muitos anos, cortou-lhe a garganta. Seria capturado dois dias mais tarde, com peças de carne fresca ainda no saco.
Houve de tudo, ali. Corpos seminus atirados dos vagões de gado para a berma da linha do comboio, cadáveres enterrados que o degelo das primaveras fazia voltar, intactos, à superfície do solo, homens que se mutilavam para serem dispensados do trabalho, cortando um pé ou uma mão, ingerindo colheres, peças de xadrez ou pedaços de vidro, injectando sabão derretido no pénis, infectando-se nas veias com agulhas de coser sujas e ferrugentas; viu-se um preso a pregar os testículos num banco de prisão, outro a pregar o escroto ao cepo de uma árvore morta. Os que se faziam passar por loucos eram encerrados nas alas psiquiátricas junto aos verdadeiros esquizofrénicos — passadas algumas horas, todos, mesmo os mais fortes, batiam aos gritos na porta blindada, implorando que os deixassem sair dali. Em longas travessias ferroviárias pela estepe, que duravam semanas ou mesmo vários meses, os guardas só davam água aos presos quando os comboios paravam para largar os cadáveres que se amontoavam a um canto, já despojados de todos os seus haveres. Muitos enlouqueciam de fome ou cansaço, mas sobretudo de sede. Um sobrevivente dos campos recorda-se que, numa viagem de comboio que durou 28 dias, apenas em três ocasiões foi dado de beber aos prisioneiros.
Naquele que é um dos mais cruciantes relatos do quotidiano dos campos soviéticos, Man is Wolf to Man (1998), o judeu polaco Janusz Bardach conta a sua viagem de barco até Kolymá, em 1942, quando a secção das mulheres foi assaltada por criminosos de delito comum, com o consentimento tácito dos vigilantes. As mulheres foram violadas sucessivamente por muitas dezenas de homens; depois, os homens voltaram-se para os rapazes adolescentes, que após a carnificina ficaram prostrados de barriga para baixo no chão do navio, sangrando e chorando compulsivamente. Outra sobrevivente, Elena Glink, recorda uma das viagens do Minsk, em Maio de 1951, em que os cadáveres das mulheres esventradas por violações em massa foram lançados ao mar, borda fora.
Histórias desses navios sinistros, os Vagões de Kolymá, eram contadas pelos prisioneiros em todo o sistema dos campos e durante décadas fizeram parte do seu imaginário pavoroso. Havendo poucos suicídios entre os reclusos, o mesmo não sucedia com os vigilantes, que entre 300 e 400 punham termo à vida todos os anos. Nas valas comuns, entre centenas de fuzilados, ainda hoje se encontram muitas garrafas de vodca — os guardas embriagavam-se para suportar o fardo das matanças. Os operários que construíam um gasoduto numa floresta das imediações de Minsk descobriram uma vala comum com cerca de 100 mil esqueletos, alinhados aos pares, pois eram executados em conjunto para poupar balas; junto às ossadas, os objectos que as vítimas transportavam consigo: óculos, sacos com moedas, tubos ou frascos com medicamentos. Vários testemunhos garantem que as crianças da região de Kolymá ainda usam crânios humanos para transportar as amoras e os morangos silvestres que apanham na floresta.
A prática do canibalismo e da necrofagia foi constante, apesar de raramente se ter chegado ao extremo do ocorrido em Nazino, uma ilha nos confins da Sibéria ocidental para onde na Primavera de 1933 foram deportados 6 mil detidos em Moscovo e Leninegrado, por ordem de Genrikh Yagoda, o chefe da polícia secreta, a OGPU. Logo no primeiro mês, dois terços dos deportados morreram de fome e frio. Testemunhos recolhidos em 1989 pela Associação Memorial referem que os habitantes da zona, ao percorrerem a ilha nos anos 30, viam carne humana embrulhada em farrapos, cortada e pendurada nas árvores. O resto vem contado num livro de Nicolas Werth cujo título dispensa comentários: A Ilha dos Canibais (trad. portuguesa, 2007).
Em campos situados muito a norte do Círculo Polar Árctico, a centenas ou milhares de quilómetros de qualquer lugar habitado, as fugas eram raras. Como refere Soljenítsin em O Arquipélago Gulag, “um grande obstáculo às fugas era a geografia do arquipélago: aqueles espaços imensos de deserto nevado ou arenoso, de tundra, de taiga”. Ainda assim, as fugas aconteceram mais vezes do que se supõe. Deram azo a alguns livros, relatos de viagens que, de tão extraordinárias, suscitam dúvidas quanto à sua autenticidade, como acontece com A Longa Caminhada, de Slavomir Rawicz (trad. portuguesa, 2001).
Nos campos próximos de povoações, outros elementos dificultavam as fugas. Na mira de generosas recompensas, os habitantes das imediações participavam na caça ao homem, perseguindo e denunciando os evadidos. Um morador em Kolymá recebeu um avultado prémio de 250 rublos ao entregar a mão — ou a cabeça, segundo outros relatos — de um fugitivo que apanhara. De acordo com Soljenítsin, se era frequente os captores, para não arcarem com o peso do corpo inteiro, trazerem numa sacola apenas a cabeça do fugitivo, era mais conforme aos regulamentos entregarem o braço direito cortado pelo cotovelo, para que as autoridades carcerárias pudessem verificar as impressões digitais e dar baixa do prisioneiro. Os que ousavam evadir-se eram executados de imediato e os seus corpos exibidos publicamente durante vários dias, à vista dos outros reclusos. Apesar de tudo, houve vários casos de fugas bem-sucedidas, nomeadamente das remotas ilhas Solovetsky, rumo à Finlândia.
A par das fugas, houve protestos, greves de fome ou ao trabalho, até mesmo rebeliões. Uma das mais famosas, ocorrida em Utsa-Utsa em Janeiro de 1942, foi afogada num banho de sangue, mas ainda assim conseguiu durar alguns dias. Soljenítsin dedica um capítulo do Arquipélago aos “quarenta dias de Kenguir”, a revolta ocorrida em 1955 e em que, pela primeira vez na história dos campos, os criminosos de delito comum aceitaram ser liderados pelos presos políticos. Tudo acabou como se previa, com a repressão brutal da revolta. Embriagados, os condutores dos tanques e dos blindados não hesitaram em avançar sobre os grevistas, esmagando dezenas de pessoas à sua passagem. Depois, julgaram-se os cabecilhas. Na mais estrita legalidade, foram todos mortos. Junto às suas sepulturas cresce hoje uma erva particularmente densa: tendo localizado as campas, os habitantes da região levaram-lhes tulipas da estepe, que aí ainda florescem.
O Gulag
Concebidas como campos de trabalho e de reeducação ideológica, as cerca de 476 “ilhas” que formaram o arquipélago Gulag são frequentemente comparadas aos campos de concentração nazis. Na verdade, não sendo seu propósito directo o extermínio ou a liquidação física dos prisioneiros, o risco de morte causou tantas vítimas e era tão flagrante que não pôde deixar de ser assim considerado pelos mais altos responsáveis pelo sistema, quer pela nomenklatura, com Estaline e Béria à cabeça, quer pelos burocratas que geriam a rede concentracionária, quer pelos directores dos principais campos, muitos deles alvo de sucessivas e sangrentas purgas. As comparações estatísticas, todavia, prestam-se a equívocos e manipulações.
A jornalista e historiadora Anne Applebaum dedicou um apêndice do seu notável livro Gulag — Uma História, galardoado com o Pulitzer em 2004 (trad. portuguesa, 2004), ao levantamento, tão rigoroso quanto possível, do número de encarcerados. Considera uma “pura conjectura” a estimativa de 20 milhões de vítimas de Estaline, avançada por Stéphane Courtois em O Livro Negro do Comunismo (trad. portuguesa, 1998), e conclui que a avaliação mais completa aponta para 18 milhões de cidadãos soviéticos que, entre 1929 e 1953, passaram pelo sistema, campos e colónias.
A monumental colectânea em sete volumes, divulgada pelo Arquivo Estatal da Federação Russa, apresenta um número ligeiramente mais elevado, estimando que entre 1930 e 1952 estiveram nos campos, colónias e prisões cerca de 20 milhões de pessoas. Obviamente, nem todos os presos morreram. Mas, se quisermos fazer uma contabilidade dos mortos, aos caídos no Gulag — cerca de dois milhões e 700 mil pessoas —, deveríamos acrescentar os seis milhões de “exilados especiais” e os milhões executados em massa, sobretudo durante o Grande Terror (curiosamente, o apogeu do Grande Terror, em 1937-1938, não foi particularmente mortífero na história do Gulag). Num cômputo global, que está longe de ser pacífico ou consensual, alguns sustentam, como vimos, que Estaline terá sido directamente responsável pela morte de cerca de 20 milhões de pessoas, o que demonstra que só uma pequena parte das suas vítimas, cerca de 10%, terá perecido no Gulag (um terço ou mesmo metade daquelas mortes ocorreram nas grandes fomes do início da década de 1930).
