O grande herói dos pescadores poveiros nasceu há 200 anos
Museu da Póvoa de Varzim assinala o bicentenário do Cego do Maio com uma nova exposição e a reedição de um livro infantil.
Diz-se daquele homem grande, robusto, que, quando as vagas lhe faziam frente, gritava: “Éh! mar! Chega para lá”. Haverá muito de mito nas palavras postas na boca de José Rodrigues Maio mas, 200 anos depois do nascimento deste poveiro, ninguém duvida da sua heroicidade, que levaria o rei Luís I a designá-lo Cavaleiro da Ordem da Torre e Espada pelos mais de 80 salvamentos efectuados ao longo de uma vida levada diante desse mesmo mar que sustentava, então, a maior comunidade piscatória do país, mas reclamava, amiúde, umas quantas almas em troca.
José Rodrigues Maio, o Cego do Maio, olha, ainda hoje, feito estátua de bronze num altivo pedestal, o horizonte da enseada a partir da qual, durante séculos, os poveiros, com a sua miríade de lanchas do alto e catraias da costa, construíram uma imagem de intrépidos pescadores. Nascido a 8 de Outubro de 1817, o seu bicentenário será celebrado no próximo sábado, dia 7, com a inauguração de uma exposição no Museu Municipal da Póvoa de Varzim, entre outras iniciativas que contrastam com o esquecimento a que foi votado aquando do primeiro centenário, omissão notada por Baptista no seu livrinho Cego do Maio, Poveiro n.º 1, de 1956.
Filho de um casal de pescadores, José Rodrigues Maio nasceu na zona sul da Póvoa de Varzim, na Rua dos Ferreiros. Viveu boa parte da sua vida numa casa dos avós paternos, em frente ao mar, já na Poça da Barca, território que se estendia pelo concelho de Vila do Conde e que os mareantes poveiros vinham ocupando, numa migração que se agudizaria com a pressão do turismo balnear sobre os espaços públicos e privados da antiga Póboa fundada por foral de D Dinis em 1308. Dali, recordava António Santos Graça, no livro A Epopeia dos Humildes (Para a História Trágico Marítima dos Poveiros), via as perigosas penedias Mobelhe e Extremundes, “para onde a forte corrente da barra arrastava os desgraçados náufragos” e as suas frágeis embarcações.
O cego do Maio - que nunca foi na verdade cego, mas teria, num olho, uma belida, razão suficiente para que, entre a classe, como hoje ainda acontece, o apodo acabasse por vingar - ganhou, ao longo da vida, várias medalhas, pelos serviços prestados aos seus conterrâneos. Num artigo para o Jornal do Pescador de Outubro de 1945, o jornalista e escritor poveiro Vasques Calafate explica que a primeira delas teria sido conseguida pelo salvamento da tripulação da catraia Santo Amaro, onde viajavam o arrais João Ribeiro Pontes, conhecido como o Tio “Perna”, quatro filhos deste e um outro pescador.
A ânsia de salvar
Depois de semanas à deriva no mar, a catraia surgiu em frente à enseada de Caxinas, a sul da Póvoa mas o mar não estava para lhes facilitar a vida e dois homens, pai e um dos filhos, caem borda fora. “Neste entretanto, um barco arremetia da praia pelo mar adentro, às remadas de quatro pescadores poveiros, sob comando de um homem que, de machada em punho, alto erguida, incitava com ameaças a que andassem depressa e não tivessem medo”, escrevia, dezenas de anos depois, Vasques Calafate, explicando à audiência nacional da publicação criada pelo Organismo Central das Casas dos Pescadores que o Cego do Maio não era de fazer mal a uma mosca e que a machada, note-se, serviria para cortar alguma rede que se prendessem ao leme.
“Contudo, quem o visse fuzilar cóleras, na ânsia de salvar os náufragos, julgá-lo-ia capaz de um crime, nesses momentos, perante um acto de covardia ou de qualquer fraqueza”, acrescentava o publicista. No mar, o velho Perna desaparecia no fundo, sem forças e o filho, vendo-se a perder o par, seguia pelo mesmo fim quando “ouviu uma voz trovejar: 'Se te largas (desanimas), mato-te!' Era o Cego do Maio a crescer para ele de machada em punho”, arma que nem por isso amedrontava os vagalhões, que atraiçoavam os intentos do pescador.
Consta que, nisto, se terá voltado para terra, e olhando para a Igreja da Lapa, prometeu ao Senhor d'Agonia ir com o rapaz pedir de porta em porta, para um sermão e missa cantada no dia da sua festa. “Deus - costumava afirmar - não mata um homem que quer salvar outro”, diz-nos o jornalista que viria a ficar conhecido pela defesa dos pescadores poveiros e das obras no seu porto, onde tantos morriam. E o certo é que o Cego do Maio e João Pontes regressaram a terra, este último vivo, ao contrário do pai, cujo corpo, dias depois, apareceria bastante a sul, na praia de Mindelo, Vila do Conde.
