Filhos de “barrigas de aluguer” “não têm direito” a conhecer mãe biológica?

Miguel Oliveira da Silva, obstetra e antigo presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, considera que as crianças que nascem de dadores de esperma e de óvulos devem poder saber quem são os pais biológicos. Lei portuguesa garante o anonimato.

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Pedro Nunes

O primeiro presidente eleito do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), o obstetra Miguel Oliveira da Silva, advoga que as crianças nascidas graças às novas técnicas reprodutivas – Procriação Medicamente Assistida (PMA) – com dadores de esperma e ovócitos devem ter o direito de saber quem são os seus pais biológicos e se têm meios-irmãos. No livro Eutanásia, suicídio ajudado, barrigas de aluguer (Editorial Caminho) que esta segunda-feira é apresentado em Lisboa e que escreveu para espicaçar o debate dos cidadãos, o professor de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa diz que a PMA em Portugal "está centrada nos direitos dos adultos e esquece os das crianças e adolescentes, o que é uma distorção grave".

Critica neste livro o Parlamento por não ter acolhido, nem nas leis nem na regulamentação das leis de PMA, nomeadamente a que veio permitir a gestação de substituição (vulgo "barrigas de aluguer"), praticamente nada do que o CNECV tem recomendado.

Sim, o Parlamento tem de alguma forma ignorado, não tem acolhido, designadamente nestas leis controversas de PMA, praticamente nada do que o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida escreve. O que levanta um problema: será que o CNECV está completamente errado, o que é surpreendente, porque seis dos seus elementos são eleitos pelo Parlamento e cinco são nomeados pelo Governo? Isto merece uma reflexão séria. Não conheço país nenhum da Europa Ocidental em que os pareceres dos conselhos de bioética sejam tão pouco acolhidos pelo legislador como em Portugal.

Quer incentivar o debate de cidadãos, mas as pessoas não parecem muito interessadas em discutir estas questões.

As pessoas estão muito alheias, não há debate em Portugal. Um exemplo: no Verão de 2016 sairam aquelas duas leis últimas de PMA, e, pouco tempo depois, almocei com ilustre constitucionalista que não sabia pormenores [da legislação]. Ignorava, por exemplo, que uma mulher solteira pode ir a um centro para ser inseminada com esperma de dador anónimo.

Por toda a Europa fora há hoje um enorme debate para se acabar com o anonimato dos dadores de gâmetas [ovócitos e espermatozóides], percebeu-se que os jovens querem conhecer os pais genéticos e saber se têm meios irmãos. Em todo o Norte da Europa, até já se acabou com o anonimato, à excepção da Dinamarca. Em Portugal ninguém discute isto.

Numa altura em que mais de 2,5% de todos os nascimentos em Portugal resultam de técnicas de PMA, ainda somos obrigados a importar esperma. Porquê?

Não sei. Por que é que há tantos dadores em Espanha e não há em Portugal? Será porque não se fizeram campanhas de esclarecimento e divulgação? Há quem ache que as campanhas não foram suficientes, outros defendem que a compensação, com ou sem aspas, é insuficiente. Em Portugal, nada tem sido feito para discutir por que não há dadores suficientes [no Serviço Nacional de Saúde], quando os há no privado. Quanto ao anonimato, um estudo efectuado num centro privado de Lisboa concluiu que a maior parte das dadoras [de ovócitos] não se importaria de prescindir deste direito, se ficasse garantido não haver efeitos jurídicos. 

Defende que o anominato dos dadores é eticamente inaceitável. Porquê?

O que é que é mais importante? O direito do pai ou da criança? Eu não tenho dúvidas: é o direito da criança. As revistas científicas da especialidade publicam todos os meses artigos sobre isso, mas cá ninguém fala disso. Muitas pessoas acham que, se a doação deixar de ser anónima, ninguém dará esperma nem ovócitos, o que não é necessariamente assim. A PMA em Portugal está centrada nos direitos dos adultos e esquece os das crianças e adolescentes, o que é uma distorção grave.

