A gentrificação e as cidades temporárias
A ameaça é a de transitarmos de um centro decrépito e esvaziado para uma zona histórica recuperada, ocupada apenas temporariamente, por quem está de passagem, e incapaz de acolher quem não tem abrigo.
O processo de gentrificação nas principais cidades portuguesas, a reboque da reabilitação urbana e consequente especulação imobiliária, vai fazendo as suas vítimas entre os grupos sociais de menores recursos. A exponencial subida da habitação vai atirando para a periferia, ou para a rua, quem não possui a renda necessária para continuar a residir ou a comercializar numa área ou bairro hipervalorizado. Este fenómeno recente de transformação das cidades, cujo miolo é uma espécie de donut, vazio por dentro, mas recheado por fora, é particularmente visível no Porto, cuja população é hoje inferior a de Vila Nova de Gaia ou à da vila de Sintra.
A ameaça é a de transitarmos de um centro decrépito e esvaziado para uma zona histórica recuperada, ocupada apenas temporariamente, por quem está de passagem, e incapaz de acolher quem não tem abrigo. As instituições que lidam com estes casos têm cada vez mais dificuldades em responder a situações de emergência, na ausência de vagas em albergues, comunidades de inserção ou centros de alojamento social, devido à conversão das hospedarias e pensões em hostels, hotéis ou alojamentos temporários.
Olhando para a gentrificação de cidades como Austin ou Portland, nos EUA, detectam-se semelhanças, dada a substituição de uma população com menos recursos por uma outra mais abastada, e pela destruição patrimonial do edificado e da organização social de bairro. Mas isso deve-se mais a factores de atracção e de fixação de cada uma delas; mais ao alojamento permanente do que ao alojamento temporário. Não é o que se constata por cá.
Isenções fiscais para os proprietários que adiram a rendas acessíveis, de modo a garantir habitação permanente para agregados mais carenciados, ou o Programa de Apoio ao Alojamento Urgente, medidas anunciadas este semana pelo Governo, são boas intenções que deveriam ser levadas à prática sem hesitação. Enquanto é tempo. Se o turismo apresenta soluções para a fisionomia e economia das cidades, a verdade é que também coloca problemas e desafios. Era bom que a estratégia nacional de integração dos sem-abrigo deixasse de ser uma boa intenção sempre adiada e passasse a ser uma política e preocupação tão relevante quanto parece ser a da habitação na recta final da actual legislatura. Sabendo que 63 % dos sem-abrigo se encontram em Lisboa e Porto, era bom que essa preocupação fosse partilhada pelas autarquias.