Hugh Hefner: o libertário, o feminista, o misógino, o playboy supremo

Em 1953 decidiu combater o conservadorismo e a sexualidade reprimida do seu país com uma nova revista. Chamou-lhe Playboy e transformou-se num ícone do século XXI. Controverso e contraditório, Hugh Hefner viveu até ao fim de acordo com o seu mito, idealizado para um mundo que já não existe.

Hugh Hefner acompanhado das famosas "Coelhinhas", controversa imagem de marca da <i>Playboy</i>
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Hugh Hefner acompanhado das famosas "Coelhinhas", controversa imagem de marca da Playboy LUSA/Glenn Pinkerton/LVNB / HANDOUT
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Velas e flores no Passeio da Fama Reuters/KYLE GRILLOT
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A capa com Marilyn Monroe

Cinco dólares. Foi esse o preço que transformou Hugh Hefner numa das figuras do século XX americano (e mundial, convenhamos), no criador de uma marca, a Playboy, que muitos consideram ter contribuído para a revolução sexual dos anos 1960, e alguém que, fazendo uso do corpo feminino, inventou para si um estilo de vida invejado por milhões (de homens) que desejavam para si aquela vida de glamour, com cachimbo a pender dos lábios, roupão de seda a cobrir o corpo e jovens mulheres à sua volta na sua mansão em Chicago, primeiro, e em Los Angeles, depois.

Cinco dólares. Foi esse o valor do aumento de salário que a Esquire lhe recusou em 1953, quando a revista em que trabalhava como copywriter mudou a sua redacção para Nova Iorque. Despeitado, Hugh Hefner ficou em Chicago. Então casado com a antiga colega de escola Millie Williams, este filho de um casal metodista que o educou segundo os preceitos mais puritanos da sua religião decidiu pôr no papel a sua visão contracultural para uma América que considerava reprimida sexualmente. Ainda na escola secundária, escrevera sobre a incapacidade de os americanos falarem abertamente sobre sexualidade. Na Universidade do Illinois, onde se matriculou depois de uma passagem pelo Exército no decorrer da II Guerra Mundial, e onde se licenciaria em Psicologia, continuara a abordar a questão nos cartoons que assinava para o jornal universitário.

Quando a Esquire lhe recusou o aumento de cinco dólares, reuniu a essas convicções o fascínio pelo glamour e sofisticação de Frank Sinatra, uma das figuras em que se modelara, e o interesse pelo mundo da cultura e do showbiz. Tudo isso e, claro, nudez feminina — a sua ideia de libertação sexual revelava um olhar masculino conservador, apesar da luta contra a proibição do aborto ou da defesa do acesso das mulheres a métodos contraceptivos, algo interdito às solteiras americanas quando nasceu a revista, e apesar de reafirmar repetidamente que nada havia no seu império de objectificação feminina, muito pelo contrário, diria. Ora, tal postura não se defende com facilidade perante a imagem de marca que eram as “coelhinhas” Playboy, com suas orelhas e respectivo rabo felpudo cosido nos fatos justíssimos.

O homem nascido em Chicago e que morreu esta quarta-feira na sua mansão em Los Angeles, aos 91 anos, de causas naturais, deixou como mote a seguinte frase: “A vida é demasiado curta para vivermos o sonho de outra pessoa.” Começou a viver o seu em Dezembro de 1953, quando chegou às bancas americanas uma nova revista. Chamava-se Playboy e tinha na capa Marilyn Monroe  (vestida). Como chamada, e sem grande sofisticação, reconheça-se, mas muito directo ao assunto, lia-se: “Pela primeira vez em qualquer revista, a cores, o famoso nu fotográfico de Marilyn Monroe.” No interior, em editorial, Hugh Hefner descrevia o universo que oferecia aos seus leitores: “Gostamos de misturar cocktails com um ou dois canapés, de pôr a tocar música ambiente no gira-discos e convidar uma conhecida para uma conversa tranquila sobre Picasso, Nietzsche, jazz, sexo.”

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Foi essa aura que distinguiu a Playboy das outras revistas que tinham a nudez como presença obrigatória nas suas páginas. A Playboy, defendia o seu criador, não era grosseira, não era explícita, não existia simplesmente como exposição de corpos para excitação do leitor. No seu período áureo das décadas de 1960 e 1970, foi realmente mais do que isso.

Hefner adquirira os direitos de publicação da foto de Marilyn Monroe, pré-celebridade, por 500 dólares. Investira na primeira edição da revista, produzida na cozinha de sua casa, 600 dólares das suas poupanças, acrescidos de alguns milhares recolhidos em empréstimos – incluindo mil dólares oferecidos pela mãe. A tiragem de 51 mil exemplares esgotou-se rapidamente. Estava dado o primeiro e decisivo passo. No seu primeiro ano, a sua circulação subiu para os 200 mil e no seu pico, nos anos 1970, atingia vendas de sete milhões. Em 2015, com o seu carácter revolucionário desvanecido havia décadas, sem o peso cultural de outrora, enfrentando a concorrência de muitas outras publicações nela inspiradas, quando o soft-porn das suas produções parecia quase pudico perante a pornografia disponível na Internet e numa era de crise generalizada na imprensa escrita, ainda atingia nos Estados Unidos uma circulação de 800 mil exemplares – no segmento das revistas masculinas, era apenas ultrapassada pela Maxim.

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O que criou a lenda de Hefner foi a forma como expôs a nudez sem ceder à boçalidade, contratando os melhores fotógrafos, e como a enquadrava numa revista que oferecia muito mais. Publicaram-se nas suas páginas textos de Ray Bradbury (Fahrenheit 451 foi lançado em série nas edições de Março, Abril e Maio de 1954), Vladimir Nabokov, Ian Fleming, Jack Kerouac, Saul Bellow, John Updike ou Kurt Vonnegut e foram nelas entrevistados Bertrand Russell, Malcolm X, Jean-Paul Sartre, Frank Sinatra ou John Lennon. Na revista, foi revelando aquilo que classificava como a “filosofia Playboy”, que era a de um antipuritano, a de um libertino empenhado numa libertação sexual no seu país. Um libertino com causas: defendia o direito ao aborto, a liberalização da marijuana, a causa LGBT e a luta pelos direitos civis da população negra — recentemente defendeu também o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, argumentando que recusá-lo seria regredir para o puritanismo de outrora. Hefner foi também um empresário de visão que transformou a Playboy num império global, sem comprometer as suas convicções no processo.

Em 1959, transportou a sua mansão Playboy para a televisão e, consequentemente, para casa de todos os americanos. O programa chamava-se Playboy’s Penthouse – baptizado, curiosamente, com o nome daquela que viria a ser uma das grandes concorrentes da revista —, e, nele, Hefner recebia músicos como Ella Fizgerald, Tony Bennett e Nat King Cole e conversava com escritores como Norman Mailer ou Max Lerner — uma década depois, outro programa com formato semelhante, Playboy After Dark, acolheria comediantes como George Carlin e Bill Cosby ao lado de figuras da música do período como Ike & Tina Turner, Grateful Dead, Deep Purple, Steppenwolf ou James Brown.

Ressalve-se que Playboy’s Penthouse não chegava a casa de todos os americanos. Numa época em que a segregação racial era ainda uma realidade, o facto de Hefner dar destaque a artistas negros como mais que intérpretes, valeu a crítica e a proibição da exibição do programa em estados do Sul dos Estados Unidos.

Paralelamente à revista e aos programas televisivos, nasceram também os exclusivos clubes Playboy, como que extensões do ambiente das famosas mansões de Hefner que se espalharam pelos Estados Unidos e que expandiram à Europa. Foi neles que cimentou definitivamente outra imagem para sempre associada à Playboy, a das célebres “coelhinhas”, ou seja, as mulheres que compunham o staff dos clubes. O autor australiano Clive James disse certa vez que “para ser uma coelhinha, uma rapariga precisa de mais do que boa aparência”: “Também precisa de idiotice.” De forma tão cruel como certeira, James expunha uma das grandes contradições de Hefner, o libertino, o arauto de uma revolução sexual, o autoproclamado feminista que as feministas das décadas de 1960 e 1970 odiavam tanto quanto o odiavam os conservadores e puritanos da década de 1950.

A jornalista Gloria Steinem, que em 1963 se infiltrou na equipa do clube Playboy nova-iorquino para elaborar uma reportagem posteriormente publicada na revista Show, não teve nada de positivo a dizer da experiência. “Aprendi o que é estar pendurada num gancho para carne”, escreveu. No obituário de Hefner publicado no Guardian, Steinem aponta que foi ali que despertou o seu feminismo. “Tendo em conta que somos todas demasiado definidas pelo nosso exterior”, escreveu, “e que a maioria de nós trabalha em empregos mal pagos, percebi que somos todas ‘coelhinhas’.”

Hugh Hefner, o libertário, revelava, afinal, traços da misogonia tradicional da sua geração e não lidava bem com a emancipação feminina. Em 1970, encomendou um artigo à sua equipa editorial. Seria dirigido às activistas femininas e pediu-o nos seguintes termos: “Estas miúdas são o nosso inimigo natural. Quero um artigo devastador que destrua as militantes feministas. Elas opõem-se de forma inalterável à sociedade romântica rapaz-rapariga que a Playboy promove.” Um ano antes, lamentava na imprensa britânica, durante uma visita a Londres para apresentar a sua nova produtora cinematográfica – responsável, por exemplo, por MacBeth, de Roman Polanski, ou por … And Now For Something Completely Different, dos Monty Python —, que a sociedade ainda tratasse algumas mulheres como objectos desempenhando um papel “decididamente não humano”. A Playboy, acreditava, contribuía para que se atingisse uma “nova maturidade e honestidade moral em que o corpo, a mente e a alma do Homem convivem em harmonia e não em conflito”.

No momento da sua morte, parece muito distante aquele mundo em que Hefner afrontava uma sociedade conservadora e reprimida sexualmente. Parece quase anedótico que tenha sido uma grande vitória a incapacidade de o júri chegar a um veredicto no julgamento a que foi submetido em 1963 por obscenidade. A possibilidade de uma revista como era a Playboy poder ser proibida, aos olhos de 2017, é, isso sim, uma bizarria, e Hugh Hefner, na sua defesa férrea da liberdade de expressão, na forma como retirou a nudez do gueto de perversidades em que a América de então a colocava (em 1965, criou a Playboy Foundation, dedicada a lutar contra a censura e a apoiar pesquisas sobre a sexualidade), deu a sua contribuição para que assim fosse.

Na hora da sua morte, chovem piadas sobre como dele não se dirá que “partiu para um sítio melhor”. Recorda-se que passaram pela capa da sua revista Jayne Mansfield, Ursula Andress, Nastassja Kinski, Sharon Stone, Kim Basinger, Raquel Welch ou Pamela Anderson. Referem-se os três casamentos, o últimos dos quais com Crystal Hefner, 60 anos mais nova e sua viúva, e os quatro filhos, dois deles com posições de destaque na empresa que o pai fundou. Lembram-se factos anedóticos da última fase da sua vida, como a adesão entusiástica ao Viagra e a participação em reality shows, ou decididamente sinistros, como o relato de Holly Madison, uma das preferidas de Hefner, sobre a vida na mansão Playboy, que descreveu como uma prisão gerida por um homem controlador e abusador emocionalmente.

Hugh Hefner moderou o estilo de vida em 1985, quando sofreu uma pequena trombose, mas tudo fez para manter o mito. Acontece que, como outro mito seu contemporâneo, o do Rat Pack, a supertrupe de entertainers do palco e do cinema liderada por Frank Sinatra, com Sammy Davis Jr., Dean Martin e Peter Lawford a seu lado, hoje anacrónico quando visto de perto, baseava-se num mundo que, para o bem e para o mal, já não existe. Mas o playboy supremo, eternamente enfiado no seu roupão de seda enquanto geria um império a partir de uma cama sumptuosa, foi playboy supremo até ao fim, exactamente como sonhara quando, em 1953, alguém na Esquire lhe disse que um aumento de cinco dólares estava fora de questão.

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