A sida olhos nos olhos, como agora
Silverlake Life foi ontem. Olhem bem para isto. Um casal fala para a câmara e conta como é morrer com sida no início da década de 90. Pode ter sido um momento de “TV realidade”. Ou foi um grito? Passa no Queer Porto 2017.
Quando o filme se estreou no festival de Sundance em 1993, mais de 22 mil pessoas nos EUA viviam com o vírus da imunodeficiência humana (VIH) e cerca de 228 mil já tinham morrido com sida – homens homossexuais, na esmagadora maioria. “Vivíamos uma emergência e a sociedade não estava interessada”, recorda o realizador americano Peter Friedman, hoje com 58 anos. “O filme foi um grito de revolta da comunidade gay, a pensar no grande público. Pedíamos que entendessem, que vissem a tragédia e nos levassem a sério.”
As relações entre homossexuais “não eram reconhecidas como válidas e equivalentes à das outras pessoas”, sublinha Friedman. Por isso, Silverlake Life: The View from Here foi também um manifesto sobre o amor. “Se um dos membros de um casal gay adoecia, o outro não era autorizado a vê-lo no hospital, porque não era reconhecido como familiar. Houve situações terríveis. Pensei que dar ênfase à história de amor neste filme ajudaria a combater a ideia de que as relações homossexuais não eram verdadeiras.”
Obra marcante do “cinema seropositivo”, ou do “documentário confessional”, é um dos destaques da terceira edição do festival Queer Porto, este ano focado em representações autobiográficas. Passa a 7 de Outubro, às 19h00, no Teatro Rivoli, com a presença de Peter Friedman. O realizador vem também apresentar uma outra obra que assinou, a curta Fighting in Southwest Louisiana: Gay Life in Rural America, de 1991.
Ainda agora carregado da comoção original – mesmo se a sida, no Ocidente, já não mata, em massa, da maneira degradante que o filme mostra, num definhar rápido, esquelético, assustador –, Silverlake Life parece apontar para a linguagem actual do “realismo” televisivo e do directo nas redes sociais da internet.
Ao telefone a partir de Paris, onde vive há vários anos, Peter Friedman admite ao Ípsilon não ter certezas quanto ao diálogo entre Silvelake Life e a estética audiovisual dos nossos dias. “A inventividade destes dois criadores pode ter sido influente, mas acho que não esse era o objectivo deles.”
Os dois criadores a que se refere são Tom Joslin (1946-1990) e Mark Massi (1946-1991), o casal auto-retratado no filme. Viveram mais de duas décadas juntos e por volta de 1989 descobriram ambos que tinham sida. Tom Joslin, cineasta independente e professor de cinema na Hampshire College, decidiu gravar em vídeo um diário do que intuía serem os últimos meses de vida do casal. É ele o autor moral de Silverlake Life, materializado com a ajuda do companheiro. Friedman entrou quando Tom lhe pediu que ajudasse a fazer a montagem e, caso morresse entretanto, que fosse creditado como co-realizador, o que veio a acontecer.
Peter Friedman vivia em Marselha, mas mantinha contacto com Tom, de quem tinha sido aluno por volta de 1976. “Não estive na origem do filme, mas depois da morte de Tom tomei muitas decisões, porque não havia guião e a montagem estava toda por fazer”, recorda. “O objectivo inicial de Tom era o de retratar o bairro em que vivia, daí o título incluir a palavra Silverlake. É um bairro perto de Hollywood, em Los Angeles. Foi sempre habitado por estrelas do cinema e hoje tem muita população gay e mexicana. Ele e o companheiro seriam personagens desse filme. Mas depois adoeceram e o projecto transformou-se num retrato da vida do casal. De certa forma, a ideia inicial era menos política, mais artística, o que não é inteiramente diferente.”
Pela mão de Friedman, Silverlake Life haveria de se tornar outra coisa. O co-autor hesita em classificá-lo como documentário, porque o público “tende a associar esta palavra a uma certa objectividade e o filme não pretende ter um olhar objectivo”. “Se tivesse que classificar, diria que é diário-vídeo, na primeira pessoa, um olhar por dentro.”
O Los Angeles Times escreveu em 1993 que a longa de Joslin e Friedman “mostra a intimidade desde as entranhas”, mas “foge do exibicionismo gratuito”. O crítico David Ehrenstein, autor do artigo, estava convencido do pioneirismo do filme e acrescentou que, “embora a crise da sida esteja reflectida, com resultados diversos, em filmes, programas de televisão, peças, coreografias, pinturas e até sinfonias, é possível dizer que nunca tinha sido mostrada com tamanha proximidade e intensidade”.
O ponto de vista manteve-se mais ou menos este ao longo dos anos, como uma narrativa natural e um retrato real, o que sai reforçado pela linguagem que emprega e pelo contexto histórico em que surgiu, com a câmara de vídeo massificada e a criação de narrativas ao alcance de qualquer um.
