Os novos fados antigos de Aldina

O novo disco de Aldina Duarte é composto na sua maioria por fados tradicionais pouco visitados nas últimas décadas. E traz consigo um fado inédito, com 40 anos, que é um dos factos mais comoventes da sua vida artística.

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É impossível não detectar, logo à primeira audição, uma das conquistas que Aldina Duarte reclama para o seu sexto álbum. Passa-se os ouvidos por Casa do Esquecimento e é óbvia a liberdade do verso com que a fadista vai desfiando cada poema. É uma qualidade que atribui ao casamento perfeito entre o registo emocional das letras e dos fados tradicionais escolhidos, resultado de uma intuição que diz não saber como nasceu mas que lhe confere uma segurança à prova de bala para “abrir” as suas interpretações. Mas essa qualidade deve-se também à troca de parelha que agora a acompanha. Se antes vinha contando com a excelência de José Manuel Neto (guitarra portuguesa) e Carlos Manuel Proença (viola de fado), agora faz-se acompanhar por outra dupla de excepção – Paulo Parreira e Rogério Ferreira. A diferença é que estes dois músicos são os mesmos com quem canta diariamente no Sr. Vinho há 12 anos e com os quais criou uma cumplicidade impossível de replicar em qualquer outra situação.

De Rogério, a sua âncora para esse conforto rítmico que lhe permite tornar o verso mais maleável e planar com ele sobre o tema na certeza de não se estatelar nem se perder pelo meio – sem com isso redundar num exercício de estilo estéril –, Aldina recolheu ainda aquele que considera um dos momentos mais comoventes da sua vida no fado. Tinha já decidido escrever maioritariamente para um conjunto de fados tradicionais pouco cantados ou gravados nos últimos 30 ou 40 anos, quando foi surpreendida pela oferta de um tema inédito, composto por José Ferreira (pai de Rogério, também ele viola de fado). “Tendo dedicado a maior parte do meu caminho no fado a esta matéria que é o fado tradicional e que me encanta sobremaneira”, diz, “aparecer-me um fado tradicional inédito, com 40 anos, posso dizer que nada até hoje na minha vida artística me comoveu mais. Parecia que estava guardado para mim desde a altura em que se fizeram os grandes tradicionais que canto.”

Há muito uma aturada estudiosa do fado, Aldina sempre teve também uma particular queda para a escrita – tem escrito para os seus discos, assim como para Camané, António Zambujo ou Joana Amendoeira –, mas nos últimos discos preferiu entregar-se nas mãos dos seus letristas de confiança. Agora, o registo muito pessoal do novo álbum levou-a a assumir a maioria dos textos cantados, e tal é a desenvoltura, a elegância e a forma perfeita como estes poemas poisam sobre a música que, de Camané a Maria da Fé, muitos lhe têm perguntado se alguns deles não existiriam já. Não existiam, saíram (quase) todos da mão de Aldina no Jardim da Estrela, seguindo o guião que estabelecera. E são encantadores no doseamento daquilo que revelam e daquilo que escondem.

Gravado em bloco durante três tardes, voz e músicos registados num mesmo take, a sugestão de produção de Pedro Gonçalves implicou rodar todo este reportório em trio durante um ano nos ensaios de som de cada concerto, para que o estúdio se limitasse a ser testemunha de uma dinâmica preciosa construída a três. E se o habitual primor interpretativo de Aldina está no seu habitual nível elevadíssimo, em que cada palavra sempre parece lavrada pela verdade, aqui, neste disco onde a ficção tem pouca margem de manobra, Quando se Ama Loucamente despede-se – antes da leitura de João Barrento – com uma soberba canção afadistada em que Manel Cruz se desvia com discrição dos habituais paradeiros harmónicos e melódicos.

A falhar nalguma coisa, Quando se Ama Loucamente falha apenas no tempo que nos oferece. Mas a verdade é que para matar a paixão, há que pôr-lhe um fim.

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