Moullinex e a música de dança como afirmação política
Ao terceiro álbum, Luís Clara Gomes, Moullinex, resgata da memória as cores garridas e o legado sociopolítico da música de dança, simbolizada pelo ‘disco’, house ou funk, para criar uma obra, Hypersex, que é uma celebração à volta da cultura dançante. Apresentação no MAAT a 4 de Outubro.
A história da música "disco", popularizada na década de 1970, é uma das mais curiosas da cultura popular. Mal nasceu e disse-se logo que tinha os dias contados. Que era música efémera, plastificada ou alienante. E, no entanto, décadas depois, é difícil pensar noutro género com tanto impacto na transformação da própria música e na sociedade, ao nível dos estilos de vida, comportamentos e da superação de preconceitos.
Começou como música de minorias, originada por gente anónima (gays e negros essencialmente) que dançava em espaços nocturnos obscuros, criando a sua utopia, numa altura em que a cultura do "não" prevalecia. Ao contrário a cultura "disco" proclama com euforia "sim". Ignorava-se Deus, o Estado, o trabalho e a família, mas não se adoptava uma atitude agressiva.
Criavam-se espaços de coabitação, numa demonstração de que todos os estilos de vida eram possíveis, mesmo os não tolerados pelo pensamento dominante e as transformações operadas a partir dessa atitude disseminaram-se, numa manifestação de que a música de dança, e a cultura a ela associada, era também campo de experimentação social. Depois surgiu a música house e inúmeras correntes dançantes, algumas delas conectadas com importantes dinâmicas políticas, culturais e sociais. É esse legado que Luís Clara Gomes, ou seja Moullinex, celebra no terceiro álbum, Hypersex, que estará nas lojas a 6 de Outubro.
Dois dias antes, a 4, será apresentado no MAAT em Lisboa, por ocasião do 1º aniversário daquele espaço expositivo, num acontecimento que congregará concerto, sessões DJ, uma exposição e lançamento de uma fanzine com ilustradores e designers (Bráulio Amado, Gonçalo Duarte, Sonja ou Oscar Rana), numa declaração de amor à cultura da música de dança.
O seu primeiro álbum, Flora (2012), foi gravado ao longo do tempo em vários espaços, enquanto o segundo, Elsewhere (2015), nasceu de um retiro criativo em estúdio durante uma semana. Como se desenrolou o processo criativo em torno de Hypersex?
Não há uma estratégia igual para todos os discos. O anterior foi feito num tempo preciso, composto exaustivamente durante uma semana em que me isolei de tudo à volta. Estava com dificuldades em relação à rotina de fazer música. Quis cortar com ela. Talvez por isso resultou um disco mais contido. Gravei-o numa altura em que me sentia distante da música de dança. Não havia nada que me estimulasse. Com este foi diferente. De certa forma é como se nos últimos tempos tivesse redescoberto a música de dança, em parte porque há mais influências do jazz, soul ou R&B, e isso fez com que a paixão voltasse naturalmente. A feitura do disco foi muito orgânica. Fazia música durante a semana, ao fim-de-semana passava-a nas sessões como DJ e ia adaptando-a e introduzindo alterações a partir daí. Foi assim.
O anterior álbum foi feito num contexto solitário, neste rodeou-se de muita gente. Se o outro era virado para o interior, este é exteriorizado, pelo processo e pela música.
O outro havia sido muito solitário e autocrítico, quase como se fosse exercício de terapia, onde quis experimentar uma forma diferente de trabalhar. Este queria que fosse mais aberto, que envolvesse mais pessoas. Talvez por isso cheguei ao final mais satisfeito. É mais honesto também porque foi feito da forma que gosto de trabalhar que é compor enquanto misturo, masterizo e escrevo letras, tudo ao mesmo tempo. Dois dias antes de estar finalizado ainda estava a alterar coisas cruciais e isso é um privilégio quando se é o produtor. Por outro lado envolver pessoas cujo trabalho admiro no processo do disco também acaba por ser uma mais-valia, no sentido em que são agentes criativos que me ajudam a alcançar novos patamares.
Em diferentes projectos tem-se assumido como figura aglutinadora, estimulando outros agentes a associarem-se para uma série de acontecimentos, como a recriação da música do filme Star Wars. A forma como fala deste álbum tem qualquer coisa disso: um trabalho feito de forma colaborativa.