O Gulag, acrónimo de Administração Geral dos Campos (Glavnoe Upravlenie Lagerei), durou muito mais tempo do que os campos nazis e, ao contrário do que se pensa, não terminou com a morte de Estaline, continuando a funcionar como prisão para os activistas da democracia, os dissidentes, os nacionalistas e os criminosos de delito comum. Verdadeiramente, o sistema prisional soviético só começou a ser desmantelado por Gorbatchov, ele próprio neto de prisioneiros do Gulag.
Se os campos não terminaram com Estaline, também não começaram com ele — este é um ponto sublinhado quer por memorialistas como Soljenítsin quer por historiadores como Applebaum: desde a ascensão dos bolcheviques que existiam intenções e programas de exílio em massa, bastando recordar que, logo em Janeiro de 1918, Lenine determinou a “detenção de sabotadores milionários” e sugeriu que fossem “condenados a um ano de trabalhos forçados numa mina”. A deportação era, aliás, uma prática russa velha de séculos, que se intensificara nos derradeiros anos dos czares. Em todo o caso — e esse é um aspecto recorrentemente salientado por Soljenitsin —, o sistema carcerário czarista era de uma benevolência extrema quando comparado àquele que os bolcheviques viriam a estabelecer.
A expressão “campos de concentração” não foi inventada pelos nazis: Trotsky usou-a em Junho de 1918, propondo que aí fossem agrupados prisioneiros checos e, em Agosto do mesmo ano, num telegrama para os comissários de Penza, Lenine também exortou ao “terror de massas contra os kulaks, sacerdotes e Guardas Brancos” e à “detenção dos duvidosos (…) num campo de concentração fora da localidade”. De resto, as tentativas de branqueamento da acção de Lenine (e de Trostky), feitas à custa de uma responsabilização exclusiva de Estaline, não resistem a um confronto até com obras de ficção, como a novela O Tchekista, de Vladímir Zazúbrin, escrita em 1923 (trad. portuguesa, 2012). No entanto, e apesar de em 1921 já existirem 84 campos em 43 províncias, destinados a “reabilitar” os “inimigos do povo” (categoria indeterminada, cujo conteúdo foi variando ao longo do tempo), a grande expansão inicia-se em 1929, quando Estaline decidiu usá-los como fonte de mão-de-obra escrava e o arquipélago carcerário passou a ser directamente controlado pela polícia secreta.
É mais ou menos por essa altura que ocorre a fixação nas ilhas Solovetsky e a construção do Canal do Mar Branco, onde morreram cerca de 25 mil prisioneiros para que aquela obra colossal estivesse pronta no prazo-recorde de 20 meses imposto por Estaline. Mais tarde, houve uma diminuição ligeira do número de internados com as amnistias da Segunda Guerra Mundial, mas também uma degradação brutal das condições de vida, com o racionamento, a falta de bens essenciais, as epidemias de disenteria e de tifo (no Inverno de 1941-1942, um quarto da população do Gulag morreu de fome). Seguiu-se um recrudescimento muito significativo de prisões a partir de 1948, quando a repressão se intensificou nos últimos anos de vida de Estaline. Um dos piores anos da história do Gulag foi 1952, nas vésperas da morte do Pai dos Povos.
Trabalho escravo
Os campos não eram campos de extermínio, mas de trabalho — de trabalho escravo, segundo a tradição ancestral da katorga, feito nas piores condições e lugares, como as terríveis minas de ouro de Kolymá, imortalizadas nos contos de Chalamov, a quem Soljenítsin chama “um irmão entre os irmãos escondidos”.
As jornadas laborais chegavam a durar 16 ou mais horas por dia, a temperaturas abaixo dos 50 ou mesmo 60 graus negativos. Ia-se para o Gulag pelas mais variadas razões, por motivos absolutamente triviais ou menores (por ex., dez anos de prisão por furtar um carrinho de linhas ou por apanhar um punhado de maçãs propriedade do Estado; por ter quatro vacas numa aldeia onde os outros só tinham uma; por contar uma anedota sobre Estaline; por chegar atrasado uns minutos ao trabalho), através de sentenças ditadas em processos sumaríssimos.
Coleccionar selos ou praticar esperanto eram duas actividades particularmente suspeitas, entre tantas outras. Muitas vezes, não se era preso por praticar algum acto em concreto mas por pertencer a uma categoria social ou grupo (ex. judeus, polacos, religiosos, republicanos espanhóis, emigrantes) que, numa dada conjuntura e por estratégias extremamente imprevisíveis e voláteis, era alvo de perseguição: “As pessoas não eram presas pelo que tinham feito, mas por serem quem eram”, escreve Applebaum. Em 1942, foram presos os quatro irmãos Sarostin, todos eles conhecidos jogadores de futebol; sempre acreditaram que a sua prisão se deveu ao facto de a sua equipa, o Spartak de Moscovo, ter derrotado numa partida o Dínamo, clube favorito de Lavrenty Béria.
O filho de um antigo rival de Estaline teve de aguardar nove meses para que encontrassem algo para o acusar; no final, consideraram-no culpado de ser um “esteta” (sic) e foi condenado a dez anos de prisão. Em The Unquiet Ghost (1994), uma reportagem magistral sobre a memória do estalinismo, Adam Hochschild conta que entrevistou um sobrevivente que fora condenado a cinco anos de prisão num julgamento que durou cinco minutos. A propaganda comparava os condenados a vermes, ervas daninhas ou doenças infecciosas, recorrendo às mesmas fórmulas sanitárias que os nazis aplicaram aos judeus no Holocausto ou que, muitos anos depois, os hutus do Ruanda utilizaram para fomentar o ódio aos tutsis. As imundas “baratas” que deviam ser dizimadas, nas exortações propagandísticas dos hutus, têm uma afinidade evidente com o propósito anunciado por Lenine em 1918: “Limpar a terra russa de todos os insectos nocivos.”
No Gulag, como assinala Anne Applebaum, não houve uma “industrialização da morte” semelhante à ocorrida no Holocausto. “O Gulag não tinha campos de morte de tipo nazi, como Belzec ou Sobibor (ainda que tivesse campos para execuções). Mas, pela natureza das coisas, todos os campos eram campos de morte”, escreve Martin Amis em Koba, o Terrível (trad. portuguesa, 2003).
Na verdade, o que mais surpreende em todo o sistema carcerário soviético é a sua profunda irracionalidade quanto aos fins visados. Geridos de uma forma absolutamente caótica, os campos nunca foram rentáveis economicamente; pelo contrário, foram um autêntico desastre desse ponto de vista, o que obrigou os administradores a falsearem as estatísticas e a empolarem os resultados, sob pena de, como aconteceu a muitos deles, serem executados sob a acusação de pertencerem à mesma “organização de direita trotskista”. Também as estatísticas dos óbitos eram manipuladas: os médicos dos campos tinham instruções para esconder os cadáveres dos inspectores ou de libertar os moribundos, para que não aparecessem nas listas de mortos. “Era como se o sistema precisasse de uma explicação para o seu mau funcionamento — como se precisasse de encontrar pessoas a quem culpar”, escreve Applebaum. Daí que desde meados ou finais dos anos 1920 — mais precisamente, a partir de 1927 — se acumulassem as condenações por “sabotagem”, pois só assim se explicaria os desastres dos grandes projectos de obras públicas concebidos por Estaline ou mesmo factos tão singelos como este, citado por Soljenítsin: nos campos, o custo de produção de um divã chegava aos 800 rublos, mas o preço de venda era de 600… Uma auditoria às finanças do Gulag, realizada no consulado de Khruschev, em Junho de 1954, comprovou o que já se sabia há muito: os campos eram caóticos, eternamente deficitários e largamente subsidiados.
A irracionalidade do Gulag via-se nos mais ínfimos pormenores: por exemplo, não era incomum uma família inteira, com mulheres e crianças, ser enviada para os confins da Sibéria, o que implicava um fardo adicional e desnecessário para os já apertados orçamentos dos campos. Como refere Soljenítsin no Arquipélago, acentuando que nada disso ocorria no tempo dos czares, nas vagas repressivas comunistas “queimavam-se logo os ninhos completos, levavam sempre famílias inteiras e até procuravam ciosamente que nenhum dos filhos de catorze, dez ou seis anos se escapasse: todos deviam ir para o mesmo lugar, para o mesmo extermínio comum”.
E mesmo que não houvesse um desterro colectivo, a prisão e a deportação de um homem implicavam sempre a queda em desgraça de toda a sua família, doravante ostracizada e caída na penúria. Um depoimento extraído do Arquipélago: “Desde os seis anos fui a ‘filha de um traidor à pátria’ – e não havia no mundo coisa mais horrível.”
Aliás, Aleksandr Soljenítsin e a sua primeira mulher, Natalia Rechetovskaia (e não Natasha, como erroneamente a identifica Applebaum), chegaram a ponderar divorciar-se para que ela pudesse ter uma vida normal e decente, episódio que seria contado, em termos ficcionais, no livro O Primeiro Círculo.
