Fados de Marceneiro por Camané: jóias do passado presente
Sempre cantou Marceneiro mas nunca tinha pensado num disco só com fados dele. Até que um clique lhe iluminou o pensamento e, a partir da obra deste gigante do fado, Camané gravou um disco magnífico, que une o melhor dos dois no retomar de uma obra eterna. Chega hoje às lojas.
O título podia ter sido o de um fado de Marceneiro: Lembro-me de ti. Porque Camané, que nunca deixou de cantar Marceneiro, tem-no sempre na lembrança. Mas acabou por ficar Camané Canta Marceneiro, impresso num celofane a envolver um desenho original de Álvaro Siza. O disco, um CD+ DVD, chega esta sexta-feira às lojas e é, como já foi descrito aqui no Ípsilon por Mário Lopes, “um peso-pesado a homenagear um gigante”.
Mas não era um projecto que estivesse nos seus planos, diz Camané. “Nunca me passou pela cabeça gravar um disco só dele, porque toda a vida cantei Marceneiro. Como todos os fadistas fizeram. A Amália cantava o Estranha Forma de Vida no [Fado] Bailado e a Maldição no Fado Cravo. Até o próprio Marceneiro cantava no Fado Cravo várias letras, em sextilhas: a Viela, a Despedida.” Até que, há um ano, se deu o clique: “Quando pensei num disco novo passou-me pela cabeça esta ideia. Foi quando cantei, no Museu do Fado, vários fados da Amália. Aí lembrei-me que já toda a gente tinha cantado fados da Amália, e até com as letras que ela cantou, mas com o Marceneiro nunca ninguém o tinha feito.”
E assim fez. Reuniu quinze fados, de Cabaré a O pajem, e retomando em letras escolhidas músicas eternas criadas por Alfredo Marceneiro (1891-1982), como as do Fado Bailado, Fado Cravo, Fado Laranjeira ou Marcha do Marceneiro, gravou primeiro um disco em estúdio, em Janeiro-Fevereiro deste ano, e depois, em Março, um DVD a partir de um concerto privado (com uma assistência de cerca de 100 pessoas) no palco da Culturgest. Exactamente os mesmo fados, mas ao vivo, e com novas interpretações. Em ambos, tocaram José Manuel Neto (guitarra portuguesa) e Carlos Manuel Proença (viola), ficando o contrabaixo no CD a cargo de Carlos Bica e no DVD entregue a Paulo Paz. E há, registado em ambos, um dueto tocante de Camané com Carlos do Carmo em A Lucinda Camareira. A produção, direcção musical e arranjos são, como tem sido habitual nos trabalhos de Camané, de José Mário Branco, com supervisão artística de Manuela de Freitas. “No São Luiz, aqui há uns anos atrás, numa pequena homenagem a grandes fadistas, cantei do Marceneiro o Lembro-me de ti. Agora pensei que podia ser esse o título do disco: lembrar-me dele, lembrarmo-nos dele. Mais do que Camané canta Marceneiro.”
Desde sempre imerso no fado, e no seu mundo, Camané ouvia os grandes fadistas ao vivo. “Quando eu era miúdo, teria eu uns 10 ou 11 anos (vou fazer 51), ia aos fados em Cascais [no Arreda] e encontrava o Manuel [de Almeida], o Rodrigo, essa gente toda. Há uma fotografia que já apareceu no Museu do Fado, onde estou eu com a Amália e com o Carlos Conde e o Marceneiro está lá ao fundo. Nessa noite, não fui capaz de falar ao Marceneiro, e mesmo com a Amália pouco falei. Ficava era a olhar para eles imenso tempo. O Marceneiro estava muito velhinho mas era aquele senhor que eu ouvia lá em casa. Depois vi-o umas duas ou três vezes no Bairro Alto, a passar ao fim da tarde.”
Fazia tudo com a voz
De Marceneiro, regista-se o pioneirismo numa série de gestos e hábitos do fado: o cantar de pé, com o público em silêncio, quase às escuras, o “cantar como se rezasse”. “Foi por causa dele que nas casas de fado se começou a cantar com a luz velada”, lembra Camané. “Uma das coisas que recordo de quando era muito novo é que, quando cantava nas casas de fado, como era muito tímido e tinha imenso medo de enfrentar o público, às vezes não me baixavam a luz como deve ser e eu ficava de rastos. Não conseguia cantar bem.”
Há, ainda, a forma de cantar, única. “Era um cantor que musicalmente, tendo uma voz tão pequena, fazia tudo com a voz. Dava-lhe as notas todas, tirava partido não só do registo emocional do que estava a cantar mas também do swing e da musicalidade da palavra.” A par disso, o seu papel como compositor foi decisivo para o futuro do fado. “Não fez muitas músicas, mas fez aquelas que são fundamentais e que são fantásticas”, afirma Camané. Letras, não escrevia nenhuma. Mas escolhia-as com o mais fino dos critérios. “Ele tinha um bom gosto… Havia umas tertúlias, à tarde, onde faziam leituras dos poemas. Eles viviam muito esta linguagem e estas histórias. Quando olhei para isto, pensei que isto nos transporta para uma linguagem e uma vivência do amor e da vida que se calhar hoje em dia é diferente. Mas é muito o que se passa hoje também.”
