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Federalismo democrático helvético e democracia participativa: uma convergência feliz

O federalismo suíço é exemplar, como experiência de integração de diferenças.

Vivi na Suíça (Eurico Figueiredo), 12 anos, como país de exílio. Deixei Genebra em 1976. Em 1987, regressei à Suíça. Como já tinha feito antes.

Com o propósito de fazer a viagem de comboio Zurique-Genebra, fui de avião até Zurique. Para me deslumbrar com a grandiosa descida para o lago Léman. Ver as magnificas vinhas do Cantão de Vaud, em socalcos, património mundial como o nosso Douro. Chegado a Zurique sem bilhete de comboio, precipitei-me para a gare.

Nessa altura, fumava, episodicamente, cigarrilhas. Esquecido do meu passado de vivência suíça, cigarrilha acendida deitei o fósforo para o chão... Às tantas, vejo vários suíços a olhar para o fósforo... Não me dei por achado: empunhei o fósforo como um trofeu, e coloquei-o numa caixa do lixo... perante o sorriso cúmplice dos suíços!

A Suíça, aliás, é o país mais competitivo do mundo, 2.º (ex-aequo com a Austrália) nos Indicies de Desenvolvimento Humano, muito centrados na qualidade dos serviços — referência da ONU —, e 4.º nos Indicies de Felicidade (já foi o primeiro), estando, também, no top-10 dos países com maior PIB per capita do mundo.

A Confederação Helvética é um pequeno país alpino da Europa Central (41.245 km2, cerca de metade de Portugal), com à volta de oito milhões e 500 mil habitantes, cuja referência confederal tem que ver com o passado não atual. Sendo, de facto, a mais velha democracia europeia, e a mais velha federação democrática da europa, associando 26 cantões, com poderes estatais, cada cantão tendo a sua própria constituição. Tem quatro línguas oficiais (alemão, francês, italiano e romanche), duas religiões cristãs maioritárias (católicos e protestantes), várias culturas regionais: o federalismo suíço é exemplar, como experiência de integração de diferenças!

Não é possível que este país de sucesso não tenha beneficiado com a associação do federalismo democrático parlamentar e a democracia participativa — a ponto de a democracia suíça ser chamada de democracia semidirecta! Democracia participativa que, numa perspetiva fractal, coexiste a todos os níveis do Estado helvético: comunal, cantonal e federal. Esta aprofundou-se a cada revisão constitucional. Tendo, obrigatoriamente, de serem referendadas: prova de que a democracia participativa assenta em um unânime apoio popular.

Os dois principais instrumentos da democracia participativa são a iniciativa popular e os referendos. As iniciativas populares coexistem a todos os níveis, federal, cantonal e comunal. As federais permitem alterar totalmente ou parcialmente a constituição.

As cantonais são as mais populares. Visam modificar ou criar uma nova lei. Têm, também, o condão de estimular os partidos! Há várias, com diversas questões, todos os anos: os partidos, num excelente texto escrito, dão a indicação de voto e dizem as razões.

São passiveis de contra-projetos: o Parlamento, e o Conselho Federal, podem apresentar projetos alternativos. Quando se contestam decisões do Parlamento podem lançar-se referendos. Acaso o Parlamento proponha alterações à Constituição, os referendos, como referimos, são obrigatórios.

Os referendos também podem existir a nível cantonal ou comunal, como também já aludimos. Deverão, para serem permitidos, recolher as assinaturas exigidas. Contrariamente aos nossos referendos, não têm que ser sujeitos à aprovação das assembleias municipais (os concelhios) ou Assembleia da República (os nacionais). O que é um absurdo da legislação portuguesa, que lida mal com a democracia!

O poder legislativo é exercido pela Assembleia Federal, constituída por duas câmaras: o Conselho Nacional, com 200 deputados que representam, proporcionalmente, os eleitores; e o Conselho dos Estados, com 46 representantes dos cantões (dois) e meios cantões (um), geralmente cantões que foram divididos. A nova legislação deve obter a aprovação nas duas câmaras.