Nas suas memórias de prisioneira de Estaline e de Hitler, Margarete Buber-Neumann recorda-se de uma mulher, mãe de três crianças pequenas, que ao entrar na cela deu graças a Deus por ter sido presa, dizendo: “Agora, finalmente, os meus filhos vão ter algo que comer. Desde que o meu marido foi detido, perdi o emprego e não tínhamos nada para comer” (Under Two Dictators. Prisioner of Stalin and Hitler, 2009, pp. 35-36). Nos anos 20, uma mulher escreveu a Dzerzhinsky, o chefe da polícia política, agradecendo-lhe o facto de a ter prendido e ao seu filho de três anos de idade — caso assim não tivesse sucedido, a criança seria entregue a um orfanato, que aquela mãe classificou como “fábrica de fazer anjos”, tais eram as taxas de mortalidade aí registadas. Noutro testemunho citado no Arquipélago, um jovem de 14 anos dizia: “Toda a pessoa honesta deve ir parar à prisão. Agora está lá o meu pai e, quando eu crescer, prendem-me também a mim.” A profecia cumpriu-se: foi preso aos 23 anos. Uma lei de 1935 permitia que menores a partir dos 12 anos fossem julgados como adultos e eram numerosos os casos de crianças condenadas pelo famigerado artigo 58.º do Código Penal, ainda que seja certamente excepcional — e ilegal — a situação que Soljenítsin refere no Arquipélago, de um menino que cumpria pena aos seis anos de idade.
A menos má das opções
Nos campos, havia amnistias frequentes de velhos, doentes ou grávidas, logo acompanhadas de novas vagas de detenções. A todo o sistema repressivo, desde os mais altos dirigentes aos guardas dos campos mais remotos, interessava um elevado número de prisões: num país marcado pela fome e a miséria, o trabalho na polícia política ou na vigilância das prisões era não só bem remunerado como conferia algum estatuto social, um status decerto ditado pelo medo às autoridades mas também pela assimilação da “normalidade” do terror e da repressão. Como refere Applebaum, “muitos viam simplesmente o Gulag como a menos má das opções”. Por isso, quanto mais presos houvesse, mais garantia existia de segurança no emprego — se se fizessem poucas detenções, o sistema seria obrigado a reduzir os seus zelosos funcionários. Por outro lado, a corrupção e a incompetência faziam com que fossem colocados em serviços administrativos, mais suaves, criminosos de delito comum semianalfabetos, enquanto presos com elevadas qualificações eram relegados para o trabalho braçal e para as tarefas mais duras. Um sobrevivente ainda hoje se recorda que a sua brigada de trabalho era integrada por 36 homens, todos doutorados, cuja missão consistia em assentar tijolos. Outro diz que, no campo onde esteve internado, um médico polaco altamente qualificado foi mandado cortar árvores para a floresta, enquanto um antigo proxeneta foi trabalhar como contabilista, ainda que não soubesse sequer o que era contabilidade e fosse praticamente analfabeto.
Do ponto de vista económico, não fazia o mínimo sentido pretender explorar uma força de trabalho subnutrida e exausta, com rações miseráveis de 400 gramas de pão por dia. A menos que existisse a convicção de que, massacrada uma vaga de prisioneiros, outra se lhe seguiria, numa sucessão infindável (“uns iam para debaixo da terra, a Máquina trazia outros”, lê-se no Arquipélago).
Na verdade, não é possível descartar a hipótese de, na concepção e administração dos campos, terem existido dois objectivos distintos — a rentabilização económica e a criminalização política — nem sempre compatíveis e até, com mais frequência, perfeitamente inconciliáveis. Umas vezes prevalecia o aspecto laboral; noutras, a liquidação, lenta mas inexorável, dos prisioneiros políticos, quase sempre sujeitos a um tratamento mais árduo do que o reservado aos criminosos de delito comum.
Houve excepções a esta regra, sobretudo quando Béria se apercebeu de que poderia aproveitar o saber técnico de certos reclusos, bastando dizer que entre eles se encontravam o engenheiro aeronáutico Andrei Tupolev ou Serguei Korolev, futuro pai do Sputnik e de todo o programa espacial soviético. Para investigadores como eles, Béria começou a organizar, em Setembro de 1938, oficinas e laboratórios especiais, as sharashki, com condições de vida e trabalho substancialmente melhores. Soljenítsin esteve internado numa sharashka no Cazaquistão, experiência que servirá de matéria-prima ao seu livro O Primeiro Círculo (1968), e Lev Mishenko, a personagem central da emocionante história verídica narrada por Orlando Figes em Just Send Me Word (2012), beneficiou, e muito, do facto de ter sido libertado do trabalho braçal para aplicar a sua formação em Física no laboratório que outro preso, Georgii Strelkov, dirigia no campo de Pechora. A partir de certa altura, foi criado nesse campo um posto de correio e aberta uma pequena loja onde os internados podiam comprar pão, manteiga, salsichas, açúcar ou mesmo quantidades limitadas de vodca. Em Solovetsky existia um restaurante que podia (ilegalmente) servir os presos e a administração do campo abriu lojas na ilha, onde os presos podiam comprar vestuário, ainda que ao dobro dos preços praticados nos estabelecimentos comerciais das grandes cidades.
Nada disto tem semelhança com os campos nazis, onde era impensável captar imagens ou comprar roupas e géneros alimentícios. Mas, de igual modo, nada disto é comparável às condições de muitas das ilhas do Gulag, como Kolymá, onde anualmente morriam 20% dos reclusos, ou de campos onde os presos nem edifícios tinham para viver, dormindo em abrigos ou buracos que eles próprios escavavam na terra, os zelyanki. Outros campos estavam atrozmente sobrelotados: um centro de detenção construído para 250 a 300 pessoas, em Siblag, na Sibéria, albergava em 1935 mais de 17 mil presos, amontoados de forma inimaginável, surreal. Na prisão de Ivanovo, segundo se conta em O Arquipélago, numa cela edificada para 20 homens estavam encarcerados 323 indivíduos.
Como se disse, há imagens dos campos, diversas fotografias. Durante 15 anos, o jornalista polaco Tomasz Kizny reuniu-as pacientemente, dando-as à estampa num livro de grande formato, um álbum volumoso e maciço com o singelo título Goulag, editado por Dominique Roynette com textos de Norman Davies, Jorge Semprún e Sergueï Kovalev (2003). Ao folhearmos o livro, além da dimensão ciclópica das grandes obras públicas ou da alvura das imensidões geladas, o que mais impressiona é o facto de as fotografias serem inexpressivas ou, melhor dito, não mostrarem uma realidade terrível, longe disso. O que vemos são homens a trabalhar na neve ou na estepe, camaratas cheias de presos, mulheres a subir a bordo de um navio. Nada do que ali se vê é particularmente chocante, pois as fotografias não mostram tudo — as execuções sumárias ou as violações em grupo, a fome e a pelagra, a agonia ao frio, os cadáveres congelados.
Um dia no campo
No sistema dos campos — a que os prisioneiros chamavam, não por acaso, “Picadora de Carne” —, o quotidiano dos detidos políticos era marcado de forma dramática pela presença de criminosos de delito comum, condenados por actos hediondos ou membros de gangues educados desde crianças no culto da violência extrema, os urki.
O tormento começava logo na viagem de comboio ou de navio. Além de violarem brutalmente as mulheres, os jovens criminosos de delito comum não hesitavam em insultar e urinar sobre os presos políticos mais velhos. Na entrada dos campos, placas com dísticos em tudo semelhantes aos usados pelos nazis: “Pelo Trabalho – Liberdade!”, afirmava um cartaz em Solovetsky, proclamação com uma inequívoca parecença com “O Trabalho Liberta”, colocado em Auschwitz e noutros campos de concentração alemães.
A música era outro dos pontos em comum entre os campos soviéticos e nazis. Em muitas das ilhas do Gulag, o dia começava de forma bizarra, ao som de uma banda musical composta por prisioneiros, amadores e profissionais. Depois seguia-se uma jornada de trabalho de 12, 14 ou 16 horas, com cinco minutos de intervalo a meio da manhã e a meio da tarde e uma hora para almoço por volta do meio-dia.
Os presos com regimes mais severos tinham uma folga de dois dias por mês, sendo a regra geral um dia de descanso por semana. Daí que fosse absolutamente vital evitar as tarefas mais duras, poupar forças, fingir que se trabalhava (a tufta, traduzível como “enganar o chefe”), como fica patente na novela de Soljenítsin Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch.
À noite tinha de se descansar o melhor possível, sendo implacáveis as lutas para dormir nos lugares mais espaçosos e confortáveis, junto às fontes de calor. Em muitos campos, e já depois da morte de Estaline, havia presos a dormir em tendas, ao relento, enfrentando temperaturas negativas e tempestades geladas. A balanda, a sopa dada aos prisioneiros uma ou duas vezes por dia, chegava a ser feita de carne de cão. A comida, já de si escassa, era frequentemente roubada: desde logo, desviada pelos responsáveis dos campos, começando nos directores e terminando nos escalões mais baixos dos chefes dos armazéns; depois, roubada entre os presos, com clara desvantagem, obviamente, dos mais fracos perante os mais fortes, ou seja, dos presos políticos face aos criminosos de delito comum.