No outro álbum o processo foi pessoal. O estúdio foi o meu universo. A minha referência eram discos das décadas de 60 e 70 – de Stevie Wonder aos Parliament, dos Beach Boys aos Beatles – que não poderiam ter sido criados sem um processo de estúdio. Este álbum sendo virado para a pista de dança e para o mundo, constituiu ao mesmo tempo resposta a questões que envolvem a música de dança, em particular o facto de ainda haver muita gente que olha para a cultura da música de dança como algo apenas escapista no seu sentido mais negativista.
A música de dança não é apenas algo mundano, é também experiência social, cultura, forma de pensar, podendo estar conectada com movimentos sociais e políticos, como aliás aconteceu ao longo da história. É isso?
É muitas vezes uma forma de criar novas realidades, como reacção a uma realidade que pode ser vivida como hostil. É uma atitude política. É a afirmação de uma vontade. A música de dança pode ser laboratório de novos estilos de vida. É algo que pode estar ao serviço da mudança. E isso vê-se tanto hoje nos arredores de Lisboa, com alguma música que aí é feita, como na Nova Iorque dos anos 70 com o "disco" e depois com o house, ou também com o acid-house em Inglaterra nos anos 80 e 90. Claro que depois todas estas realidades podem ser apropriadas e massificadas e a música de dança pode ser vista como um mero acessório de lifestyle, mas existe muito mais para além disso e é importante dizê-lo. Não empunho nenhuma bandeira, mas tendo consciência que existiram uma série de gerações que abriram caminho para eu poder fazer esta música, parece-me importante ter presente essa memória e tanto afirmar como celebrar esta música hoje a partir dessa dimensão tão política quanto festiva.
Vive-se um momento em que as pessoas parecem confusas, mais interessadas em detectar diferenças, acabando por competir entre si, em vez de sinalizarem semelhanças e hipóteses de partilha. Existiram alturas em que a música de dança pareceu conseguiu esbater diferenças (políticas, de classe, género ou raciais) através de comunidades que contribuíram para alterar formas de pensar e estruturas sociais. É essa história que motiva este disco?
Foi a conjuntura actual conflituosa que me levou a este disco desta forma. Quando comecei a trabalhar nele a crise dos refugiados estava no seu auge e senti que este disco era ao mesmo tempo a minha oportunidade de responder a várias questões internas tendo ao mesmo tempo uma posição política sobre aquilo que faço, e dessa forma respondendo também à questão se a música de dança pode ter um papel político activo. E eu acho que sim. O aspecto colaborativo tem também a ver com isso. Tocando, falando e interagindo com todas as pessoas com quem fui trabalhando ao longo dos últimos anos permitiu-me encontrar muitos pontos em comum com todas elas. E isso é importante: percebermos que não estamos sós nas nossas aspirações e anseios. De alguma forma as pessoas com quem trabalhas vão-se tornando na tua família. A verdade é que como individuo e cidadão fui crescendo ao lado dessas pessoas e é com elas que fui aprendendo e tento ser uma melhor pessoa.
No anterior álbum cantava, mas neste resolveu contar com uma série de vozes convidadas (Shermar, Marta Ren, Best Youth ou Georgia Anne Muldrown). Teve mais uma vez a ver com essa vontade de criar uma comunidade à volta?
Só consegues afirmar que estás a fazer um disco colaborativo quando tiras o ‘eu’ da equação. Quando comecei a falar deste disco ao [designer] Bráulio Amado quis envolvê-lo ainda mais, desafiando-o a escolher músicas e a fazer ilustrações para as mesmas. Da mesma forma, com a minha banda, esse processo aconteceu, porque tocámos muito antes, ao vivo, estes temas. Ou seja, quis tirar-me o mais possível da equação. Queria criar mais hipóteses de ter estímulos exteriores a mim. No anterior disco cantava as músicas porque gosto de as apresentar ao vivo e, na lógica dos concertos, é difícil teres não sei quantos convidados a cantá-las. Para este disco resolvi essa equação convidando um performer – o Ghetthoven – que incarnará diferentes personagens em palco. Assumimos que as músicas não estão a ser cantadas ao vivo mas existirá uma performance que é algo que também me agrada na memória da música de dança – essa hipótese de incarnar personagens e assumir que se pode ser imensas coisas na vida e no palco.
O acontecimento que concebeu para a festa de lançamento do disco, a 4 de Outubro, e que coincidirá com o 1º aniversário do MAAT em Lisboa, acaba por conter todas essas dimensões, sendo ao mesmo tempo celebração, mas também manifestação do papel da música de dança.