Amores desencontrados, fatais, desgostos, vidas dilaceradas, tudo isto passa pelos fados de Alfredo Marceneiro, iluminados uma luz eterna, inextinguível. Tome-se, por exemplo, O remorso: “É uma descrição de uma noite clássica de paranóia, que só hoje é que existem psiquiatras e psicólogos que conseguem interpretar bem. É o que acontece quando uma pessoa sente o peso da culpa, do medo, e como isso a atormenta.”
No Bêbado pintor, Camané diz, no disco, os versos antes de os cantar. No fado original, Marceneiro não o fez, mas, em contrapartida, dizia muitas vezes versos acompanhado à guitarra. “Imensas. Era uma prática dele”, diz Camané. “Mesmo na Marcha Marceneiro e noutras versões dos mesmos tradicionais, ele fez muitas vezes essa coisa de dizer.”
O disco começa em Cabaré como um ensaio, ideia de José Mário Branco, que depois cola ao arranque da gravação já em estúdio. “Quando vamos para cima do palco não levamos para lá a nossa vida, vamos contar a vida que está nas letras e nos fados. Uma das coisas que para mim foi importante, porque na altura era inseguro, e ainda sou, foi sair de mim, no palco, para ir para dentro daquilo que estou a fazer. Ter humildade e prazer naquilo que faço, sem estar preocupado se as pessoas gostam, se não gostam.” A forma como termina esse fado, em ‘bem cruel’, também é Marceneiro, diz Camané. “Eu ouvia aquele ‘bem cruel’ vezes sem conta e adorava aquilo. Agora fiz e gostei muito.”
“Há uma série de pormenores no disco em que me deu imenso gozo aproximar-me dele”, diz Camané referindo-se a Marceneiro. Mas não só. “No Fado Bailado [Olhos fatais, no disco] inspirei-me no Manuel de Almeida a cantá-lo. Aquela [canta:] ‘Que sorte que Deus me deu,/ E que sempre hei- de lembrar,/ Embora não seja ateu,/ Julguei encontrar o céu,/ Na expressão do teu olhar!” Isto é Manuel de Almeida, um extraordinário intérprete.”
De tal forma se quis acentuar o propósito do disco, que nem foram feitas novas fotos de Camané para ilustrá-lo. A capa é um desenho estilizado de Álvaro Siza, que a editora mostrou ao fadista quando ele chegava de uma viagem. Gostou muito e já lhe enviou uma mensagem, a agradecer. Não há, na capa, quaisquer letras impressas. O nome do disco vai ser impresso apenas por cima do celofane que o embala. Tirando-o, ficará só o desenho.
E o espírito do disco é este: “Tive de transportar estas músicas e estas letras para a minha forma de cantar. Vou por dentro das letras, por dentro do poema, vou contar a história. Há pormenores que vou buscar ao Marceneiro. A forma como ele diz ‘naquela casa de esquina’ [no fado Senhora do Monte] mostra que é aquela, naquele sítio, e é daquela casa de esquina daquele tempo que eu estou a falar. Esquinas há muitas, tinha de ser aquela.”
Histórias bem contadas
Camané diz que há uns dez anos que termina os seus concertos com o [Fado] Cravo do Marceneiro com um poema do João Ferreira-Rosa, lindíssimo, Triste sorte.” Uma história entre as muitas que Marceneiro inspirou e que Camané agora interpreta do fundo da alma. “Essas histórias são para ser bem contadas, e bem cantadas. E é difícil cantá-las bem quando já foram tão bem cantadas. Claro que tenho cá o Marceneiro, essas coisas todas, mas a ideia foi transportá-las para a minha voz, o mais espontaneamente possível. Nesse sentido foi difícil. Fazer uma coisa minha, de raiz, é mais fácil do que este trabalho. Foi um trabalho de interiorização, de interpretação, esquecendo o peso da pessoa cantada.”
O disco, num trabalho de apuro musical e interpretativo inexcedível, é dedicado por Camané a José Pracana [1946-2016]. Por uma razão lógica. “Porque durante toda a vida foi das pessoas mais importantes na divulgação da importância, indiscutível, que o Marceneiro teve na música portuguesa e no fado. E fazia-o de forma entusiástica.”
E é também de forma entusiástica que Camané fala de Marceneiro e tão bem o canta: “A minha forma de estar no fado sempre foi ir buscar aquela coisa que está no passado e trazê-la para o presente. Para mim, o gosto, a característica, o ambiente musical do fado, nunca são velhos, são antigos. É uma música que é para a frente, para a vida.”