Havia apenas uma regra inviolável, segundo a descrição de Applebaum: o pão sagrado. A ninguém, nem sequer ao mais fraco ou ao moribundo agonizante (a quem chamavam fitili, “pavio”, ou gavnoedy, “come-merdas”), era legítimo roubar o seu pedaço de pão. Quem desrespeitasse esse mandamento, vigente em todos os campos, era espancado até à morte.
Também se espancavam até à morte os que, nas brigadas de trabalho, não conseguiam manter o ritmo dos seus companheiros. O trabalho processava-se ora em invernos terríveis, a temperaturas abaixo dos 50 graus negativos, ora em verões insuportáveis, sob nuvens de mosquitos. Nas saídas para a estepe gelada, era frequente perderem-se elementos, gente que ficava para trás ou se perdia nas tempestades, gente cujos corpos estavam ali por perto, a poucos metros de distância, mas só eram encontrados meses depois, no despontar da Primavera.
O frio era tão intenso que, por vezes, tinha de se espancar os prisioneiros para que estes fossem lavar-se aos balneários. Cada um protegia-se como podia, fazendo sapatos e botas com cascas de árvores, pedaços de tecido, trapos, pneus velhos. Imperavam a desorganização e o caos, sucediam-se os acidentes de trabalho fatais, as máquinas avariavam-se a toda a hora, trabalhava-se com as mãos, pás e picaretas na edificação de projectos megalómanos. Ergueu-se uma ponte 600 quilómetros a norte de Magadan, projectada por um preso que, apesar de formado em engenharia, nunca desenhara uma ponte; foi levada pela primeira cheia. Em 1947, o Governo decidiu construir uma gigantesca linha férrea entre a região de Vorkuta e a foz do rio Ob. No auge dos trabalhos, entre 80 mil e 120 mil presos tentaram edificar essa linha, que ficou conhecida por “Estrada da Morte”, tantos foram os que aí perderam a vida. Poucas semanas após a morte de Estaline (festejada em todo o Gulag, naturalmente), o projecto, que já custara 40 biliões de rublos e dezenas de milhares de vidas, foi abandonado para sempre.
Cresce a marginalidade e o submundo criminal russo
Pior do que o trabalho era o convívio com os urki. Roubavam os outros presos, humilhavam-nos com as piores obscenidades, masturbavam-se e praticavam sexo à frente de todos, andavam nus pelas camaratas, exibindo os seus corpos tatuados. Soljenítsin fala disso no Arquipélago: “Têm tatuagens na pele bronzeada, e assim satisfazem permanentemente as suas necessidades artísticas, eróticas e até morais.” Num livro recente, Educação Siberiana (trad. portuguesa, 2010), de Nicolai Lilin — ele próprio, tatuador profissional —, refere-se igualmente os “códigos das tatuagens” e a sua importância: “Nas comunidades criminais russas existe uma forte cultura da tatuagem, e cada uma delas tem um significado. A tatuagem é uma espécie de Bilhete de Identidade que serve para comunicar a própria posição no interior da comunidade criminal: o género de ‘informação’ criminal, vários esclarecimentos sobre a vida pessoal e sobre as experiências de encarceramento.” Entre as tatuagens mencionadas por Soljenítsin, destacavam-se os rostos de Lenine ou de Estaline no peito — acreditava-se ingenuamente que nenhum guarda ou pelotão de fuzilamento ousaria disparar sobre a efígie dos fundadores da União Soviética…
Ao produzir muitos milhares de órfãos, a revolução, a guerra e a colectivização fizeram crescer exponencialmente a marginalidade e o submundo criminal russo. De acordo com as estatísticas da própria polícia política, o NKVD, os “centros de recepção” infanto-juvenis recolheram mais de 842 mil crianças entre 1943 e 1945, ou seja, quase um milhão de órfãos ou fugitivos de casa dos pais ou das fábricas onde trabalhavam. Não admira, pois, o número assombroso de jovens que engrossaram as fileiras da criminalidade. Vivendo em bandos dominados por hierarquias tirânicas e códigos de conduta implacáveis, falando um calão próprio e animalesco, a “língua de ladrão” (blatnoe slovo), inacessível aos não-iniciados, os presos de delito comum, especialmente os condenados a penas mais prolongadas, sabiam que dificilmente sairiam com vida do Gulag ou das prisões soviéticas. Estavam ali para sempre, entregando-se à barbárie pura, abusando das reclusas — que nos campos de trabalho sempre estiveram em menor número do que os homens, sendo 13% da população prisional em 1942 e 17% dez anos depois, em 1952 —, recorrendo a mulheres que se prostituíam ou, na falta delas, tendo como servos jovens rapazes que recebiam comida extra em troca de favores sexuais.
Uma das principais distracções dos urki eram os jogos de cartas, em que os que ganhavam podiam conquistar o pavilhão das mulheres, para si e para os seus comparsas, e os que perdiam tinham de esticar o braço para que lhes fossem cortados dois ou três dedos da mão. Um jogador infortunado tornou-se “surdo-mudo”, sendo impedido de usar a voz e proferir qualquer palavra durante três anos; se acaso desrespeitasse a pena, seria imediatamente morto. Outro sofreu a humilhação suprema de ver o seu rosto tatuado com um enorme pénis, apontado à boca.
Com o tempo, as coisas melhoraram, pois a proporção entre presos de delito comum e presos políticos foi-se alterando: nos anos 1937-1938, os políticos eram uns meros 12 ou 18%; durante a guerra, passaram para 30 a 40% da população prisional; em 1946, eram já a maioria, com quase 60%. Para comemorar a vitória sobre a Alemanha nazi, Estaline concedera uma amnistia generosa, a qual, no entanto, abrangia sobretudo os presos de delito comum, facto que suscitou a repulsa de Soljenítsin, que, indignado, escreve no Arquipélago: “Foram pura e simplesmente libertados todos aqueles que assaltaram apartamentos, despiram os transeuntes, violaram raparigas, corromperam menores, enganaram clientes, vigarizaram, estropiaram pessoas indefesas, praticaram caça e pesca furtivas, praticaram a poligamia, a extorsão, a chantagem, a corrupção, a fraude, a calúnia, a denúncia falsa (esses nem sequer foram presos), traficaram narcóticos, os alcoviteiros, os proxenetas, os que causaram vítimas humanas por ignorância ou negligência (isto não é nenhuma figura retórica, estou simplesmente a enumerar os artigos do Código que figuravam na amnistia).”
Da convivência com os urki não existem, evidentemente, registos fotográficos. Resta-nos um caderno de desenhos da autoria de Danzig Baldaev, um ex-prisioneiro dos campos. Publicado em inglês em 2010, pela editora Fuel, Drawnings from the Gulag é uma obra indescritível. Em vinhetas carregadas de riscos e sombreados, que pela sua expressividade fazem lembrar o estilo de Robert Crumb, vemos mulheres a serem torturadas, nuas, para aumentar a humilhação e a pressão psicológicas; homens pendurados do tecto, com as mãos atrás das costas; outros, crucificados, com as partes genitais a serem queimadas com um maçarico; mulheres sodomizadas com garrafas de champanhe, ou esvaídas em sangue, flageladas por bastões e paus. Acompanhamos a jornada até aos campos, em navios apinhados, as violações em massa, brutais. No campo, os urki a jogar às cartas: o tronco nu, coberto de tatuagens. Crianças levadas em bandos, para longe dos pais; outras baleadas a sangue-frio nas estações ferroviárias de Tomsk, Mariinsk e Shimanovskaya, em 1938 e 1939, devido à sobrelotação dos orfanatos. A violência dos criminosos de delito comum: homens empalados pelo ânus, outros cortados ao meio com uma serra de lenhador; presos sodomizados com ferros em brasa ou por outros reclusos, nas camaratas, à vista de todos.
O pior do Gulag está ali, nos desenhos de Baldaev, a ponto de desconfiarmos da verosimilhança de tantos horrores: os homens queimados vivos, cobertos de gasolina ou querosene; as mulheres que se recusavam a ser concubinas dos guardas e que eram atadas a árvores, despidas e de pernas abertas, besuntadas de óleo ou margarina como chamariz para as formigas. Depois, o jargão selvagem do Gulag: bantik-krantik (o estrangulamento de uma vítima com uma toalha, à noite); vylozhenny (um preso que foi castrado nas camaratas pelos outros reclusos); Zapodolit poblyadushku (a introdução de objectos na vagina e no ânus das mulheres); Mena poveselit podzharokj (queimaduras infligidas por um ferro eléctrico).
Assim se passavam os dias nos campos. Henry Wallace, vice-presidente dos Estados Unidos, fez uma visita a Kolymá em Maio de 1944 — e nunca chegou a saber sequer que estava a visitar uma prisão.
Um livro, um homem
Ao contrário do que por vezes se julga, O Arquipélago Gulag, recentemente objecto de uma nova edição portuguesa, com tradução de António Pescada (Sextante Editora, 2017), não foi a primeira denúncia do sistema carcerário soviético feita no Ocidente. Sobre os horrores das ilhas Solovetsky já existiam relatos pormenorizados desde os anos 20, como o do francês Raymond Duguet, Un Bagne en Russie Rouge, de 1927, e o do georgiano S. A. Malsagov, An Island Hell, de 1926.
