Silicon Valley rendeu-se à gastronomia e aos vinhos de Portugal

A fabulosa história de Jéssica e David, o casal de cozinheiros que apostou na cozinha tradicional e em menos de um ano chegou à estrela Michelin, em San José, Califórnia.

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Davie e Jéssica, os proprietários do Adega Daniel Garcia/Content-Magazine

São muitas as formas possíveis para contar uma história. Esta é a Jéssica Carreira, uma jovem luso-descendente que com o companheiro, David Costa, triunfa na Califórnia com a cozinha portuguesa. Mas que bem podia ter outras abordagens: O caso de Jéssica e David é também uma contagiante história de amor; que pode ser olhado como exemplo de como quando as coisas são bem feitas o sucesso acaba por ser uma consequência quase natural; ou ainda de como a nossa gastronomia precisa de se mostrar para ser reconhecida e apreciada como uma das mais ricas e criativas do planeta.

Olhemos, então, para a fabulosa história de Jéssica e David, cujo sonho americano se concretizou com a abertura do restaurante Adega, em Dezembro de 2015. Na cidade de San José, capital de Silicon Valley e a terceira mais populosa da Califórnia. Com a aposta num conceito orgulhosamente nacional com base na cozinha tradicional e vinhos portugueses, que num ápice conquistou os americanos. 

Em poucos meses a crítica e as publicações especializadas teciam rasgados elogios ao restaurante, a lista de reservas e marcações não parava de crescer, e em menos de um ano o casal de jovens cozinheiros — ambos com menos de 30 anos — era convocado para ir a Nova Iorque à cerimónia de anúncio das estrelas Michelin. Em 17 de Novembro do ano passado subiam ao palco na capital americana, e regressavam a San José com a estrela que por aquelas paragens nunca antes tinham tido.

A cidade e a região rejubilaram, os jovens chefs são apontados como exemplo de sucesso e criatividade tal como os protagonistas dos gigantes tecnológicos como Google, Facebook, Apple ou Netflix e o restaurante Adega é a referência gastronómica. Para se ter uma ideia, numa luxuosa brochura que destaca as potencialidades da cidade é dedicada uma página ao restaurante e ao casal de cozinheiros para se dizer que “40% por cento dos residentes de San José são de origem estrangeira”. Isto a par do co-fundador da Apple, Steve Wozniak, para destacar que “San José é líder nacional na criação de patentes”. 

A prova de que San José adoptou o Adega como símbolo da sua gastronomia moderna e cosmopolita, foi agora dada com a festa que as autoridades locais organizaram para comemorar a atribuição da estrela Michelin. A “San Jose’s Michelin All-Star Experience”, uma semana gastronómica patrocinada pelo turismo da região e a administração da cidade e para a qual convocaram apenas chefs de cozinha portuguesa. Todos com a estrela do influente guia gastronómico. 

Pedro Lemos, do restaurante homónimo, no Porto, Alexandre Silva, do Loco, em Lisboa, e George Mendes, que também com o receituário português há anos triunfa em Nova Iorque com o seu Aldea, juntaram-se a David Costa e Jéssica Carreira. A gastronomia portuguesa ganhou todo o protagonismo e brilhou com forte intensidade. 

Houve mesmo emoção até às lágrimas, como a Fugas testemunhou (ver texto ao lado), e os mais genuínos sabores portugueses entusiasmaram não só as personalidades locais mas também os críticos e bloguers de Los Angeles e Nova Iorque que o turismo da região também convidou para se juntarem à festa. 

Convém lembrar que a par dos sabores da tradição portuguesa, em receitas criativas e apresentação moderna, outra das características distintiva do Adega está na sua gloriosa garrafeira de vinhos portugueses, com mais de 400 referências, cuja qualidade (e preços) não param de surpreender os americanos. 

Outra das marcas de portugalidade chega à mesa com os empratamentos sempre feitos em elegantes e criativas louças da Vista Alegre e da fábrica Bordalo Pinheiro, que também causa forte impressão na clientela.

Chefs e cozinha portuguesa

E é com um menu que inclui coisas como caldo verde, bolinhos de bacalhau, tripas à moda do Porto, carne de porco à alentejana ou pudim abade de Priscos – assim mesmo, escrito em português e complementado com uma breve descrição em inglês — que no dia-a-dia David e Jéssica surpreendem os clientes. “A ideia passa precisamente por oferecer uma experiência diferente. Que agrade, claro!, e que os possa surpreender”, esclarece David, que gosta até de fazer uma associação ao mundo do espectáculo para definir a forma como encaram as refeições no Adega.

“Afinal, é em Silicon Valley que estão as mentes mais abertas e curiosas do mundo, sempre à procura de coisas novas e genuínas, e é isso que procuramos dar-lhes”, complementa Jéssica, enquanto David reforça a ideia de proporcionar o lado mais autêntico dos sabores da nossa gastronomia tradicional, procurando transformá-la sem perder nada da sua essência. 