O concerto será na noite de 4 de Outubro às 23h mas as sessões DJ irão durar até às 8 da manhã de dia 5, tudo isto dentro do MAAT. Depois, no dia 5, estará patente uma exposição com várias instalações vídeo e será também revelada uma fanzine para a qual foram convidados diferentes ilustradores que pegaram nesta temática da música de dança enquanto possibilidade de criar um lugar novo para onde confluem ideias e pessoas. Desde o primeiro momento que havia essa ideia de criar algo mais do que o disco, como se fosse possível vê-lo a partir de diversos ângulos – com ilustrações, vídeos e peças artísticas que têm autonomia. Foi isso que fizemos com os artistas João Pedro Vale e o Nuno Alexandre Ferreira e também com o [realizador] Bruno Ferreira, em que convidámos pessoas para um casting em Nova Iorque para um vídeo, e o próprio processo acabou por resultar num videoclipe. Queria fazer um concerto num espaço expositivo, para promover toda esta reflexão à volta da música de dança, mas não queria que a dimensão festiva se perdesse, realçando ao mesmo tempo o aspecto colaborativo do disco. Esta acção no MAAT pode permitir um interessante cruzamento de públicos, embora não tenha a pretensão de o meu disco, por si só, ser uma ferramenta de mudança. Mas sinto-me bem por encetar esta acção, mostrando que a música de dança tem uma bagagem cultural que deve ser celebrada em conjunto. É como se me fosse permitido partilhar um espaço, como a minha casa, abrindo-a a toda a gente, fazendo dela o mais possível um espaço plural e colorido.
Mudando de assunto. Existe ainda muita gente que para o legitimar fala de si como alguém que foi construindo uma dinâmica carreira fora de portas, embora em Portugal não seja tão conhecido. Como é que vive com essa ideia?
Olho para isso com tranquilidade. Eu, o Xinobi ou os Throes + The Shine, para só falar da Discotexas, continuamos a tocar muito lá fora. Onde tenho mais público é no México, depois nos Estados Unidos e Inglaterra e só depois Portugal. Mas é também uma questão de escala. Não somos muitos, e os espaços onde poderia tocar também não, o que me permite colocar-me numa posição de superação. A música que faço, apesar de tudo, pertence a um nicho, aqui ou lá fora. O meu objectivo não é necessariamente tocar para mais pessoas, mas fazer coisas que sejam desafiantes para mim. A recriação da música do Star Wars, por exemplo, foi das coisas mais ambiciosas onde me envolvi e resumiu-se a um só concerto. Não foi além disso e nem quero que seja de outra forma. Ou seja, há coisas que valem a pena pela aposta pessoal, pela superação e pelo envolvimento de todos. Saber que estou rodeado de pessoas que gostam dos mesmos desafios é estimulante. E depois viver neste tempo onde o digital te permite comunicar rapidamente para todo o mundo é muito libertador.
Na Discotecas, a editora da qual é um dos responsáveis, continua-se a apostar no formato álbum o que vai sendo raro, em particular na música de dança. O que os motiva?
Gosto de olhar para os álbuns como uma fotografia em movimento do que se esteve a fazer e a pensar num determinado período de tempo. Comecei a fazer música de dança por causa de álbuns dos LCD Soundsystem, Hot Chip ou Daft Punk e por isso continua a ser um formato que faz sentido. Por outro lado sempre olhamos para a Discotexas como a nossa horta sustentável. É um trampolim para os nossos projectos e de pessoas que admiramos. A lógica industrial nunca nos interessou. Este ano até fizemos muitas edições porque completámos dez anos de vida mas nem sempre tem de ser assim. A editora acaba por ser importante até porque permite distanciar-me do estúdio em algumas alturas e ocupar-me de outras coisas. Talvez seja também uma coisa geracional: ser artista hoje é também ser editor, designer, produtor, cantor e especialista em marketing, e tudo isto ao mesmo tempo.
Há uns anos ouviu-o dizer que não era muito de dançar. E hoje como é a sua relação com o gesto social de dançar?
Nunca gostei de dançar. Comecei a ser DJ para ter alguma coisa para fazer na festas. Existem pessoas que se alimentam do contacto social, viradas para o exterior, mas eu sou mais para o interior, gosto mais de estar com pequenos grupos de pessoas. O meu lado social é desenvolvido nas sessões como DJ onde, mais do que num concerto, existe uma comunicação muito interactiva. E aí sim, danço e tento fazer com que outros dancem. Para se ser capaz de olhar para os lados bons da vida, sendo-se positivo, é preciso também saber estar só e estar pronto para as outras dimensões da existência. Mas a música tem realmente essa capacidade de ligar pessoas e isso é uma força poderosa.