O pavor da nossa alt-right com a possibilidade de lhes fugir o PSD
O que eles não querem é que o PSD olhe de novo, com uma visão reformista, para os problemas sociais da sociedade portuguesa.
Por que é que a direita mais radical, a versão nacional da alt-right americana, que tem como órgão de expressão o Observador, não se preocupa com o CDS, mas sim com o PSD? Por que razão nunca verdadeiramente discutiu o projecto do CDS, mesmo com o anexo do PP, não se preocupou uma linha com a campanha despesista de Assunção Cristas, que em nada diferiu nas suas propostas do surto de reivindicações despesistas e desenvolvimentistas de praticamente todos os autarcas, sejam da CDU, do PS, do PSD e... do CDS, e pelo contrário avança com armas e bagagens para combater a possibilidade de um recentramento político do PSD?
A nostalgia dos bons velhos tempos de Passos e da troika manifesta-se em dezenas de artigos nostálgicos glorificando as virtudes daquele que é apresentado como o melhor primeiro-ministro de sempre em Portugal. Se outra coisa não mostrasse a deriva do PSD para a direita com os anos de Passos, a partir de 2012, este clamor de emergência com o destino do PSD seria a sua melhor prova. O que os preocupa é o PSD, porque instrumentalmente é o PSD que tem os votos e não o CDS, e é o PSD que pode, como se viu, prosseguir uma política agressiva que corresponda aos seus interesses e visão do mundo.
Como já referi, a nossa alt-right está para o PSD e Passos Coelho como a sua congénere americana está para Trump: não o reconhecem como sendo dos “deles”, mas têm perfeitamente consciência que foi ele que lhes deu o poder que nunca teriam nas urnas. Por isso defendem-no com unhas e dentes, mesmo quando ele hesita e oscila de um dia para o outro. Eles sabem o que é importante, como a nossa alt-right sabe que sem Passos e com um PSD menos controlado ficam reduzidos a um pequeno grupo extremista, ou então tem que se dedicar ao CDS, que é um fraco instrumento, ou tentar fazer um partido “liberal” que, com um sistema político bastante bloqueado como o português, é uma tentativa de muito pouco sucesso previsível. Acresce que a direita tipo do PNR não lhes serve para nada, visto que é o exercício do poder político que lhes interessa e não a ortodoxia política, nem mimetismos das “frentes nacionais” europeias. Como tiveram a sorte grande, agora não lhes basta a terminação.
O governo PSD-PP, com Passos e Portas, deu-lhes um braço armado como nunca tiveram, perante a complacência de muita gente da direita orgânica e da esquerda, do PS ao Bloco de Esquerda. Não querem ficar apenas com o que já têm, embora tenham tido já bastante nestes últimos anos. Começaram a construir uma rede de influência na comunicação social (o projecto do Observador é isso mesmo), nas redes sociais, nos think tanks das universidades e fundações, num establishment intelectual e de influência que conta com poderosos apoios financeiros. Tiveram uma história com algumas ambiguidades, desde a fase de “filhos do Independente”, depois ligados ao surto dos blogues, e em que cultivavam uma aliança natural, geracional, cultural com uma parte da esquerda, com troca mútua de cumprimentos e elogios, uniram-se nos programas do “engraçadismo” e partilharam algumas causas do “politicamente correcto” que agora abominam. Depois passaram para o serious business.