As crianças são tratadas como se fossem um objecto a que se pode mentir. Na Suécia, quando se faz inseminação com dador de esperma, no consentimento informado as pessoas têm que deixar escrito que vão revelar a verdade à criança sobre a sua origem genética e biológica. Aqui, há um silêncio total sobre o direito das crianças. As crianças oriundas de barrigas de aluguer não têm direito a ter mãe? Em Portugal tudo indica mesmo que a grávida de substituição vá ser obrigada a uma cesariana desnecessária, com anestesia geral desnecessária, apenas para não ver a criança.

A mulher que empresta o útero não pode mudar de opinião após o nascimento da criança?

Em Portugal é assim. Uma das propostas do CNECV que não foi acolhida era justamente a da grávida poder escolher até ao parto [se fica com a criança]. Isso está na primeira versão da lei e, no próprio dia da votação, foi retirado - o contrato obriga a grávida a dar a criança ao casal. Mas há contratos que por vezes não se cumprem…

A legislação está mal feita, portanto?

Claro que está. E há o problema inverso: o das crianças que nascem com defeitos (porque nem todos os defeitos são diagnosticados antes da gravidez), que nem a grávida nem o casal quer depois. No estrangeiro, já há casos de crianças que foram parar a orfanatos porque ninguém as quis. Eu não sou contra a possibilidade de haver barrigas de aluguer, mas acho que devia ser absolutamente limitada a familiares próximos, como os casos de irmãs, em que, por exemplo, uma mulher nasce sem útero e a irmã empresta o seu.

O primeiro pedido de gravidez de substituição divulgado entre nós é o de uma mãe de 49 anos que quer emprestar o útero à filha. O que pensa disto?

Qualquer médico lhe dirá que uma mulher não deve engravidar depois dos 45 anos. Depois disso, é uma gravidez de alto risco. O comité de ética da sociedade norte-americana de medicina de reprodução diz que nenhuma mulher deve engravidar após os 45 anos. Aqui, foi-se um bocado mais longe, até aos 50 anos.

Defende igualmente que é preciso saber quanto é que o SNS gasta com a PMA no privado…

Perguntei isso oficialmente ao Conselho Nacional de PMA e eles dizem que não sabem, perguntei no hospital onde trabalho, o Santa Maria, e não me responderam. É mistério a mais, até porque há referenciação para os privados permanentemente, uma vez que há lista de espera. Nas consultas de PMA há listas de espera superiores a um ano [nos hospitais públicos]. A questão que coloco é esta: um pedido de barriga de aluguer vai ser prioritário ou não neste contexto?

Mas o que me faz mais confusão na lei portuguesa é que esta é extensiva aos não residentes. Isto não é um argumento xenófobo. Um casal estrangeiro com dinheiro vem a Portugal usufruir desta possibilidade nos centros privados e depois vai-se embora. Como é que se controla o que se passa a partir daí?

Teme que se esteja a abrir a porta a um mercado impossível de controlar?

Já há quem lhe chame turismo reprodutivo, outros chamam-lhe paraíso reprodutivo, outros dizem que é o inferno reprodutivo... Na Europa Ocidental, isto só é permitido na Grécia (onde tem que ser autorizado por um juiz), e, em Inglaterra, exige-se que uma das três pessoas envolvidas seja residente [no país]. Em Portugal não, vale tudo. 

Destaca o exemplo de França, onde as barrigas de aluguer não são permitidas e até já têm sido levantados problemas com as crianças geradas desta forma no estrangeiro.

Quando um casal volta a França, a questão que já se pôs é a de saber-se qual é estatuto legal da criança oriunda de barriga de aluguer. Há quem ache que a mulher em cujo útero a criança se desenvolveu deve constar também do registo de nascimento. Isto implicaria novas regras de paternidade e de filiação em que a criança teria duas mães. Ora, em França isto é proibido. E a questão que se coloca é: o que se faz à criança, fica ilegal?

O que falta então?

Falta pensar a sério nos direitos das crianças e adolescentes e falta pensar em acabar com a doação anónima. Sou a favor da PMA, mas não aceito que esta possa tornar as crianças infelizes. Já viu o que é um adolescente descobrir aos 16 anos que não é filho genético da pessoa de quem acha ser filho genético? As pessoas não podem mentir aos filhos.

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