Justiça investiga agressões em lar para menores em risco

Ministério Público abriu inquérito à Casa dos Rapazes de Viana do Castelo. Técnicos terão protagonizado humilhações, insultos, agressões. Educadoras denunciaram a situação e há seis arguidos.

Vídeo regista maus tratos a crianças em lar de acolhimento I PÚBLICO

A violência ter-se-á tornado uma prática educativa no lar de infância e juventude da Casa dos Rapazes de Viana do Castelo, uma estrutura destinada a crianças e jovens em situação de perigo. Quatro rapazes já terão sido alvo de retirada urgente. O Ministério Público (MP) está a investigar e cinco funcionários e a própria instituição foram constituídos arguidos.

A instituição particular de solidariedade social acolhe até 46 crianças e jovens. As queixas remetem para a unidade azul, a destinada a rapazes entre os 11 e os 15 anos/16 anos.

Uma vez por semana, a equipa técnica e educativa sentava-se com os rapazes da chamada unidade azul para discutir o que correra bem e o que correra mal nos dias anteriores. Num vídeo de Outubro de 2015, vê-se um rapaz a ser interrogado porque usou a palavra “puta”. O coordenador de unidade dá-lhe repetidas palmadinhas na cabeça. “Anda caramelo!” E a actual directora técnica, então gestora de caso, explica-lhe que em vez dessa palavra deve usar a palavra "prostituta".

Insultos, humilhações e castigos

A situação terá escalado no princípio deste ano, meses depois da nova directora técnica ter assumido funções. Nas reuniões da equipa, superiores hierárquicos terão dito diversas vezes a técnicos e educadores que no dia-a-dia poderiam recorrer a “práticas de controlo do comportamento” que passariam pelo uso de “insulto verbal, humilhação e castigo”. E, pouco-a-pouco, a violência verbal, emocional ou mesmo física ter-se-ão tornado num modo aceitável de lidar com a experimentação sexual dos rapazes e com outros comportamentos considerados desviantes. Em Março, a situação terá ultrapassado os limites até então aceites por todos.

Noutro vídeo datado de 2 de Março de 2017, durante a reunião semanal, o coordenador de unidade interroga um rapaz suspeito de ter roubado alguns lápis. A câmara está apontada para o chão. Deduz-se que o rapaz cobre a cara porque se ouve o coordenador de unidade a ordenar-lhe várias vezes que tire as mãos da cara. A irritação do coordenador vai em crescendo. Ouve-se um rapaz aconselhar: “Tira as mãos senão levas um soco, burro.” Ouve-se chorar. “Pára de fazer esse barulho. Pareces um porco”, diz-lhe a directora técnica.

O interrogatório prossegue. “Tira as mãos, para baixo, caralho.” Ouve-se um estalo. O rapaz chora ainda a mais. O interrogatório continua nestes moldes até o miúdo confessar que vendeu os dois lápis. “Mas tens mais dois, ó camelo.”

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Casa dos Rapazes localiza-se em Viana do Castelo Adriano Miranda

No dia 13 de Abril, esse mesmo rapaz de 13 anos terá sido apanhado na cama com outro, de 16. O educador que os apanhou tê-los-á destapado. Ao perceber que o mais novo tinha as calças descidas, tê-lo-á obrigado a ir à casa de banho “ver a figura que estava a fazer”. Ao notar-lhe esperma nas calças, terá chamado outros dois educadores. Um quarto educador terá ouvido gritos, corrido pelas escadas acima e visto dois colegas a observar e um a segurar e a esmurrar o rapaz.

Hematomas no rosto e num braço

Eram quase 8h. O rapaz terá ficado no quarto todo o dia. Nem terá descido para almoçar com os outros. Às 15h00, quando houve mudança de turno, continuava aninhado. Tinha hematomas no rosto e num braço. Queixava-se de dores. Não fora visto por um médico, nem medicado. Ao vê-lo naquele estado, uma das educadoras que tinham acabado de entrar de serviço ter-lhe-á dado um anti-inflamatório. Ainda se dirigiu ao gabinete da psicóloga, indignada. “Confia, foi assim que tivemos de actuar, o que ele fez foi muito grave”, ter-lhe á respondido a técnica.

