A verdade e a mentira na ferrovia portuguesa
A transformação de Portugal numa ilha ferroviária prejudica o futuro de toda a economia portuguesa.
Na edição de 26 de Setembro foi publicado neste jornal um texto que, qual milagre das rosas, informa o país que “A bitola europeia na rede ferroviária portuguesa já não é um problema”. Extraordinário milagre que poderá ser vendido aos nossos vizinhos espanhóis com óbvio benefício para o inventor, dado que estes já gastaram 14 mil milhões de euros na reconversão de parte da rede ferroviária espanhola para bitola europeia e se dispõem agora a gastar mais seis mil milhões a furar os Pirenéus para chegar com os seus comboios ao centro da Europa.
Claro que o texto, com ou sem intenção, representa uma ajuda às teses do Governo e da Infra-estruturas de Portugal (IP), bem como aos lobbies da rodovia e da empresa que adquiriu a CP Carga, sectores que, tendo investido muito dinheiro na solução errada, defendem, compreensivelmente, os seus interesses. O único problema é que a transformação de Portugal numa ilha ferroviária prejudica o futuro de toda a economia portuguesa, tornando-a dependente das plataformas logísticas que a Espanha se apresta a construir ao longo da fronteira. Mais grave, o texto foi construído na base da apresentação da IP no recente 13.º Congresso da ADERSIT, comunicação destinada a confundir os portugueses e não a esclarecer construtivamente as opções que se colocam à economia portuguesa no sentido de as mercadorias oriundas das nossas empresas chegarem por ferrovia, com rapidez e a preços competitivos, ao centro da Europa, porque é essa a verdadeira questão. Vejamos, pois, alguns dos sofismas do texto:
Primeiro sofisma: a versão de que a ligação de Madrid a Sevilha em bitola europeia surgiu porque “não havia tempo para projectar e testar um comboio de alta velocidade numa linha de bitola ibérica, importou-se de França um projecto praticamente igual ao TGV”, é uma versão obviamente falsa. Sofisma que esquece todas as outras linhas já construídas em bitola europeia pelos espanhóis ao longo dos últimos 20 anos e as que estão a construir, como é ignorada a recente cimeira franco-espanhola de 4 de Setembro, em que ficou acordado ter operacionais em 2023 as três ligações em bitola europeia que atravessam os Pirenéus entre os dois países, como ignora que o atraso espanhol na ligação de Madrid a Badajoz em bitola europeia se deve ao não cumprimento por Portugal dos acordos da cimeira da Figueira da Foz. Claro que a razão apresentada para justificar a opção da Espanha pela bitola europeia é tão inverosímil que só pode ser justificada pelo desconhecimento das questões em debate.
Segundo sofisma: o texto ignora que um investimento na ferrovia deve ter um horizonte de, no mínimo, 50 anos e que os projectos e a construção de uma nova via consomem cinco a dez anos, ou seja, a ideia de que “essa mudança será feita no tempo devido e em perfeita articulação com a rede espanhola, porque não faria sentido mudar já a bitola até à fronteira, enquanto nuestro hermanos continuarem com a bitola ibérica”, apenas justifica a nossa tradicional incapacidade de planear com tempo os investimentos nacionais no seu conjunto, gastando à pressa milhões de euros em remendos avulsos, frequentemente inúteis, para servir os sectores da sociedade com maior poder político. É o caso do aeroporto de Beja e da chamada modernização da linha de Lisboa ao Porto, cujos trabalhos foram iniciados há 20 anos, que ninguém conhece os custos e quando terminam as obras, com a nota de que os comboios adquiridos para fazer a viagem em duas horas gastam três. Supomos que é isso que os diversos promotores das opções governamentais pretendem, a conveniente ausência de controlo dos custos.
Terceiro sofisma: o texto induz que para ligar Portugal à Europa seria preciso mudar toda a rede nacional para bitola europeia, o que é obviamente falso, já que nem os espanhóis o fizeram nem os subscritores do manifesto publicado acham isso financeiramente realista, até porque os fundos comunitários se destinam apenas às ligações transeuropeias. Tal como os espanhóis fizeram, é perfeitamente possível combinar as duas redes durante alguns anos e é para isso que serve o “milagre tecnológico” proposto no texto publicado, útil para fazer a ligação de pequenos troços, mas que não serve para levar as mercadorias pesadas a longas distâncias, ou os passageiros em alta velocidade, o que é bem conhecido.
Quarto sofisma: no texto do PÚBLICO e da IP diz-se que as “travessas especiais permitem, quando chegar o momento, mudar de bitola através de uma operação relativamente simples”, o que muito convenientemente esquece (a) que os comboios ou passam por uma bitola ou pela outra e não pelas duas ao mesmo tempo, isto é, como a linha estará em pleno funcionamento terão de fechar a via por muitos meses para fazer a mudança, com custos óbvios; (b) a questão não é apenas da bitola mas da interoperabilidade, ou seja, sinalização, electrificação, etc ; (c) além disso, um programa de migração para bitola europeia pode requerer, conforme o caso, travessas para via algaliada ou de 3.º carril, diferentes das travessas bibitola; (d) outra questão é o traçado das velhas linhas com mais de cem anos, que têm muitas curvas e pendentes, que terão de ser corrigidos com um novo traçado de forma a permitir comboios de pelo menos 700 metros, com os custos inerentes e não controláveis, dado a linha estar em pleno funcionamento. Ou seja, pegar em linhas centenárias e tentar adaptá-las a modernas linhas para o transporte competitivo de mercadorias é como transformar uma velha estrada nacional numa moderna auto-estrada. Verdadeiramente, aquilo que se advoga no texto publicado é gastar o dinheiro de uma linha nova e ficar com uma linha velha e obsoleta, como aconteceu na linha do Norte.
Quinto sofisma: ao defender as opções governamentais esquece-se o seguinte: (a) que as autoridades espanholas já avisaram publicamente que logo que todas as novas linhas para França através dos Pirenéus estejam prontas, daqui a dois ou três anos, forçarão os 30.000 camiões que atravessam diariamente os Pirenéus a pagar uma taxa suficientemente elevada para que deixem de o fazer; (b) o texto refere que apenas 6% de comboios internacionais transportam as nossas mercadorias, que foi a forma encontrada e um pouco grotesca de desvalorizar o transporte ferroviário, ignorando que os comboios utilizam energia eléctrica que no próximo futuro será a única energia aceitável na Europa para o transporte terrestre, razão porque Bruxelas decidiu financiar a construção de novas linhas, financiamento que Portugal foi o único país a não utilizar desperdiçando 85% do custo a fundo perdido às mãos de pessoas que têm destes temas de longo prazo a visão da avestruz.
Os subscritores do manifesto têm, como único objectivo, o esclarecimento público das opções que se abrem a Portugal num tema de enorme importância para a economia portuguesa e estão naturalmente disponíveis para em qualquer data, hora e lugar debater todas estas questões, com rigor, verdade e transparência. Ou seja, esperamos que o debate pedido pelo Governo seja aberto e fundamentado e permita chegar a um programa de acção no horizonte do financiamento comunitário 2021-2027 — já que não é possível recuperar o tempo e os fundos perdidos — e não se limite a opiniões superficiais como as que agora foram publicadas. Subscritores do manifesto “Portugal – Uma ilha ferroviária na União Europeia”