Passaram de ser uma moda para o poder político e comunicacional e de uma trincheira amável, com abundante fishing for compliments, para uma grande agressividade, com ataques ad hominem e anátemas contra todos que se lhes opõem. O ataque pessoal vil que conduzem contra os “mais velhos”, os que “cheiram a bafio”, os que “já passaram de validade”, retoma um dos temas dos anos do ajustamento: o vilipêndio nunca visto contra as vozes mais velhas que podiam falar porque, entre outras coisas, não estavam à espera de ter carreiras, ou porque tinham estatuto e autoridade para falar. A guerra geracional, que encontrou numa fórmula sinistra da JSD, a da “justiça geracional”, destinada a tirar aos pais e avós para dar “aos filhos e aos netos” — na verdade, a outros pais e outros avós —, e que se manifestou em epítetos como o da “peste grisalha”, é instrumental para tentar calar ou desautorizar muitos que falam com a liberdade que eles não têm. Na verdade, conheço muitos velhos, mesmo muito velhos, que eles veneram, alguns com um passado bem pouco recomendável. Não é a idade, são as opiniões que eles atacam em nome de uma juventude que muitos deles nunca tiveram, porque lhes afronta aqueles que sabem mais do que mandar bocas no Twitter e ter uma vaga existência política nas redes sociais.
Há várias peculiaridades portuguesas da nossa alt-right. Não é uma direita nacionalista e isolacionista, perceberam a importância que a Europa e os seus diktats económicos tinham em permitir-lhes uma tentativa de engenharia social que nunca passaria nas urnas se fosse apresentada aos eleitores. Esta foi, aliás, uma função essencial do PSD de Passos Coelho e que os levou a abandonarem as suas reservas ao federalismo e intervencionismo cosmopolita da Europa, para se tornarem europeístas. Não é por acaso que estão contra o nacionalismo catalão, não só pela sua afinidade com o espanholismo de génese falangista, mas também porque os equilíbrios do poder na Europa precisam do PP espanhol, como cá precisam do PSD.
Na verdade, não cultivam a variante do “trumpismo” do “Make America Great Again”, até porque não gostam muito de Portugal, como uma vez Portas admitiu. O país vota demasiadas vezes à esquerda, “vive do Estado”, está contente com a “geringonça”, é preguiçoso, “gosta de viver de dinheiro emprestado”, e não lhes liga muito. Mas essa atitude termina onde terminam as fronteiras da Europa e em cada cidade que tem um contingente de refugiados e/ou de muçulmanos, aí já a identidade cultural “cristã” os mobiliza.
Têm também dificuldade em lidar com as forças tradicionais a que a direita costumava dar valor, as Forças Armadas ou a polícia, porque o 25 de Abril fá-los desconfiar das Forças Armadas, e o sindicalismo policial das polícias. Mas sempre que há um incidente que lhes permita recolocar as coisas numa dualidade que lhes serve — ciganos ou emigrantes versus polícias —, enfileiram de imediato no “justo” combate.
A chantagem que é feita ao PSD de que um recentramento político — uma expressão que uso por facilidade mas que sei ser ambígua — levaria à criação de uma espécie de segundo PS não tem pés nem cabeça. O que eles não querem é que o PSD olhe de novo, com uma visão reformista, para os problemas sociais da sociedade portuguesa, para a enorme pobreza que subsiste, para a dignidade do trabalho, para o controlo dos grupos económicos, para uma política de emigração equilibrada e justa, para uma constante preocupação com a existência de um elevador social que precisa do Estado e de impostos progressivos, que garanta direitos mínimos aos portugueses no plano da educação, habitação e da saúde. Nalguns casos, a melhor maneira de assegurar este caminho é com menos Estado, noutros com mais. Isso, vos garanto, pode ser feito com muito mais eficácia e independência por um PSD reformista do que por um PS preso aos grandes interesses.
Por que é que isto afronta a nossa alt-right? Porque, ao diminuir o enorme fosso que separa a riqueza da pobreza e ao dar poder “aos de baixo”, seja sob a forma de direitos sociais, de educação, de trabalho, de viver uma vida digna, põe em causa o direito que os poderosos acham que têm pelo nascimento ou pela natureza à sua liberdade. Como no título do filme de Fassbinder, trata-se de contestar o “direito do mais forte à liberdade”.
É em parte tudo isto que está em jogo no actual debate no PSD, seja ele feito ou não pelos putativos candidatos. A campanha vai ser muito dura, mas sê-lo-á ainda mais se não houver qualquer debate ideológico e político e apenas um choque de personalidades e grupos dentro do partido.