O episódio valeu a primeira das várias medalhas recebidas pelo Cego do Maio ao longo dos seus 67 anos de vida. Depois da Torre e Espada, em Dezembro de 1881, o Rei D. Luís quis ainda atribuir-lhe uma medalha de ouro por “mérito, filantropia e generosidade”. Assim, em Agosto de 1882, durante uma visita da família Real ao Porto, o poveiro desloca-se ao Palácio dos Carrancas (actual Museu Nacional Soares dos Reis) e, em troca do galardão, diz-se que entregou ao monarca umas conchas (entre eles os minúsculos e muito apreciados beijinhos) do mar da Póvoa. Uma prenda para os “cachopos”, segundo alguns autores, ou, segundo outros, para a raínha D.ª Maria Pia, que uns anos depois, aquando da enorme tragégia de 1892, que matou 105 pescadores, haveria de decretar a criação do Instituto de Socorros a Náufragos.
Patrão do salva-vidas
Apesar de todo o seu historial de salvamentos, só em 1881 é que o Cego do Maio seria nomeado patrão do salva-vidas da Póvoa, estatuto merecido que, segundo Baptista Lima, alcançou graças à influência do seu amigo e futuro presidente da câmara, Pereira Azurar. Fiel a esta amizade, José Rodrigues Maio viu-se envolvido numa disputa com um adversário do autarca, a quem terá atirado uma tigela de papas quando este se irritou por não ter o seu voto. “Duas horas passadas uma mulher veio avisá-lo que a autoridade vinha a caminho com cabos para o prender. O herói assustou-se e fugiu para a Poça da Barca. De noite, ia dormir para o largo dentro do barco, pois os cabos cercavam-lhe a casa”, escreveu o etnólogo Santos Graça, com base no testemunho de um dos filhos, Francisco Maio, que adianta como o episódio terá afectado o pai. “Assustou-se, ‘caiu-lhe o sangue na arca’”, e nunca mais teve saúde”, explicou ao autor de O Poveiro.
Outra versão muda os restantes protagonistas e o local da cena (que teria acontecido numa assembleia na igreja da Lapa), mas mantém as consequências. E adianta que o Cego do Maio chegou a ser pronunciado para ir a julgamento a 5 de Dezembro de 1884. “Porém, 22 dias antes, Deus antecipou-se, em 13 de Novembro, dando-lhe à alma o prémio das suas virtudes. Os seus últimos dias, sabe-se que os passou doente, acamado. E Santos graça, recorda, na sua A Epopeia dos Humildes, que no início daquele mês de Novembro ele ainda saiu à rua, quando ouviu a comoção de mais uma naufrágio. Na enseada, o mestre António da Mata fizera-se ao mar para salvar, com uma tripulação terrenha, inexperiente, os náufragos do batel Madre Deus, mas acabaria por morrer, e com ele outros sete homens. Regressado ao leito, consta que, até fechar os olhos, delivara, gritando, “eu vou salvá-los! Eu vou salvá-los”.
José Rodrigues Maio teve muitos nomes, entre eles Lobo e Leão da Fabita, topónimo da praia onde morava. Mas no seu funeral, diz-nos Baptista Lima, Pereira Azurar cunhou-lhe o cognome que melhor se ajusta à sua biografia: O Anjo da Salvação. Uma dúzia de anos após o seu desaparecimento, um grupo de poveiros radicado no Brasil, atiçado por uma sugestão num artigo do correspondente no Rio de Janeiro do Jornal O Comércio da Póvoa, cria uma comissão para angariar fundos para a construção de uma estátua ao maior dos heróis locais. Durante três anos, dos dois lados do Atlântico, e com o Clube Naval Povoense encarregue de gerir o processo, mobilizam-se esforços, organizam-se festas e, alcançada a quantia de 1200 reis, é assinado o contrato com o escultor portuense Romão Júnior, cujo trabalho foi validado pelo poveiro e homem de letras Rocha Peixoto, pelo escultor Teixeira Lopes e pelo pintor Marques D’Oliveira.
A estátua, um busto a meio corpo colocado sobre um enorme pedestal em granito, foi inaugurada no Verão desse ano num local diferente daquele onde está hoje, e o dinheiro angariado chegou não apenas para o empreendimento, como permitiu ao Clube Naval povoense, em cuja direcção estava santos Graça, comprar à família, ”pobre”, por 60 reis, as medalhas do Cego do Maio. Peças que, em 1937, o clube haveria de incorporar no Museu de etnografia e História que o seu antigo dirigente e etnólogo fundara nesse ano, e que agora podem ser vistas na exposição com que o museu celebra o bicentenário deste herói de corpo inteiro.