Em 1928, é impresso em Paris o texto da antiga professora e activista P. E. Melgunova-Stepanova, traduzido em inglês com o título Where Laughter is Never Heard, provavelmente o primeiro testemunho de um ex-prisioneiro do regime comunista. No mesmo ano, e também editado em França, Mes 26 prisons et mon évasion des Solovki, de Youri Bessónov, livro que “assombrou a Europa”, nas palavras de Soljenítsin. Em 1931, o londrino The Times publicou uma série de artigos que descreviam pormenorizadamente as condições de trabalho forçado na União Soviética e, por causa disso, os sindicatos ingleses e norte-americanos advogaram um boicote às mercadorias vindas da Rússia. Curiosamente, o Partido Trabalhista britânico opôs-se a tal boicote, argumentando que suspeitava das reais intenções dos seus promotores. Graças à colaboração de intelectuais de renome como o romancista Máximo Gorky e de destacados compagnons de route estrangeiros, como H. G. Wells, George Bernard Shaw, Julian Huxley ou Sidney e Beatrice Webb, e devido aos milhões de mortos do Exército Vermelho na Segunda Guerra, a propaganda soviética conseguiu debelar as denúncias, fazendo-as passar por panfletos anticomunistas.
Muitos outros livros veriam a luz do dia, como Forced Labor in Soviet Russia (1947), de David Dallin e Boris Nicolaevsky, ou Forced Labor and Economic Development (1965), de S. Swaniewicz, a par de depoimentos como Eleven Years in Soviet Prison Camps (1951), de Elinor Lipper, e Tell the West. An Account of His Experiences as a Slave Laborer in the Union of Soviet Socialist Republics (1948), de Jerzy Gliksman. Em 1980, numa polémica com Soljenítsin nas páginas da revista Foreign Affairs, Robert C. Tucker, professor em Princeton, lembrará ao autor de O Arquipélago Gulag que não tinha sido propriamente um pioneiro nas suas revelações sobre os campos estalinistas. Em todo o caso, a observação de Tucker era incapaz de explicar o clamor mundial suscitado pela publicação da opus magnum de Soljenítsin.
Na verdade, e para dar apenas alguns exemplos, pouco relevo teve a publicação entre nós, em 1964, de Passaporte para a Sibéria, de Marcel Giuglaris. E mesmo noutras paragens, como Itália, não mereceu grande destaque a publicação, em 1967, pela Mondadori, de Viaggio nella Vertigine (trad. portuguesa, 1969), testemunho autobiográfico de Evgeniia Ginzburg, citado por Soljenítsin no Arquipélago e considerado actualmente uma obra maior da literatura do Gulag, em que a autora relata a sua experiência prisional de 17 anos, dois dos quais passados na solitária, em absoluto isolamento. Em Inglaterra, as obras de Robert Conquest, como The Great Terror (1968), foram recebidas com um misto de incredulidade, desconfiança e desdém. Martin Amis recorda, em Koba, o Terrível, a forma como o seu pai, o escritor Kingsley Amis, e Robert Conquest eram tidos por “fascistas” e, aliás, assumiam jocosamente esse rótulo.
Em parte, a invasão da Checoslováquia e o anti-sovietismo do Maio de 1968 iriam alterar este panorama. Mesmo assim, o livro de Vladimir Boukovski, saído em 1971, Une nouvelle maladie mentale en URSS: l'opposition (trad. portuguesa, 1977), não despertou uma comoção comparável à publicação em França, dois anos mais tarde, da obra de Soljenítsin, responsável por “uma pequena revolução intelectual”, nas palavras de Applebaum. Na época, vários editores chegaram a envolver-se em disputas judiciais para obterem os direitos de tradução de O Arquipélago Gulag. Para este alvoroço concorreram diversos factores, com destaque para a distinção do autor com o Nobel da Literatura em 1970, recebido quando se encontrava refugiado na casa — o “asilo bendito” — do violoncelista Mstislav Rostropovitch, em Moscovo: “O prémio caiu-me sobre a cabeça como neve jubilosa!”, dirá na narrativa autobiográfica O Carvalho e o Bezerro (trad. portuguesa, 1976), onde conta também que, após longas negociações, e com receio de ser impedido de reentrar no seu país, optou por não se deslocar a Estocolmo para receber o galardão.
Em França, os 600 mil exemplares da primeira edição de O Arquipélago Gulag esgotam-se num ápice e as Éditions du Seuil dedicam a Soljenítsin um álbum fotobiográfico onde é patente o fascínio por aquela encarnação viva da pureza da alma russa, dotada de uma força interior indomável, capaz de resistir a todas as privações e ameaças, entregando-se ao dolorosíssimo exílio interno dos que se recusavam a abandonar a sua terra-mãe e optavam por lutar contra o sistema a partir de lá (“durante todos esses anos, houve um ponto do qual não desisti — assim fora eu forjado no campo de concentração, assim pensava eu com os meus amigos nos campos de concentração: a posição mais forte consistia em fustigar o inimigo baseado na nossa experiência das galés, mas atacando de lá”, escreveu em O Carvalho e o Bezerro, perguntando: “Seremos realmente tão fracos que não possamos combater um pouco aqui?”). Pouco depois da publicação de O Arquipélago — mais precisamente, em 1975 —, o sistema concentracionário soviético foi novamente abordado num ensaio de grande impacto, A Cozinheira e o Devorador de Homens (trad. portuguesa, 1978), do soixante-huitard André Glucksmann, que logo nas primeiras páginas evoca o nome de Soljenítsin.
Não seria esta, evidentemente, a posição do PCP (nem, de resto, do Partido Comunista Francês, numa primeira fase), para quem a popularidade de Soljenítsin se devia a uma encenação anticomunista: “Não se trata já apenas de um instrumento do anti-sovietismo. Trata-se de um seu agente”, nas palavras do Avante!, n.º 463, de Março de 1973, na esteira do que diziam o L'Humanité (“uma campanha anti-soviética”) ou Témoignage chrétien (“eles são livres de proferir todas as asneiras reaccionárias que quiserem”). A dado passo, o Le Monde escreveria mesmo que Soljenítsin se preparava para visitar o Chile de Pinochet, tendo sido obrigado, dois dias depois, a desmentir aquela falsidade grosseira, tão grosseira como outras tentativas de difamação feitas anos antes (como a que dizia que o escritor trabalhara para a Gestapo durante a Segunda Guerra…).
Expulsão e exílio
Nos anos anteriores à deportação, quando já tinha sido galardoado com o Nobel, intensificam-se as manobras intimidatórias. Cartas anónimas, telefonemas insultuosos, acções de vigilância ostensiva por parte do KGB, ameaças a si e à sua família, tentativas de intercepção dos manuscritos, as autoridades soviéticas urdiram uma gigantesca campanha contra Soljenítsin, indo ao ponto de mobilizar a sua primeira mulher, Natalia Rechetovskaia, que em vão tenta demovê-lo de prosseguir os seus intentos de denúncia do regime comunista. No decurso deste processo, o escritor parece sentir perder as forças, confessando: “Somos todos feitos de carne quente, não existem homens de aço.” Após a publicação de O Arquipélago em Paris, no final de 1973, faz prognósticos sobre o que lhe poderia suceder, tal como refere em O Carvalho e o Bezerro: assassínio; prisão e condenação; exílio sem prisão; banimento para o estrangeiro; campanha de imprensa para abalar o crédito do livro; difamação do autor através da sua primeira mulher; negociações; concessões mútuas, admitindo o regime que os factos relatados no livro eram anteriores a 1956. “O caminho da traição” era o título com que o Pravda noticiava a publicação de O Arquipélago, e a partir daí os acontecimentos precipitam-se: novo vendaval de ameaças e cartas anónimas, a edição alemã do livro sai a 22 de Janeiro de 1974 esgotando em poucas horas, e, quando é publicado pela Harper and Row o primeiro tomo em língua inglesa, em Setembro daquele ano, já há sete meses que o escritor fora expulso do seu país.
“A esquerda bem-pensante não o lia. Nem eu”, confessou Zita Seabra; “fazia afirmações que eu não apreciava”, referiu Carlos Brito aquando da morte do escritor, em Agosto de 2008. Num texto saído no PÚBLICO em 5/8/2008, Jorge Almeida Fernandes recorda as pressões que o escritor e os seus próximos sofreram. Em 1973, o KGB interrogou a sua dactilógrafa — que pouco depois se enforcará —, apoderando-se de uma cópia do original de O Arquipélago Gulag, que, no entanto, já havia sido enviado em microfilme para o Ocidente. Alguns percebem o que estava em causa: usando palavras semelhantes às do Frankfurter Allgemeine (“talvez venhamos um dia a considerar o aparecimento do Arquipélago como o ponto de referência que marca o início da decomposição do sistema comunista”), o The Times escreveu: “Virá o tempo em que situaremos o princípio do colapso do sistema soviético na data de publicação do Gulag.” Estas afirmações talvez sejam exageradas, mas o facto é que, não muito depois, e para além do já citado livro de Glucksmann, Hélène Carrère d’Encausse publicará em 1978 uma obra premonitória, L’Empire Éclaté. Nesse mesmo ano de 1978, Conquest dará à estampa um livro marcante na historiografia do Gulag, Kolyma. The Arctic Death Camps, que a partir de obras memorialísticas, documentação de arquivo e entrevistas directas a 18 ex-prisioneiros, conta histórias tremendas da vida nos campos, como a das violações de mulheres perpetradas pelos urkas, em Magadan e noutros lugares. Uma das fontes de Conquest foi, naturalmente, O Arquipélago Gulag.
