Trump e as fragilidades da democracia
O confronto com o problema da Coreia do Norte revela-se como um exemplo lapidar do perigo público que Trump parece materializar.
Vivemos numa sociedade ocidental que acredita que sedimentou e aperfeiçoou definitivamente o conceito e o modelo de democracia. Não reconhece que o que hoje vemos é ainda uma fase da infância da plena democracia. Provavelmente dentro de um século a democracia terá sido bem mais amadurecida e aperfeiçoada e olhar-se-á esta presente fase como um embaraçoso exercício de arqueologia política. Não, a democracia é muito mais que uma frenética luta por votos lançados numa caixa, entre opções de sectárias máquinas de interesses que se enquistam por detrás de cada símbolo.
A genuína democracia tem que ser muito mais profunda, pura e assente nos cidadãos, que constituem a inalienável base deste conceito e da sociedade. Corruptos e medíocres proliferam nos bastidores da “democracia” atual (muitos são enaltecidos por telejornais e por parte da comunicação social) e apenas alguns países como os escandinavos têm uma cultura sistémica contrária a esta deficiente vivência que agora prevalece no Ocidente. Na história democrática contemporânea não faltam ditadores em diversos graus, eleitos.
Eleições e votos em máquinas partidárias frequentemente convencem estas de que democracia é uma atribuição de poderes ditatoriais aos vencedores, induzindo abusos, perversões e prepotências. Por exemplo, muitos “vencedores” tendem a supor que estão investidos do linear poder de, publicando leis que lhes interessam, “legalizar” o que é ilegítimo e mesmo imoral. É, de facto, uma mentalidade ditatorial assente em votos. Democracia é uma perceção diferente.
Olhando para o nosso país vizinho vejo algo que, sem me surpreender, me assusta. Se eu fosse catalão, há apenas alguns meses teria votado a favor da permanência dessa região em Espanha, embora sempre tenha respeitado a (totalmente legítima) vontade dos independentistas. Mas se eu fosse catalão, hoje votaria, sem hesitação, a favor da independência da Catalunha. Porque a inabilidade e o totalitário comportamento das autoridades centrais espanholas demonstraram, ainda melhor que os independentistas, que esse poder central é, afinal, impositivo, dominador e quase colonial. Temos assistido a um comportamento governamental verdadeiramente tenebroso e absolutamente desastrado. Decretar por leis que a democracia e a vontade de uma enorme comunidade são ilegais é uma perversão da democracia. O Ocidente tem, durante décadas, pregado ao mundo os valores da autodeterminação dos povos, desde que sejam os outros povos, não os seus. Mas na Catalunha e, em geral, no seio da União Europeia, vemos o oposto. Os cidadãos anestesiados não notam. A inconsciência coletiva é uma ameaça ainda maior às democracias.
Ao longo do tempo, os Estados Unidos geraram alguns dos mais vibrantes e intemporais conceitos e passos na formação da consciência democrática. Simultaneamente, foram-se transformando num país que, sucedendo ao predomínio britânico no mundo, se erigiram como principal potência global a partir da Segunda Guerra Mundial.
Quer com ela simpatizemos ou não, objetivamente a sociedade norte-americana atingiu, em muitos aspetos, impressionantes níveis. Trata-se de uma nação que, com apenas cerca de 4% da população mundial, ganhou cerca de 40% dos Prémios Nobel até hoje atribuídos, e é a fonte de grande parte do progresso científico e da criação tecnológica que transformou o planeta nos últimos dois séculos, como continua a fazer. Foi aqui que germinaram a eletricidade, as telecomunicações, o computador, o computador pessoal, a Internet ou a Google, e foi esta a nação que conduziu a Humanidade à Lua. Foi este país que criou o conceito dos parques naturais para preservar enormes áreas de natureza intocada. Esse país com uma população numericamente marginal tornou-se na maior economia do mundo, embora tenha já sido ultrapassada pela China (PIB ppp). O norte-americano é, em média, 45% mais rico que cada cidadão da União Europeia. Tornou-se na maior potência militar do planeta, a única potência literalmente global, com cerca de 800 bases militares em mais de 70 países. Podemos gostar ou antipatizar, mas a realidade norte-americana tem uma dimensão extraordinária que só é possível com um povo corajoso, inventivo e tenaz.
E é este povo que mudou o mundo que, nos seus boletins de votos democráticos, elegeu um presidente como Donald Trump. Após Obama, o contraste dificilmente poderia ser maior. A legitimidade formal desta eleição é incontornável. Como, em graus variáveis, se verifica em grande parte do Ocidente formalmente democrático, os votos “legalizam” mas não legitimam necessariamente.
O respeito pela história inovadora e realizadora dos Estados Unidos impõe alguma repulsa pela forma como Trump tem, de facto, ridicularizado, humilhado e destruído a imagem de liderança e (apesar de erros clamorosos) de referências morais que esse país afirmou no mundo ao longo de gerações. Trump exibe o seu lema “América Primeiro” mas o que eu vejo é a postura “Trump Primeiro, a América Depois”. É difícil imaginar um presidente mais narcisista e menos responsável. Contrariamente ao que muitos pensam, Trump é inteligente e tem uma qualidade que raros políticos possuem, a coragem de inovar ideias e de confrontar interesses instalados na política. Infelizmente, usa essas qualidades de um modo cuja disfuncionalidade seria difícil ultrapassar.
Este contexto poderia ser apenas intranquilizador se não se tornasse também perigoso. Trump talvez tenha conseguido transformar-se numa ameaça para a paz e a segurança do mundo bem mais preocupante que o irritante líder norte-coreano. Na verdade, o confronto com o problema da Coreia do Norte revela-se como um exemplo lapidar do perigo público que Trump parece materializar. O Presidente norte-americano não perde qualquer oportunidade para provocar, para acirrar, para parecer induzir um real conflito militar, que seria inevitavelmente dantesco e nuclear, um desastre geracional para esses dois países, para toda a Ásia Oriental e para todo o mundo. É uma profunda irresponsabilidade e uma devastadora inabilidade.
Tal como muitos políticos ocidentais “democráticos” que foram eleitos por votos, Trump parece também não compreender que o que permite tornar aparentemente legal à sombra do poder (apenas delegado) dos votos não confere legitimidade à arrogância, ao autoritarismo e ao capricho pessoal. A democracia plena tem ainda imenso para aperfeiçoar antes de ser futuramente atingida.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico