Vergílio Correia: o arqueólogo que quis pôr a ciência à frente da política e da guerra
Também historiador de arte e antropólogo, foi um homem para quem a liberdade e o acesso de todos à cultura e ao conhecimento eram valores absolutos. Na Torre do Tombo, em Lisboa, fala-se hoje do percurso deste descobridor de Conímbriga, autor de fotografias que surpreendem.
No manifesto de carga fazia-se referência apenas a peles, couros, nozes de galha e minérios mas, na realidade, em 448 dos caixotes transportados pelo Cheruskia, um vapor alemão que ancorara no Tejo para fugir à Primeira Guerra Mundial e que acabou apreendido pelo governo português em Fevereiro de 1916, havia um importante espólio arqueológico resultante de uma década de escavações na Mesopotâmia.
O Cheruskia chegara a Lisboa vindo de Bassorá, actual Iraque, e as peças — fragmentos cerâmicos, cilindros e selos, estelas, tijolos esmaltados, vasos e pequenas esculturas, troços de colunas, anéis e braceletes em bronze — tinham sido reunidos por equipas dirigidas pelo respeitado arqueólogo alemão Walter Andrae em Assur, a primeira capital do Império Assírio, nascido há mais de 3500 anos num território importantíssimo para a história da civilização. Peças que tinham por destino os museus estatais de Berlim.
Vera Mariz, investigadora do Instituto de História de Arte (ARTIS) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa que vai estar esta quinta-feira na Torre do Tombo entre os oradores da jornada de conferências Vergílio Correia (1888-1944): Um percurso ímpar na história, na cultura e nas artes (das 10h às 17h30), estudou os contornos da chegada deste navio a Portugal — uma entre as mais de 70 embarcações alemãs apresadas pelo governo graças a um decreto que lhe permitia, por motivos económicos, requisitar quaisquer meios de transporte marítimos que se encontrassem nos portos nacionais — e a polémica que a sua carga arqueológica gerou nas páginas dos jornais e fora delas, envolvendo políticos, diplomatas e académicos.
Vergílio Correia, um dos arqueólogos que descobriu a cidade romana de Conímbriga (Condeixa-a-Nova) e que nela escavou de forma sistemática durante 15 anos, assume um papel determinante neste “caso absolutamente fascinante” dos caixotes assírios do navio que haveria de ser rebaptizado como Leixões e que acabou afundado por um submarino alemão em 1918, a 200 milhas da costa americana, diz Vera Mariz.
Chamado a avaliar o conteúdo de alguns dos caixotes, e opondo-se ferozmente aos que queriam abri-los para, depois, o tratarem como mercadoria inimiga e, eventualmente, o venderem, o arqueólogo que não fizera ainda 30 anos, defende que estes bens deveriam ser devolvidos à Alemanha “por cessão, troca ou compra, sem serem previamente desencaixotados ou remexidos”.
Além da inexistência em Portugal de quem pudesse estudar e avaliar este espólio, Vergílio Correia alertava ainda, acrescenta a investigadora, “para a necessidade de respeitar todo e qualquer trabalho científico, mesmo que este tivesse sido realizado por ‘brutos e pretensiosos boches’. Desentendimentos políticos ou conflitos bélicos não deveriam, em nenhum tipo de circunstância, comprometer a materialidade e imaterialidade da arte ou o conhecimento científico da humanidade. Tratavam-se, na opinião de Vergílio Correia, de questões absolutamente inalienáveis.”
Já no pós-guerra, e depois de muitos avanços e recuos numa polémica a que o académico chamou “a tragicomédia dos caixotes”, os artefactos assírios foram devolvidos e Berlim, em troca, fez chegar a Portugal colecções arqueológicas e etnográficas de proveniências diversas, sendo as mais importantes do Egipto, da Grécia e da Melanésia (hoje à guarda da Universidade do Porto).
Trabalho de vanguarda
É por causa da sua postura em todo este processo, elogiada pelo próprio Walter Andrae, o arqueólogo-chefe de Assur, que há documentação referente ao Cheruskia na exposição que desde Junho e até 8 de Outubro a Torre do Tombo (TT), em Lisboa, dedica a este professor de Coimbra que deixou mais de 40 livros publicados e dezenas de artigos em jornais e revistas de que foi fundador, director ou simplesmente colaborador, como a Águia, a Terra Portuguesa, Arte e Arqueologia e o Diário de Coimbra.
Vergílio Correia: Um olhar fotográfico mostra esquissos, desenhos, diários de campo, cartas, livros, artigos e um núcleo de cerca de 30 fotografias feitas por este republicano convicto, reputado antropólogo e historiador de arte, entre 1929 e 1934, núcleo em que se sobressai a sua preocupação em documentar o trabalho de camponeses, operários e artesãos.
O acervo exposto permite voltar a olhar para o seu percurso singular e resulta da combinação de dois arquivos relativos ao académico de Coimbra: o que pertence ao Centro de Estudos Vergílio Correia, em Condeixa-a-Nova, em que se destacam quase mil negativos em vidro que até há bem pouco tempo estavam nas mãos da família e que estão hoje a ser estudados por Miguel Pessoa e Lino Rodrigo; e o que a TT comprou na primeira metade da década de 2000, que foi recentemente disponibilizado ao público e cujos fundos a investigadora Vera Mariz e o historiador de arte Vítor Serrão começaram a explorar há pouco mais de um ano.
“O trabalho do Vergílio Correia é absolutamente de vanguarda por causa da perspectiva interdisciplinar que propõe numa altura em que o formalismo imperava na academia”, diz Serrão, a quem interessa, em particular, a sua actividade enquanto historiador de arte que nunca abdica de lançar um “olhar antropológico” sobre tudo. “Ele tem uma agilidade mental extraordinária e uma cultura vastíssima que lhe permite fazer análises comparativas que são muito enriquecedoras. O objecto pelo objecto não lhe diz nada, assim como não lhe diz nada uma historiografia que não dialoga com a obra de arte.”
Vergílio dos Cacos
Nascido na Régua em 1888, Vergílio Correia forma-se em Direito por pressão familiar e chega a trabalhar um ano como notário, profissão que abandona de imediato para consagrar a vida ao conhecimento, contribuindo para a formação de gerações enquanto professor na Universidade de Coimbra e dedicando-se à escrita em áreas menosprezadas por muitos (como as artes decorativas e as artes populares), e a inventários e museus (foi conservador de Arte Antiga e director do Machado de Castro).
Intelectual sem actividade política, mas acérrimo defensor dos valores republicanos da liberdade e do acesso à educação e à cultura, maçon e agnóstico, chegou a estar preso no Aljube oito dias quando, no começo da década de 1930, foi acusado de apoiar o comandante Aragão e Melo, opositor à ditadura, e de dar abrigo a um refugiado político, explica Vítor Serrão. “À data da prisão ele já era director do Machado de Castro e um académico respeitadíssimo cá e lá fora, embora em Portugal enfrentasse sempre alguma resistência por parte de figuras como [os historiadores] José de Figueiredo e Reynaldo dos Santos. Um homem afável e encantador como o Vergílio Correia — dizem os que o conheceram que, apesar disso, quem queria vê-lo à vontade e conversador tinha de o tirar do gabinete —, com a cabeça aberta, fazia muita confusão a um meio académico cristalizado, pouco sensível à novidade.”
Sem deixar de escrever sobre o tear ou o carro de bois, na história de arte deixou obra em temáticas diversas, da tumulária gótica à talha barroca, passando pela escultura e a pintura do Renascimento, a acrescentar aos dois volumes do Inventário Artístico de Portugal a que esteve ligado e em que a fotografia desempenha um papel primordial (escreve o grosso do tomo dedicado ao Distrito de Coimbra, mas é o seu colaborador directo, António Nogueira Gonçalves, quem escreve o da Cidade de Coimbra, precisa Rita Mariz).
Editados pela Academia Nacional de Belas Artes, no âmbito de um programa de levantamento de todo o território que começa a ser desenhado em 1938, os volumes do Inventário têm em Vergílio Correia um dos primeiros autores. O seu trabalho, diz esta investigadora do Artis, é “extraordinário” — é “o resultado de campanhas concretizadas com notável dedicação por um homem de uma cultura superior que dominava, de modo invulgar, a História da Arte, a Arqueologia ou a Etnografia, sem esquecer a Fotografia...” E para o provar basta constatar, acrescenta, como em apenas um trimestre de 1939, Correia e o irmão, seu colaborador, fazem 900 registos de monumentos e obras de interesse arqueológico, artístico ou histórico, percorrendo 1500 quilómetros, “uma distância admirável tendo em conta as condições da época e a natureza do trabalho”.
É Vergílio Correia, aliás, quem “dita as regras do jogo no que toca ao Inventário”, um projecto que estivera em cima da mesa no século XIX e na Primeira República, mas que só o Estado Novo vem concretizar, embora tenha ficado aquém do inicialmente previsto (parte do país ficou por cobrir e os volumes têm uma qualidade desigual), acrescenta Vítor Serrão. “Mas o trabalho do Vergílio Correia é também aqui exemplar”, diz este professor universitário que se cruzou pela primeira vez com a sua obra quando, aos 18 anos, recebeu do pai, o também historiador Joaquim Veríssimo Serrão, o livro Vasco Fernandes: Mestre do Retábulo de Lamego (1924): “Este livro do Vergílio Correia foi uma revelação para mim. O estilo comparativo, a importância da prova documental a ligar o artista a quem encomenda… É com este livro que o Grão Vasco passa do mito, da lenda, à realidade — de repente é um homem com mulher e filhos, rendas, contratos em seu nome e contas para pagar.”
Quando morreu, aos 55 anos, na sequência de uma queda do eléctrico, em Coimbra, tinha o ano todo planeado, incluindo uma viagem a Itália, diz Vítor Serrão. Estava empenhadíssimo em dar continuidade ao Inventário Artístico de Portugal e, muito provavelmente, ainda não desistira de escrever uma grande monografia sobre Conímbriga. “A arqueologia era muito importante para ele e é uma das facetas mais públicas do seu trabalho. Não é por acaso que ele tem o papel que tem no caso Cheruskia.” Não é por acaso que o escritor Miguel Torga, no seu Diário, lhe chama “Vergílio dos Cacos”.