Desconfiadas de que não encontrariam a atitude desejada na direcção, aquela funcionária da unidade azul e outra, da unidade verde, destinada aos maiores de 16 anos, tentaram recolher provas. Fotografaram o rapaz mais novo e gravaram o seu depoimento. O rapaz mais velho já não estava. Teria ido passar uns dias a casa, com uma lesão num ouvido, dor e ordem para dizer que andara à porrada, sob pena de se vir a saber que se envolvia sexualmente com outros rapazes.

Era quinta-feira de Páscoa. Na segunda-feira, 17 de Abril, as educadoras terão sido chamadas pela directora técnica e pela psicóloga para saber se tinham dito ao rapaz que o que lhe acontecera não deveria ter acontecido. E ambas manifestaram desacordo com o uso de violência. No dia seguinte, tornaram a ser chamadas. Terão sido acusadas de estarem a criar instabilidade. A educadora da unidade azul foi transferida para a unidade verde. Deixaram de estar no mesmo turno.

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No registo diário da instituição lê-se que uma das vítimas teve de receber medicação para as dores

Aqueles e outros rapazes terão sido instruídos para não falarem com aquelas educadoras. Elas não eram, porém, as únicas pessoas descontentes. Nem aqueles seriam os únicos episódios de violência.

Linha SOS Criança foi alertada

O Ministério Público de Viana do Castelo recebeu uma denúncia no dia 18 de Abril. Nesse mesmo dia, a linha SOS Criança foi alertada. A 24 de Maio, uma denúncia informal foi feita ao Instituto de Segurança Social (ISS), a entidade tutelar do acolhimento residencial, que funciona na dependência da Secretaria de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim.

Entretanto, começara a circular uma carta anónima. A Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco recebeu-a e remeteu-a ao Centro Distrital de Segurança Social e ao Ministério Público. A 9 de Junho, uma denúncia mais detalhada, com cerca de 40 documentos anexos, chegou ao MP.

“Nesse inquérito foram denunciados factos susceptíveis de integrarem o crime de maus tratos”, informa o gabinete de imprensa da Procuradoria-Geral da República. Os rapazes “foram, no âmbito dos respectivos processos de promoção e protecção, colocados noutra instituição. O inquérito tem seis arguidos constituídos e encontra-se em segredo de justiça”, refere ainda.

Acabaram-se as reuniões semanais. Pelo menos quatro rapazes foram transferidos para outros lares de infância e juventude. O primeiro seria alvo de humilhação constante por causa da sua orientação sexual. O segundo e o terceiro rapazes protagonizaram o episódio já relatado. O quarto terá sido agredido na cave, depois de estar uma semana fugido.

Pressionados a alterar versão dos factos

Os suspeitos continuam a trabalhar no lar de infância e juventude, alegadamente pressionando rapazes a alterar a versão dos acontecimentos. Já em Outubro um dos arguidos foi promovido de coordenador de unidade a coordenador das duas unidades.

Na terça-feira houve uma reunião de direcção. O presidente, Luís Brito, foi mandatado para falar com o PÚBLICO. Não recebeu o PÚBLICO na instituição, nem indicou quem o fizesse. “O que nós sabemos é que houve uma carta anónima e que essa carta foi enviada para o Ministério Público e para a Segurança Social e que o Ministério Público está a fazer uma investigação”, referiu, por telefone.

A direcção tomou alguma iniciativa?, perguntou-se-lhe. “Temos um processo interno que está em curso”, disse. Questionado sobre o facto de a Segurança Social ter feito várias visitas à instituição em Junho, declarou: “Isso era uma coisa que já estava prevista e associou essa investigação.”

Confrontado com o facto de um dos suspeitos ter sido promovido, Luís Brito respondeu: “Eu não sei nada.” Nem quem foi ouvido, nem quem foi constituído arguido. Não acha sequer que “haja evidência” de que algo possa ter acontecido. “Temos uma nova directora técnica há um ano e pouco. Ela propôs um plano de reajustamento de funções e é isso que está a ser feito”, advogou.

Ao que o PÚBLICO apurou, as educadoras que denunciaram o caso escreveram uma carta. Remeteram-na à direcção no dia 1 de Junho por correio registado, com aviso de recepção. Leram-na em voz alta perante Luís Brito e outro membro da direcção. A Segurança Social também terá posto as cartas na mesa. 

Notícia alterada às 19h53 deste domingo para tirar a referência à Diocese de Viana do Castelo. A Casa dos Rapazes foi fundada por um cónego e por um grupo de católicos mas não integra a diocese.  

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