Não admira, pois, a reacção das autoridades soviéticas e a campanha movida contra Soljenítsin, retratado como um louco, um furioso anti-semita e até um alcoólico (cf. D. M. Thomas, Alexander Solzhenitsin: A century in his life, 1998; Michael Scammel, Soljenitsine. A biography, 1984, pp. 664-665). Muitas das tentativas de difamação eram escandalosamente desastradas (o escritor não gostava de álcool e era abstémio…) e os dirigentes da URSS trataram o “caso Soljenítsin” da pior maneira, levando-o para a prisão de Lefortovo e colocando-o às pressas num avião, em Fevereiro de 1974. Sob a acusação de “traição à pátria”, foi deportado para a Alemanha ocidental, onde seria calorosamente recebido por Heinrich Böll, tendo o escritor alemão classificado os Läger nazis e os campos do Gulag como “a experiência do século”.
Ao agir desse modo, os líderes comunistas deram-lhe uma tribuna e contribuíram para a projecção mundial do seu nome, adensando em redor de Aleksandr Issaévich Soljenítsin a aura trágica de sacrifício e martírio que o acompanhava desde há muito: nascido em Lislovodosk, no Cáucaso, em 1918, filho de uma família de camponeses abastados, o seu pai morreu pouco depois de regressar da frente de batalha na Grande Guerra. Como referiu numa entrevista de 1972, o avô materno “era muito rico” e a sua mãe, conhecedora de francês e inglês, de dactilografia e estenografia, enfrentou grandes dificuldades para encontrar emprego após a Revolução de Outubro — em lugar algum a aceitavam por causa da sua “origem de classe”.
Durante 15 dos 19 anos que passaram em Rostov, e apesar de a sua mãe ser viúva (o pai morrera quando ela estava grávida de seis meses de Aleksandr), não tiveram sequer direito a um quarto do Estado, sendo obrigados a alugar casas a particulares, por preços exorbitantes. Soljenítsin seria mobilizado para a guerra em 1941, onde como capitão de artilharia foi condecorado duas vezes. Por troçar de Estaline na correspondência privada com um amigo, chamando-lhe “Cabecilha”, é detido em 1945 e interrogado na Lubianka (numa frase célebre, chamaria “desgraçado” ao pedaço de céu que se via do pátio interior da prisão moscovita e sede da polícia política), sendo condenado a oito anos de trabalhos forçados. No último ano que cumpria pena, foi-lhe detectado um tumor maligno: “Eu tive de viver com um tumor do tamanho do punho de um homem”, escreve em O Arquipélago. Acaba por vencer a doença, experiência que lhe serviu para a escrita de O Pavilhão dos Cancerosos, de 1968, sendo frequentes as metáforas oncológicas em O Arquipélago Gulag, onde se fala de metástases, do “cancro de Solovki” ou do “tumor canceroso do Arquipélago”.
Reabilitado no tempo de Khruschev, proposto para o Prémio Lenine, o mais alto galardão literário da União Soviética, seria posteriormente expulso da União dos Escritores e todas as suas obras retiradas das bibliotecas e proibidas de circular, processo que culminaria na expulsão de Soljenítsin do seu país. Além de ameaçar também os que o auxiliaram, com destaque para Rostropovich, a expulsão foi um sinal para todos os intelectuais e criadores culturais soviéticos, o aviso implacável de que na era Brejnev os tempos haviam mudado — para pior. Três dias depois da partida de Soljenítsin, o artista plástico Oskar Rabin, conhecido como “Soljenítsin da pintura”, disse: “Agora que têm as mãos livres, vão virá-las contra nós.”
O filho de Rabin seria chamado à polícia, sob a acusação de ter furtado um relógio numa igreja, e receberia várias chamadas telefónicas anónimas, pedindo-lhe emprestado um exemplar de O Arquipélago (cf. David Caute, The Dancer Defects. The struggle for cultural supremacy during the Cold War, 2003, p. 603). A repressão não começara aí. Antes disso, além de ter sido impedido de dirigir a orquestra do Bolshoi e de ver cancelados vários concertos na URSS, já Rostropovich vira revogada a autorização para fazer uma digressão pela Finlândia e por França, o que lhe trouxe graves prejuízos financeiros e não só, a ponto de o violoncelista ter dito: “A partir de agora, a minha carreira pode ser dividida em duas partes; antes e depois de ter escrito a carta a favor de Soljenítsin.”
O nome do escritor, antes proposto para o Prémio Lenine, era agora proscrito em toda a União Soviética. Quando, em Outubro de 1971, por ocasião de um congresso do Conselho Internacional da Música, Yehudi Menuhin se dirige à plateia e, entre outros, evoca Soljenítsin como exemplo da profundidade da alma russa, fez-se um silêncio glacial na sala. Este temor não desapareceu sequer com a Perestroika. Num dos testemunhos publicados por Svetlana Aleksievitch em O Fim do Homem Soviético (trad. portuguesa, 2015), uma jovem mulher, ao chegar a casa dos pais trazendo consigo um exemplar de O Arquipélago Gulag, é severamente reprimida pela mãe: “Se não sais imediatamente daqui com esse livro, ponho-te fora de casa!”
E no Portugal pós-revolucionário...
Acompanhando a estratégia definida no Kremlin de Brejnev, no Portugal pós-revolucionário foram publicadas obras que procuraram, sem sucesso, infirmar as denúncias feitas por Soljenítsin e outros dissidentes, como o livro Assim não, Soljenitsine!, de Alain Bousquet (1974), ou A Fraude Sakarov-Soljenitsine, de Gus Hall (1975). José Augusto Seabra, um dos responsáveis pela primeira tradução portuguesa de Arquipélago Gulag (1975), recordaria anos depois as dificuldades que enfrentou para conseguir levar a cabo aquela empresa. Com Francisco Ferreira (“Chico da CUF”), Seabra havia já traduzido, em 1970 e 1971, outro livro de Soljenítsin, Agosto de 1914. Ainda antes do 25 de Abril, quando se encontrava exilado em Paris, começara a rever a tradução que Francisco Ferreira e a mulher deste, Maria Llistó, haviam feito do primeiro volume de Arquipélago de Gulag (o segundo volume seria publicado em 1977, com outros tradutores). Feita a tradução, o texto é entregue ao editor, dizendo J. A. Seabra que aquele foi objecto de “pressões múltiplas, que visavam impedir a saída do livro ou pelo menos retardá-la o mais possível, sobretudo depois da instauração do ‘gonçalvismo’”.
A publicação de Arquipélago apenas foi conseguida porque, segundo o próprio, Seabra era na altura deputado constituinte, tendo alertado os meios políticos e a opinião pública para o acto de censura que estava prestes a ser cometido. O livro só foi acabado de imprimir em Setembro de 1975, quase no epílogo do “gonçalvismo” (cf. J. A. Seabra, “O caso Soljenitsine e a tradução portuguesa do Arquipélago Gulag”, Nova Renascença, 1992, pp. 347-348).
Em lugar da difamação e do silenciamento, outros optaram por uma estratégia mais subtil, a da busca de uma “equivalência de culpas” entre os Estados Unidos — ou o Ocidente, em geral — e a União Soviética. Esse expediente, usado desde os alvores da Guerra Fria, como nota Conquest (The Dragons of Expectation, 2005, pp. 138ss), foi flagrantemente mobilizado em torno de O Arquipélago Gulag. Em 1975, as Edições Ática dão à estampa a tradução portuguesa do livro Arquipélago de Sangue, com um subtítulo esclarecedor: As atrocidades cometidas pelo Ocidente em nome da Democracia e da Liberdade. Obra da autoria de Noam Chomsky e de Edward Herman, o prefácio de Jean-Pierre Faye não dissimulava sequer a tentativa de equiparação à de Soljenítsin: “Este livro é de importância igual à do imenso Arquipélago Gulag”; “vasto é o Arquipélago Gulag. Mais vasto ainda, disseminado desta vez à escala planetária, é o Arquipélago do Bloodbath”.
Cegueira e cobardia do Ocidente
Será precisamente no “Arquipélago de Sangue” que Soljenítsin fixa residência, só regressando à sua pátria em 1994. Após uma breve passagem pela Suíça, vai morar numa casa de campo em Cavendish, no Estado de Vermont, nos Estados Unidos. Na Rússia pós-soviética, alguns ainda falaram dele, em tom depreciativo, como “o grande velho de Vermont”, segundo um depoimento recolhido por Svetlana Aleksievitch em O Fim do Homem Soviético. Além da sua trajectória biográfica e da sua obra literária, a imagem de Soljenítsin é a de um ancião de longas barbas, marcado pela tragédia e pela dor, misto de sábio e de profeta, uma referência moral e espiritual de projecção planetária, insusceptível de se deixar seduzir pelo apelo do materialismo e, menos ainda, pelas ilusões do comunismo ateu ou do consumismo ocidental.