Os membros do Conselho Nacional são eleitos com mandato de quatro anos. Os membros do Conselho dos Estados são eleitos segundo as constituições cantonais. O poder executivo é exercido pelo conselho federal de sete membros, à qual está subordinada a administração. Nele estão representados, geralmente, proporcionalmente, os partidos representados na Assembleia Federal, conseguindo a originalidade de funcionar, quase sempre, por consenso!...

A nosso ver, a nível da UE e dos Estados que a constituem, o federalismo e a democracia participativa são os melhores antídotos à atual crise de democracia. Que com a corrupção são as pragas das democracias modernas, que mais sentimentos de revolta provocam.

O soberanismo de direita e de esquerda, muitas vezes fascizante, é o nosso principal inimigo político que urge combater: os Estados europeus, mesmo o mais rico e populoso, a Alemanha, serão irrelevantes a prazo.

Será interessante conhecermos a origem da importância da democracia direta na Suíça. Porque esta alerta-nos para a compreensão das características culturais permanentes desta federação: a procura de consensos.

A necessidade de uma democracia participativa nasceu no pós-guerra civil de Sonderbund, “o conflito mais educado da história”, que, em 1847, opôs, grosso-modo, liberais-radicais, citadinos, protestantes, que ganharam; e conservadores católicos, rurais, que perderam. Nas negociações para a paz, os conservadores derrotados exigiram a introdução do referendo.

Muitos dos poderes dos cantões mantiveram-se na constituição de 1848, que constituiu o Estado Federal, mesmo contra a opinião dos radicais mais centralistas, tendência para o consenso que caracteriza (e se reforçou) na democracia suíça. O programa liberal-radical transparece, contudo, nesta constituição: separação de poderes, a representação popular proporcional e a representação cantonal.

Bizarro país, em que o serviço militar obrigatório vai, para os homens, até aos 34 anos, em alguns até aos 50 (as senhoras só podem ser voluntárias), e onde os soldados levam as espingardas de assalto para casa... sem excessos, no uso indevido das armas (três por 100 mil mortes na Suíça, comparado com os 10,3 nos EUA). O que garantiu a não ocupação da Suíça durante o nazismo, que calculava ter um milhão de mortes para a ocuparem… 

Esta federação parece-nos, contudo, modelar para a União Europeia. Os Estados têm uma fortíssima tradição na Europa, como o têm os cantões-Estado na suíça. Urge respeitar esta tradição. Sendo aconselhável uma instituição, como o Conselho dos Estados, em que cada Estado esteja representado em perfeita igualdade. A experiência do Conselho dos Estados (Senado) é de respeitar.

A absurda ideia da eleição direta de um futuro presidente federal é completamente insensata: o modelo suíço da eleição anual do presidente da confederação helvética pela Assembleia Federal é um excelente aviso. A coexistência de diferenças linguísticas, religiosas e culturais devem ser fonte de inspiração para nós!

Finalmente, a importância de um orçamento federal substancial (32,5% do PIB em 2015), como na Suíça, ajudaria a corrigir as assimetrias de desenvolvimento reforçado pela introdução do euro. O orçamento da União Europeia não chega a 1% do PIB.

A contribuição da democracia participativa deverá ser avaliada, dada a dimensão populacional da Europa. Que se desenvolva, sobretudo, no âmbito dos Estados nacionais. De facto, os referendos cantonais são, também, na Suíça, bastante mais animados... Os referendos permitirão, contudo, dar unidade ao espaço europeu. Daí a sua importância, sendo de analisar as indicações.

Dever-se-á manter o bom senso suíço, na forma de criar futuros Estados, pelo duplo referendo: nacional e federal. Ambos deverão ser maioritários! Esta é a solução mais adequada para as nações que querem ser Estados, seja a Catalunha... seja a Córsega! Professores universitários

Este texto integra uma série de artigos sobre federalismo que o PÚBLICO publica mensalmente. O próximo sairá em Outubro

Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico

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