A morte e a vida de Marsha P. Johnson, heroína dos direitos LGBT
The Death and Life of Marsha P. Johnson, de David France, é o documentário sobre uma das maiores heroínas das revoltas de Stonewall, no final dos anos 1960, e muito mais do que isso. Chegou esta sexta-feira ao Netflix.
A activista Victoria Cruz está prestes a reformar-se como conselheira em casos de violação e violência do Anti-Violence Project, uma organização nova-iorquina dedicada a ajudar e a defender os interesses de pessoas LGBTQIA. Antes de "arrumar as botas", porém, quer perceber ao certo o que aconteceu, em 1992, a Marsha P. Johnson, alguém que nunca chegou a conhecer, apesar de terem sido contemporâneas. Johnson, descrita como activista transgénero, drag queen, prostituta, modelo de Andy Warhol, entre outras actividades, foi, ao lado de Sylvia Rivera – que foi amiga de Cruz –, uma das faces mais importantes das revoltas de Stonewall, em 1969, que serviram de pontapé de partida para os direitos civis homossexuais. Mesmo assim, nem sempre têm o devido reconhecimento. Por exemplo, quando em 2015 o alemão Roland Emmerich, o homem responsável por Dia da Independência, lançou um filme homónimo sobre Stonewall, decidiu focá-lo num protagonista branco e gay, quase o oposto das duas activistas.
The Death and Life of Marsha P. Johnson, o documentário de David France que chegou nesta sexta-feira ao Netflix, acompanha Victoria Cruz a andar por Nova Iorque a investigar o caso – e a chamar a Marsha P. Johnson “a Rosa Parks do movimento LGBT”. France, que, como jornalista, acompanhou a crise da SIDA no início dos anos 1980 e em 2012 transformou isso num documentário chamado How to Survive a Plague, conta a história de Marsha P. Johnson, de Sylvia Rivera, que morreu em 2002, e de Victoria Cruz, com imagens antigas e novas e a mostrar a personalidade colorida e divertida de todas elas. Também se foca em Islan Nettles, uma jovem transgénero de 21 anos que foi assassinada em 2013 por um homem que alegou que ela o tinha enganado em relação ao seu género, como tantas e tantas pessoas fazem, uma defesa que ainda hoje é aceite em tribunal. O acompanhamento do julgamento, em 2016, de James Dixon, o assassino, e a sentença relativamente curta que recebeu, bem como os protestos que esta gerou, também são uma parte importante do documentário.
O passado e o presente e a forma como pessoas transgénero são marginalizadas, tanto pela sociedade em geral como por uma parte da comunidade LGBTQIA, que é frequentemente acusada de se cingir ao “G” e esquecer o “T” do acrónimo, é uma luta que fez parte do discurso público de Sylvia Rivera pós-Stonewall. Em vídeos antigos, vemo-la a salientar que muitas das conquistas foram para pessoas de classe média e não para "pessoas da rua" como ela – que nos anos 1990 chegou a ser sem abrigo em Nova Iorque, até ter sido expulsa do sítio onde vivia –, e a levou a distanciar-se do movimento que tinha ajudado a fundar.
A morte de Marsha P. Johnson nunca foi tratada com grande importância por parte das autoridades. Ela apareceu a boiar no rio Hudson em 1992, uma morte que acabou por ser declarada suicídio. Só que toda a gente que a rodeava duvidou dessa teoria, tendo ela feito planos para sair à noite com uma amiga uma das últimas vezes que foi vista e tendo expressado medo de que a máfia nova-iorquina, que controlava os clubes gay como o Stonewall Inn, estivesse no encalço dela. Não era só paranóia, o documentário mostra, já que Randy Wicker, com quem Johnson vivia em Hoboken, Nova Jérsia, e alguém que Victoria Cruz visita no filme, estava envolto numa campanha pública para retirar a máfia do controlo da parte de Christopher Street (onde ficava o Stonewall e em cujo pontão Rivera viveu), da parada pride nova-iorquina. E chegou a haver ameaças.
O filme não responde com certezas às questões sobre o assunto. Nem isso seria assim tão fácil. Toda a gente que tenha estado na polícia de Nova Iorque na altura do homicídio recusa-se a ajudar Victoria e a falar sobre o passado. O documentário dá muito espaço a vozes de pessoas transgénero que falam sobre como casos destes, sejam em 1992, 2013, ou em qualquer outra altura – há infelizmente muitos –, são desvalorizados, ignorados ou esquecidos, com os média a focarem-se na narrativa de “um homem vestido de mulher” e frequentemente os culpados a fugirem à justiça. Este caso é investigado por alguém que não tem formação na área, que quer justiça para Marsha porque mais ninguém quer saber.
Em tempos recentes, tem-se assistido a uma crescente consciência na preocupação em usar pronomes e termos correctos para as diferentes identidades de género fora daquilo que é binário. Mas, na altura de Marsha, era possível que não existisse ainda o termo correcto para a designar. A associação que Marsha e Sylvia começaram em 1970, a STAR, Street Transvestites Action Revolutionaries, para “pessoas da rua”, usava o equivalente ao português “travesti” para se referir a elas, e chegou a ter uma casa para albergar pessoas sem abrigo e fugidas de casa – o papel de madrinha e mentora de pessoas foi algo que Marsha manteve até à morte.
Ainda assim, Marsha é frequentemente descrita como drag queen e pessoa transgénero, mesmo que, num vídeo antigo que aparece no filme, Johnson parecer concordar quando um homem a descreve como alguém fluido, que num dia sai à rua como homem e noutro como mulher. O filme trata o assunto com respeito, e mostra também Victoria, que é ela própria transgénero, a falar com a família de Marsha, a quem pede ajuda para requerir acesso ao relatório oficial da morte dela, sendo que aí há pessoas que se referem a ela como “ele”.
Mesmo que exista cada vez mais atenção às palavras e pronomes correctos que se devem usar para designar alguém, e que existam pessoas transgénero com uma visibilidade que Marsha P. Johnson nunca teve, de Laverne Cox, a actriz de Orange is the New Black, às irmãs Wachowski, que realizaram Matrix e anos depois se assumiraram ambas como transgénero, passando por séries como Transparent, as pessoas transgénero são uma parte da população que continua a ser descriminada. Como tal, o documentário nunca tira conclusões complacentes de que tudo melhorou imensamente. Ainda para mais, o documentário estreia-se no dia a seguir a Jeff Sessions, o actual Procurador-Geral dos Estados Unidos, ter determinado formalmente, num memorando enviado a todos os procuradores federais, que a proibição de discriminação no trabalho em função sexo prevista no Título VII de uma lei federal de 1964 sobre direitos civis se aplica apenas a homens e mulheres cisgénero e não a pessoas transgénero, invertendo a interpretação seguida pela administração Obama.