Cedo desiludiu quer os que procuraram apresentá-lo como um agente literário dos norte-americanos e da CIA, quer os que tentaram figurá-lo como um defensor das virtudes da economia de mercado e do liberalismo político. O seu célebre discurso em Harvard sobre o declínio do Ocidente, de 1978, a par dos escritos cáusticos que vai publicando em revistas como a Time ou a Foreign Affairs (e que se encontram parcialmente reunidos em O Erro do Ocidente, trad. portuguesa, 1981), não deixam margem para dúvidas.
Do mesmo passo que diz que “do comunismo nada se pode esperar, nenhum compromisso é possível com a doutrina comunista”, observa, cortante e ácido: “Não posso ter na conta das virtudes da democracia a sua impotência perante os pequenos grupos de terroristas, ou o aumento do banditismo, ou os lucros desenfreados que os capitalistas acumulam sem se preocuparem, minimamente, com a saúde moral da população.” Critica historiadores como Richard Pipes por nas suas obras não darem o devido relevo às perseguições religiosas e ao ateísmo enquanto elementos essenciais dos regimes comunistas.
Mas, acima de tudo, questiona a cegueira e a cobardia do Ocidente ao ter pactuado com Estaline e ao manter uma atitude passiva, de ilusória détente, em face do expansionismo soviético que se manifestava por toda a parte: na ocupação de Berlim-Leste, na repressão dos levantamentos de Budapeste e de Praga, na emergência da Coreia do Norte, nos regimes ditatoriais da África austral, na invasão do Afeganistão. “Se um dia conquistarmos a liberdade, devê-la-emos exclusivamente a nós mesmos. Se o século XX comportar alguma lição para a humanidade, nós tê-la-emos dado ao Ocidente, e não o Ocidente a nós: o excesso de um bem-estar perfeito atrofiou nele a vontade e a razão”, escreve em O Carvalho e o Bezerro, uma observação não inteiramente justa, sobretudo se tivermos em conta que passou duas décadas em segurança e liberdade na sua casa de Vermont.
Regressado à Rússia após 20 anos de exílio, manteve o estilo abrasivo e impetuoso das suas intervenções e manifestou um apreço nostálgico pela grandeza pretérita da mãe-Rússia que lhe valeu diversas críticas. Na Ucrânia, passou a ser odiado por muitos, já que lamentou, de certa maneira, a perda daquele território e da Bielorrússia. No Cazaquistão chegaram a existir movimentações para que uma fatwa fosse lançada contra ele. E a sua apologia de um “Estado forte” fê-lo simpatizar com Putin, de quem aceitou em 2007 o Prémio do Estado.
Trabalhador incansável, morreria de insuficiência cardíaca em 3 de Agosto de 2008, tendo passado a manhã desse dia sentado à secretária, a escrever. Conhecem-se-lhe trabalhos literários desde os dez anos de idade, histórias de piratas e de ficção científica. Soljenítsin assumia a escrita como uma vocação do destino, que as agruras da sua vida converteram em missão patriótica e imperativo moral, quase religioso. Quando morreu, foi sepultado no velho Mosteiro de Donskoi, em Moscovo, sendo as referências à religião e a Deus uma constante das suas obras. Atribuiu o facto de se ter curado de um cancro a “um milagre de Deus” e, como referiu em O Carvalho e o Bezerro, recusou firmemente a sugestão feita por um colaborador de Khruschev para que do texto de Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch fosse suprimida uma passagem com uma forte carga religiosa. Em O Carvalho e o Bezerro relata igualmente as horas de maior angústia, quando se refugiou na fé perante os que o ameaçavam: “Como é gostoso aninhar-nos no adro de Deus quando nos sentimos fracos e tudo vai mal! Quebrar alguns ramos no tenro bosque de bétulas para enfeitar com eles a minha querida dacha de madeira. Que acontecerá daqui a alguns dias — a prisão ou o alegre trabalho do meu romance. Só Deus sabe. Eu rezo”, escreveu pouco depois de O Pavilhão dos Cancerosos e de O Primeiro Círculo terem sido publicados no Ocidente (“abrira-se a brecha na Cortina de Ferro!“”, exclamou o escritor).
Nos últimos tempos de vida, estava a trabalhar intensamente numa nova edição das suas obras escolhidas, em 30 volumes, destinada a substituir uma anterior edição, em 20 volumes, lançada no exílio, em 1978. À data da sua morte haviam já sido publicados 11 volumes da reedição moscovita dos seus trabalhos, numa época em que o interesse pelo escritor tivera um súbito recrudescimento, em larga medida graças ao labor de duas das suas colaboradoras de longa data, cujos nomes haviam sido cautelosamente mantidos na penumbra. Uma delas, Nadezhda Levitskaya, iniciou a organização de uma bibliografia activa e passiva do escritor, que, contemplando apenas os textos em língua russa, tem mais de 8 mil entradas, o que é um sinal ilustrativo da atenção que Soljenítsin desperta no seu país. Outra das suas colaboradoras, Mira Petrova, dedicou-se ao insano trabalho de produzir uma edição crítica de O Primeiro Círculo, com centenas de anotações. A par disso, a escritora Lyudmila Saraskina lançou em 2008 uma extensa biografia de Soljenítsin; traduzida para francês em 2010, é considerada uma obra inultrapassável, dado o acesso privilegiado que a autora teve à família e aos arquivos do biografado (cf. Michael Nicholson, “Solzhentsyn reclaimed”, TLS, de 28/11/2008).
Vida e destino
Se a denúncia dos campos do Gulag desferiu um golpe profundo na imagem da União Soviética, contribuindo decisivamente para a derrocada a prazo do comunismo, Soljenítsin não pode considerar-se um absoluto vencedor da História. Tendo escrito uma obra monumental sobre o Gulag, onde se reúnem 227 testemunhos cujas identidades só foram reveladas em 2007 e que na edição completa em russo tem mais de 1700 páginas, Soljenítsin viu-se obrigado, digamos assim, a um duro confronto com uma contemporaneidade em que no Ocidente, mas também na sua Rússia natal, os leitores, nomeadamente os estudantes, só se dispõem a ler uma versão abreviada de O Arquipélago Gulag, tal como explica a filha do escritor, Natália Soljenítsin, no prefácio à edição portuguesa daquele livro.
Resta saber como será tratada aquela que Soljenítsin chamava “a principal obra da minha vida”, o fresco histórico A Roda Vermelha, colossal empreendimento de 6600 páginas, concluído em 1990. Por outro lado — e mesmo que Soljenítsin tenha dito que não quis, de modo algum, elaborar um requisitório com o seu O Arquipélago Gulag —, causar-lhe-ia espanto, ou furiosa indignação, a persistência e até o emergir de uma corrente revisionista na historiografia ocidental, protagonizada por autores como os norte-americanos J. Arch Getty, que assinou, entre outros, Origins of the Great Purges (1985), o qual, em lugar de milhões, fala apenas em “milhares” de detenções durante o estalinismo; ou Lester Thurston, que em Life and Terror in Stalin’s Russia (1996) sustenta que as teorias do totalitarismo são “irrelevantes” para explicar as grandes purgas dos anos 30 e que estas purgas tiveram o efeito virtuoso de promover a ascensão de elementos que mais tarde iriam desencadear a Perestroika (!).
Conhecedor dos meandros do sistema prisional, onde a todo o instante se viam as falhas de carácter e as misérias da alma humana, a Soljenítsin decerto não impressionariam as tentativas, feitas por guardas e por antigos responsáveis pelos campos, para, na sequência da Glasnost, branquearem o seu passado, procurando obter, inclusivamente, testemunhos abonatórios de ex-prisioneiros em que estes confirmassem que não haviam sofrido maus tratos às suas mãos, tal como refere Orlando Figes em Sussurros — A vida privada na Rússia no tempo de Estaline (trad. portuguesa, 2010, pp. 654ss).
Mais problemática seria, na perspectiva de Soljenítsin (que no pórtico de O Arquipélago afirma “tudo se passou exactamente assim”), a ideia avançada por Figes, segundo a qual nas décadas de 1970 e 1980 os sobreviventes dos campos se identificaram de tal modo com a narrativa de O Arquipélago Gulag, lida sob a forma de samizdat, “que suspendiam as suas memórias pessoais”. Era através da obra de Soljenítsin e de outros livros que as vítimas da repressão conseguiam obter um quadro geral de entendimento e compreensão do que lhes acontecera, o que frequentemente fazia que substituíssem as suas recordações, confusas e fragmentárias, pelas memórias claras e coerentes dos escritores. Daí que, em síntese — e ao contrário de Applebaum, por exemplo —, Figes conclua que “os testemunhos orais são, de uma maneira geral, mais fiáveis do que as memórias literárias, embora estas sejam normalmente considerados registos mais autênticos do passado”.