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Daniel Garcia/Content-Magazine

Para os jantares festivos, David Costa cozinhou uma sopa de couve-flor com amêndoa torrada (em shot), bolinho de bacalhau, que serviu com abalone e caviar, uma surpreendente (até para nós) orelha de porco em duas texturas – crocante e gelatinosa -, e um apaladado borrego com guisado de grão e especiarias. 

De grande delicadeza, e igualmente genial, o carabineiro com tangerina e algas levado à mesa por Alexandre Silva, enquanto George Mendes preparou atum com sumo e vegetais e Pedro Lemos deu vida a uma caldeirada com os peixes e bivalves que por lá encontrou. 

Nos vinhos, triunfou o branco de 1995 da Quinta do Poço do Lobo, das Caves S. João, a par do Alvarinho Soalheiro Primeiras Vinhas 2016, o Esporão Private Selection 2014, enquanto nos tintos desfilaram o Charme Niepoort tinto 2014, Chryseia 2013 e Quinta da Leda 2009. 

Nas sobremesas, Jéssica deslumbrou com créme brulée de chá matcha, bolo de sésamo e gelado de soja, e um segundo momento com surpreendente rolo de azeite e azeitonas a que dá o nome de “azeite português”. Perfeito! O Tawny 20 anos da Graham´s e um madeira Malvasia 10 anos, deixaram os americanos literalmente a salivar. 

“That’s amazing” tornou-se rapidamente naquelas mesas numa exclamação constante, mas surpreendentes eram mesmo as manifestações de emoção e satisfação que fizeram com que o jantar se tornasse rapidamente numa grande festa. Aos chefs eram dispensadas estrondosas ovações, logo seguidas de fila para selfies e autógrafos.  Num tempo em que por cá tanto se fala nas dificuldades em obter o reconhecimento dos inspectores do guia Michelin com base na cozinha portuguesa, também por aqui se demonstra que a América é, de facto, um mundo novo. Onde a gastronomia portuguesa é apreciada e reconhecida como uma das mais ricas e criativas do planeta.

Emoção e lágrimas

A par da técnica e da criatividade, é também a componente emocional que define as grandes experiências gastronómicas. E emoção foi coisa que não faltou na sala do Adega. A cada garfada ou trago de vinho, com efusivas manifestações de agrado e surpresa, mas também numa explosão incontida quando foi anunciada a vinda à sala da jovem chef Jéssica. Reconhecimento ao mérito, sucesso e criatividade do trabalho que desenvolve, mas também uma clara manifestação de orgulho e carinho para com alguém que vêem como filha da comunidade. E o sucesso parece tocar mesmo fundo nos americanos. 

Quando Jéssica foi anunciada, a sala rebentou num vigoroso e prolongado aplauso, com toda a gente de pé e muitas lágrimas de emoção à mistura. A chef teve que dar dois passos atrás, engolir em seco várias vezes e secar a lágrima, antes de conseguir apresentar os pratos. Mesmo assim com voz embargada. 

Foi bonito e revelador, mas também algo que deve ter sido muito reconfortante para os pais da cozinheira, Carlos e Fernanda Carreira, que são, no fundo, os grandes “culpados” de tudo. Carlos rumou à Califórnia, como estudante e com o objectivo de graduação em Stanford, mas a vida tem muitas voltas e a envolvência de família (no Alentejo) com o vinho fê-lo vislumbrar um bom negócio com a distribuição de vinhos portugueses. Primeiro apenas com vinhos do Porto, que depressa evoluiu para os outros e para uma distribuidora com sede em Los Angeles e mais de 30 vendedores em todo o país. 

Uma proposta irrecusável fê-lo vender a empresa em 2010. Guardou uma boa colecção de vinhos e tentou-se pela restauração, tomando o velho restaurante Sousa na zona da Little Portugal de San José, que em tempos teve uma forte comunidade de açorianos. Entretanto,  Jéssica, que agora tem 25 anos, decide-se pela cozinha e opta pela formação do Condon Bleu College de Los Angeles, que conclui como a melhor aluna.

Puxa-a a memória dos cozinhados das avós e quer estagiar em Portugal. Em Lisboa, no Alma de Henrique Sá Pessoa, antes de rumar ao DOP de Rui Paula, no Porto, e regressar à capital para o Assinatura, de Henrique Mouro. É aqui que coincide com David Costa e a paixão os junta, ainda sem sonho americano. 

Mesmo jovem, David é já sub-chef e vinha do Eleven, para onde Jéssica seguiria pouco depois e onde viria a assumir a chefia da pastelaria. “O estágio inicial de três meses durou três anos”, diz agora, orgulhoso, Carlos Carreira, contando a sua reacção quando a filha lhe disse que queria com David montar um restaurante de cozinha portuguesa nos EUA. Em Los Angeles, S. Francisco, Palo Alto, os lugares mais cosmopolitas da Califórnia, imaginou, mas sem pensar nunca no velho Sousa, que era exactamente o que a filha tinha em mente. 

“Estamos em Silicon Valley, onde há gente de todo o mundo que anda à procura de coisas novas e genuínas”, disse Jéssica que, pelos vistos, estava carregada de razão.

A Fugas viajou a convite da Visit San José

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