Por ter sido filmado sem tripé, com a imagem a divagar e os sujeitos a falarem directamente para a câmara, criando a sensação de que o espectador está lá com eles, o filme “pede meças à estética e ao vernáculo discursivo dos filmes caseiros da era do vídeo”, escreveu o académico Roger Hallas em Reframing Bodies: AIDS, Bearing Witness, and the Queer Moving Image (2009). Representa, ao mesmo tempo, uma “perversão” dos registos familiares, em fotografia e vídeo, geralmente usados para documentar rituais de passagem, como nascimentos, aniversários ou casamentos. A “etnografia doméstica” de Silverlake Life, diz Roger Hallas, é sobre a morte, um rito que (já) ninguém regista.
No mesmo tom, ainda em 1993, Gregg Bordowitz criou Fast Trip, Long Drop, documentário de ficção igualmente na primeira pessoa e sobre a sida. Outros exemplos são citados, sendo um deles La Pudeur ou L’Impudeur, de Hervé Guibert (1992).
Os média não conheciam ainda, por sistema, os discursos individuais de câmara apontada, apresentados como genuínos ou naturais. No “confessionário” do reality show, no vídeo em directo no Facebook, na celebridade do YouTube e do Instagram. Mas a representação, em Silverlake Life, também tem momentos de simulacro. E o “realismo” na TV não aparece apenas em 1999, com o Big Brother da produtora Endemol; terá tido origem logo na Candid Camera americana, de 1948, reproduzida em Portugal por volta de 1979 com os “Apanhados” de Joaquim Letria na RTP.
Peter Friedman tem dúvidas. Quer sobre o pioneirismo de Silvelake Life como “documentário confessional”, quer sobre a integração da obra numa genealogia da estética da TV-realidade. Para tanto, falta que tivesse sido esse o sentido investido, defende o realizador.
“Falar em pioneirismo implica que fosse esse o objectivo dos autores e não acho que tenha sido”, começa por dizer. “Tom e Mark eram pessoas criativas e abertas à novidade, não porque quisessem apenas ser os primeiros, mas porque tinham genuína curiosidade sobre o novo. Eram artistas, sabiam perfeitamente o que era estar perante uma câmara. Mas é difícil estabelecer um diálogo entre os dias de hoje e aquilo que aconteceu há mais de 20 anos. Não tenho certezas, penso que é uma coincidência. Há uma cena em que ele está no carro muito zangado, a falar directamente para a câmara. Filmou a cena duas vezes. Não gostou da primeira versão e gravou uma segunda. Estava realmente zangado, isso é verdade, mas ao mesmo tempo estava ali como realizador. Tenho um problema com a ideia de reality TV e da linguagem da internet. Era outra época.”
Silverlake Life foi filmado ao longo de cerca de dois anos com uma câmara de vídeo portátil cujo modelo Peter Friedman já não recorda. O formato utilizado foi o de cassetes Super-VHS, uma invenção japonesa de 1987. Pelo menos numa primeira fase, Tom Joslin catalogou todas as gravações. Mais de 40 horas. Peter Friedman passou 15 meses a editá-las e depois transferiu o filme para película. Teve pela primeira vez acesso às cassetes cinco meses depois de Tom morrer, altura em que viajou de Marselha para Los Angeles.
O filme conta uma história. Como Tom e Mark se conheceram, como se relacionam, que quotidiano têm depois de descobrirem que são seropositivos, com as idas ao médico, as terapias alternativas que experimentam, as rotinas domésticas e as zangas. A família de Tom é também personagem, com pai, mãe, irmão e cunhada juntos num Natal.
O início inclui imagens do documentário Blackstar: Autobiography of a Close Friend, que Tom Joslim realizou em 1976 e onde fala da identidade homossexual – obra que também será exibida no Queer Porto (8 de Outubro, às 17h00, no Rivoli).
O tempo parece caminhar tão depressa quanto a doença e as imagens tornam-se cada vez mais assustadoras. Tom surge deprimido, talvez rendido à fatalidade. Mark é retratado como personagem mais luminosa.
A única morte que se vê “em directo” é a de Tom, e vê-se de maneira arrepiante, com o corpo nu em cima de uma cama. Mark surge no fim, meses depois, a partilhar o que sente desde que o companheiro partiu. Mas o desaparecimento de Mark é apenas uma dedução.
O mesmo se diga do reconhecimento pelo Estado da relação entre eles – das relações homossexuais –, aflorada como sugestão.
“Há um momento em que mostro um documento oficial onde se lê ‘não casados’. Eles tinham estado juntos durante 22 anos, achei que mostrar aquele documento era uma mensagem poderosa”, recorda o realizador. “Não estava a pensar na defesa do casamento, mas sem dúvida nenhuma estava a pensar na necessidade de um reconhecimento das relações homossexuais pelo Estado.”
Visto hoje, Silverlake Life é sobretudo um “documento histórico que retrata o que foi viver com sida numa determinada época”, considera Peter Friedman. Um documento que também relembra o desaparecimento na esfera pública de imagens chocantes de doentes com sida, o que parece ter sido operado a partir de 1996, quando surgiram drogas eficazes para tratamento da infecção por VIH. “Não sei que importância têm estas imagens hoje. Quem vê, ainda se sente tocado, ignoro se o filme ainda carrega a mensagem que tinha em 1993. Só os espectadores sabem dizer.”