Há quem considere, no entanto, que os testemunhos orais apresentam igualmente problemas de fiabilidade, lembrando Adam Hochshild o estudo de Lawrence Langer sobre as memórias dos sobreviventes do Holocausto, em que estes tendem a apresentar versões das suas histórias de vida muito mais dramáticas do que aquelas que os entrevistadores pretendem ouvir. Há pois uma infinidade de questões que se colocam à historiografia de acontecimentos como o Gulag ou o Holocausto, do mesmo passo que até as libertações verificadas na época de Khruschev — e de que Soljenítsin foi um dos beneficiários — são objecto de visões distintas, umas mais complacentes para o sucessor de Estaline (como a de Stephen Cohen em Soviet Fates and Lost Alternatives, 2009), outras menos benévolas (como a de Miriam Dobson em Khrushcev’s Cold Summer. Gulag returnees, crime, and the fate of reform after Stalin, 2011).
Como seria de esperar, o Gulag e os crimes dos tempos soviéticos ainda são um território de confronto e polémica, bastando lembrar que Putin solicitou ao Supremo Tribunal da Rússia que ilegalizasse a Associação Memorial ou que em 2013 se abriu em Moscovo uma batalha campal entre os nostálgicos do estalinismo e as organizações não governamentais de defesa das vítimas, com os primeiros a defenderem a reintrodução de estátuas ou placas comemorativas removidas depois de 1989, como a que se via na casa de Brejnev ou a estátua de Dzerzhinsky na Praça da Lubianka.
Porém, mais do que essas controvérsias, o que teria naturalmente abalado Soljenítsin — que de certo modo se arvora em porta-voz dos milhões de vítimas do Gulag, proclamando-se “cronista do arquipélago” — é a manutenção na Mordóvia, uma pequena república da Federação russa notabilizada por ter oferecido o cargo de ministro da Cultura ao actor francês Gérard Depardieu, de cerca de duas dezenas de campos de trabalho da era estalinista; ou, noutro registo, a transformação, em vários lugares da Rússia, desses campos de trabalho escravo em locais de atracção turística. Trata-se, porventura, do sinal mais evidente de apropriação da memória colectiva por uma lógica de mercado que o autor de O Arquipélago sempre verberou. Outros escritores acompanham-no nessa crítica, podendo recordar-se a alusão irónica de Aleksievitch, em O Fim do Homem Soviético, ao facto de actualmente se poder visitar os campos estalinistas em Solovka, em Magadan: “O anúncio promete que para mais completa sensação fornecem um fato do campo e uma picareta. Mostram os barracões restaurados. E no final organizam uma pescaria…”
Na mesma linha, a escritora Monika Zgustova publicou um texto indignado com o título “Pasa tus vacaciones en el gulag!” (El País, 16/4/2010), onde cita Soljenítsin e escreve que “o turismo organizado aos lugares do mal trivializa o sofrimento humano e converte-o em espectáculo”. No seu périplo siberiano, outro escritor, Olivier Rolin, desloca-se a Kolymá, onde se depara, surpreendido, com “uma barraca Hot-Dog Pizza encimada por um hambúrguer de plástico gigante” (Sibéria, trad. portuguesa, 2016, p. 99). A presença de restaurantes fast food em Magadan não significa necessariamente uma derrota do projecto cívico e literário de Soljenítsin, mas por certo teria perturbado um homem que sempre se caracterizou pela frugalidade e pelo ascetismo. Lembre-se que, desde que foi libertado, o autor de O Arquipélago cumpria todos os anos um ritual de memória: no aniversário da data da sua prisão, alimentava-se apenas da ração dos campos, 650 gramas de pão e dois ou três cubos de açúcar dissolvidos em água quente.
Uma obra inclassificável
O Arquipélago Gulag é uma obra inclassificável. “Ensaio de investigação literária”, assim lhe chama o autor em subtítulo, para dizer, mais adiante, que se trata de “um estudo”, não de um “romance” como O Primeiro Círculo. Misto de narrativa autobiográfica, obra literária e recolha de testemunhos, tem pretensões de absoluta veracidade histórica, abrindo com as já citadas palavras: “Tudo se passou exactamente assim.” Mesmo quem lhe aponta algumas imprecisões factuais, como sucede com Applebaum, mostra-se espantado por Soljenítsin, com meios reduzidíssimos, ter conseguido produzir uma obra com uma imensidão de referências e histórias que investigações subsequentes mostraram estar absolutamente correctas. Mas tão ou mais espantosa do que a fidedignidade das informações contidas em O Arquipélago é a velocidade com que Soljenítsin o escreveu. O essencial da obra foi redigido num lugar secreto, o “esconderijo”, como lhe chamava, e cuja localização só seria revelada em 1991. Trata-se de uma quinta nas proximidades de Tartu, na Estónia, e Soljenítsin trabalhou aí dois invernos seguidos — em 1965-1966 e em 1966-1967 —, redigindo uma primeira versão do livro em apenas 146 dias. Depois, ainda muito trabalho foi feito, sozinho ou com a ajuda de colaboradores, mas sempre sob a ameaça de o manuscrito ser apreendido, os arquivos destruídos, o escritor preso ou até morto antes de concluir a sua obra.
É certo que, ao apreciá-la, alguns são ferozmente críticos, como é o caso de Nabokov, para quem o livro não passava de “a kind of juicy journalese, formless, wordy and repetitious”, um juízo cuja severidade já foi atribuída ao facto de Soljenítsin ter conquistado o Nobel, ao contrário do autor de Lolita (cf. Orlando Figes, Natasha’s Dance. A cultural history of Russia, 2002, pp. 555-556).
Numa entrevista concedida em 1966 a um jornal japonês, transcrita em O Carvalho e o Bezerro, Soljenítsin disse: “A forma literária que mais me atrai é o romance polifónico". Num certo sentido, é possível ler O Arquipélago como um romance polifónico, ainda que o mesmo não se assuma, de modo algum, como uma obra ficcional. Pelo contrário, e como já vimos, sustentará a absoluta veracidade de tudo quanto escreveu. Numa declaração de Setembro de 1973, designa o seu trabalho, à maneira académica, como um “estudo em vários tomos dos campos de concentração soviéticos durante o período compreendido entre os anos de 1918 e 1956, que só contém factos autênticos”. Situa a motivação para o escrever no quadro de um imperativo de memória para com as vítimas do Gulag, tal como dirá numa entrevista à Time em Janeiro de 1974: “Cumpri o meu dever para com os que pereceram” (em O Arquipélago fala de um “dever perante os mortos”). Pouco depois, em Fevereiro desse mesmo ano de 1974, amplia a pretensão do seu livro, dizendo tratar-se “não de um panfleto, mas uma chamada ao arrependimento”. E acrescenta: “Nunca duvidei de que a verdade voltaria ao meu povo. Creio no nosso arrependimento, na nossa purificação espiritual, no renascimento nacional da Rússia.” Também por essa altura, dirigindo-se às autoridades soviéticas, proclama em tom desafiador: “Matem-me no mais breve prazo, porque escrevo a verdade sobre a história da Rússia.”
O autor de O Arquipélago procurou definir o que entende por “investigação literária”, a caracterização que usa no subtítulo do seu livro: “Uma investigação literária é a utilização do material factual, vivo (não transformado), para que dos factos isolados, dos fragmentos, reunidos, no entanto, segundo as capacidades literárias do autor, se extraia com toda a evidência uma ideia geral, que de modo nenhum seja inferior a uma investigação científica.” Porém, na abertura do livro dirá: “Não tenho a pretensão de escrever a história do arquipélago.” Na verdade, não o fez. O Arquipélago não é um levantamento sistemático do historial do Gulag e a organização interna do livro obedece a um modelo de “investigação literária” (ou de “ensaio”, como também Soljenítsin lhe chama) que confere ao seu autor uma ampla liberdade criativa, mantendo-se, todavia, uma escrupulosa adesão aos factos e à verdade que deles irradia.
Além da arquitectura da obra e da composição polifónica dos testemunhos, ao narrador caberá a escolha das palavras e o recorte das frases, a busca do estilo mais adequado a cada situação descrita, a inserção do seu testemunho pessoal de ex-prisioneiro do Gulag e, enfim, a opção por destacar aspectos que considera terem sido menosprezados, nomeadamente as perseguições por motivos religiosos (“os cristãos foram uma multidão, levas e ossários, levas e ossários, quem contará esses milhões?”) ou o contraste absoluto entre o sistema penal czarista e os campos dos sovietes, a par do esclarecimento de que a repressão não terminou com a morte de Estaline nem começou com ele, datando dos primórdios da Revolução de Outubro e, muito em particular, da acção de Lenine e de Trotsky.
Num trecho de O Arquipélago, Soljenítsin aconselha os seus companheiros de infortúnio, dizendo-lhes: “Possui só aquilo que possas trazer sempre contigo. Conhece as línguas, conhece os países, conhece os homens. Que o teu saco de viagem seja a tua memória. Memoriza! Memoriza! Só essas sementes amargas terão talvez a possibilidade de crescer.”
Compreende-se assim o motivo que o levava a encarar a publicação do seu livro como uma necessidade vital, uma questão de vida ou de morte. Com O Arquipélago Gulag, Aleksandr Soljenítsin lançou à terra a semente amarga da memória dos campos soviéticos. Em homenagem às vítimas, uma lição para toda a humanidade.
O artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO