Pelas ruas da Madragoa, os velhos filmes lá de casa reinventam-se
São olhares da Madragoa gravados em películas. Durante esta sexta, sábado e domingo, a Traça - 2ª Mostra de Filmes de Arquivos Familiares - está na rua para ajudar a construir um mapa da cidade, desenhado por memórias de quem nem sempre teve voz na história.
A rua de São Félix tem calçada e carros estacionados dos dois lados. Da janela, a dona Maria Manuela, que usa calças pretas com vinco e sapatos cinzento claro fechados, vê a vizinha a estacionar o carro e acena-lhe. Conversam sobre o prédio em ruínas ali ao pé que haverá de ser mais um hostel. Mas nesta rua também há miúdos, cocó de cão e uma trepadeira farfalhuda. E há muitas histórias de vida, das que podem até nem fazer História mas que dão vida a uma cidade.
Esta é a Rua de São Félix, onde ainda mora a Maria Manuela Sousa, “que já deve ter entrado nos 70”, aos olhos da artista Raquel André. Entre os filmes em Super 8 que a Dona Maria Manuela entregou ao Arquivo Municipal de Lisboa - Videoteca, e que tinham sido filmados pela mãe, a artista “conectou-se” com a película daquela rua.
A uma hora tardia de uma noite de domingo e com um quadro de ardósia e giz, a artista começou a “criar esse imaginário de como seria se a Dona Maria Manuela filmasse a rua”. É isso que vemos na peça que Raquel preparou para a segunda edição da mostra de cinema amador e familiar da Traça, que sai esta sexta-feira à rua.
Este ano, o bairro da Madragoa é o epicentro da “cidade imaginada pelos filmes de família na cidade real”, dizem as organizadoras da mostra, Inês Sapeta Dias e Fátima Tomé. Para, mais uma vez, “abrir a escrita da história a quem normalmente não tem acesso e contrapor à história oficial a história dos pequenos acontecimentos, dos gestos e da vida das pessoas”, diz Inês.
A mostra arranca esta tarde com um passeio pelo bairro com filmes de origem desconhecida, em emissão contínua, que vão ser exibidos em espaços como o Regimento de Sapadores de Bombeiros, Esperança Atlético Clube ou Vendedores de Jornais Atlético Clube, Torrefacção Flor da Selva ou o Lavadouro das Francesinhas.
O que é que se escolhe para ficar como arquivo? Quanto disto é realidade? Quanto disto são realidades atraiçoadas pela memória?
“Aqui o que as pessoas nos dizem sobre as suas imagens ou dos seus pais vai variando muito de dia para dia, a memória confunde-se muito com a imaginação e nós projectamos muitas coisas nossas nos filmes dos outros”, nota Inês. Afinal, o trabalho dos artistas que foram convocados para fazer parte da mostra não está assim tão longe do das pessoas.
Repetição
A Traça quer ir habitando os bairros da cidade trabalhando as memórias, misturando-as com outras áreas artísticas. Na primeira edição, convidaram sete realizadores, abriram-lhes o arquivo “para criarem objectos novos” - sete curtas-metragens - a partir dos velhos filmes para manter o arquivo “vivo e em movimento”. Agora, são as artes performativas. Pela mão do Espaço Alkantara, o teatro e a dança contemporânea foram trazidos para o evento pela mão de oito artistas que trabalharam seis peças a partir dos filmes de família.
A memória como construção foi o caminho que a actriz Isabel Abreu quis explorar. “Tenho um problema grave de memória. Tenho memórias fortes de textos e de peças, de trabalho, e de vida tenho muito poucas memórias. Há muitas coisas que construo com base em coisas que me dizem. E em que vou acreditando porque as repito na minha cabeça”, explicou ao PÚBLICO, no dia em que assistimos ao ensaio geral da peça que criou para a Traça, Até descobrir o voo no mar.
“Tornam-se a nossa memória concreta e não significa que tenham sido a realidade”, conta. Talvez por isso, quando Isabel Abreu viu as imagens do arquivo de Maria Manuela Sousa, deteve-se na imagem de um pai e filha que brincavam na praia, com mergulhos repetidos no mar.
A actriz, que teve aqui oportunidade de estar no papel de criadora pela primeira vez, quis explorar a força da repetição na sedimentação da nossa memória. A esse pai e a essa filha, projectados na tela em loop, Isabel juntou-lhe depoimentos que recolheu junto de moradores do bairro da Madragoa. A actriz sentou-se com essas pessoas e perguntou-lhes sobre os seus pais, o que recordavam deles de bom e de mau.
À escritora Dulce Maria Cardoso pediu emprestadas palavras e frases, como esta: “A repetição de um objecto que para mim se torna verdadeiro”.
Devolver as “imagens misteriosas” do bairro ao bairro
Pelos palcos do bairro como o Centro Comunitário da Madragoa, o Instituto Hidrográfico, o Espaço Alkantara, ou o Palácio do Machadinho, além de Raquel André e Isabel Abreu, vão passar Alex Cassal, Sofia Dinger, Sofia Dias & Vítor Roriz e Jorge Silva Melo & Miguel Aguiar que se misturam nas próprias histórias, constroem e desmontam memórias. Afinal, quantas interpretações podem ter as velhas lembranças que estiveram anos guardadas em caixas empoeiradas no sótão da nossa memória?
“Há a ideia de criação de um novo arquivo. Para mim foi essa a possibilidade. Os arquivos já são muito fortes. Eles comunicam por si. Para mim a chave foi criar um novo arquivo, de como é que um trabalho artístico pode ser a criação de um novo material”, explica Raquel André.
Algures no tempo, os da terra, ou os que estavam de passagem, eternizaram a Madragoa em imagens. Agora, a Traça chega para mostrá-las a quem ainda lá está, mas também a quem continua só de passagem. Foi assim há dois anos no bairro do Castelo, continuará a ser assim num outro bairro, para descobrir a cidade que está nestes filmes.
“Há dezenas de colecções à espera de serem digitalizadas”, diz Fátima Tomé, depois de há uns anos Joaquim Mendes, que era projeccionista na Videoteca (integrada no Arquivo Municipal de Lisboa em 2011), ter começado a transcrever as bobines que muitos lhe faziam chegar. Eram filmes “órfãos”, arrumados num canto de um sótão porque os materiais se tornaram tão obsoletos que deixaram de ter uso. Ou então eram deixados na rua, perdidos em caixotes onde se despejam as coisas dos velhos que morrem.
As imagens foram-se acumulando ao longo dos anos. “Havia imagens misteriosas”, diz Fátima. Era preciso descobrir quem eram aqueles anónimos dos vídeos, por isso a Traça apareceu para “tratar os filmes de família que não são tratados pela história do cinema”, para tratar os filmes “pela estética e não só pelo documento”, diz Inês Dias.
Além das performances, haverá ainda espaço para debates e conversas sobre os filmes, que serão comentados pela escritora Maria Filomena Molder e pelo poeta Daniel Jonas. No domingo, as exibições de sexta-feira e de sábado serão repetidas. A entrada é livre, mas para assistir aos espectáculos é necessário levantar a senha 30 minutos antes do início, no próprio local.
No sábado, às 16h, no Palácio do Machadinho, vão ser exibidos dois filmes que estudantes do 4º ano do Primeiro Ciclo da Escola Básica nº 72 de Lisboa desenvolveram numa oficina de som e imagem a partir destas imagens de arquivo.
No meio de horas de imagens perdidas, o desafio agora é que os seus autores, protagonistas ou herdeiros se reconheçam nas vidas que foram gravadas há décadas: “Espera lá, já vi esta cara nalgum sítio”.