A Europa em Marcha do Presidente francês
Macron dispara em todas as direcções para apresentar a sua ideia da Europa que quer daqui a 10 anos. A prioridade é a segurança e defesa. A reforma do euro também lá está, ainda que sem novidades.
“Se o FDP entrar no Governo [alemão], estou morto”. A autoria da frase é de Emmanuel Macron, num desabafo recente com alguns jornalistas. Nesta terça-feira, na Sorbonne, num discurso que levou quase duas horas e que não deixou nenhum domínio da construção europeia de fora, o Presidente francês mostrou que está vivo, apesar dos resultados das eleições alemãs de domingo. A sua visão é ousada e ambiciosa, como ele próprio disse, desafiando, já quase no fim, Angela Merkel a acompanhá-lo na ousadia. “A resposta da Alemanha não será o fechamento nem a timidez mas a audácia e o sentido da História”.
O seu discurso foi uma imensa torrente de propostas, umas atrás das outras e sobre todos os domínios, que pode parecer mais uma fuga para a frente do que um guia de prioridades para o futuro. Com um ponto comum a todas elas: o Presidente francês considera que mais integração institucional e mais europeização das políticas é a melhor resposta aos problemas múltiplos que a Europa enfrenta. Foi, como ele próprio disse, um mapa para os próximos dez anos. Uma verdadeira “Europa em Marcha”, como referiu o Politico. A questão é saber se a maioria dos seus parceiros europeus partilha de tamanha ambição. E, em primeiro lugar, como é que as suas propostas vão ser entendidas em Berlim.
A segurança e o euro
Sobre as duas grandes prioridades que a Europa já tem em cima da mesa, foi abundante no domínio da segurança e defesa, mas um pouco mais parco sobre a reforma do euro, limitando-se a enumerar as propostas que avançou nos últimos tempos. “É preciso uma coordenação das nossas políticas económicas e um orçamento comum”. Quer um governo da zona euro, com mais partilha de riscos e mais instrumentos comuns. Voltou a defender “um orçamento mais forte no coração da zona euro”.
Na noite das eleições, o líder dos liberais alemães, Christian Lindner, chegou a dizer que uma “Europa de transferências” servia para financiar o Estado francês ou as loucuras de Itália. Macron não morrerá, mas vai ter de preparar-se para uma longa espera, seguida de uma longa batalha, até que a reforma da zona euro volte à agenda europeia com a prioridade que a França e outros países lhe atribuem. Numa indirecta ao líder do FDP, o Presidente francês deu dois exemplos em que algumas ideias-feitas impedem qualquer debate. Começou por casa e pela obsessão francesa contra a revisão dos tratados, por causa do trauma da Constituição europeia em 2005. Lembrou que o tabu da Alemanha é a “Europa de transferências”.
Definiu seis grandes objectivos para o “renascimento europeu”, o primeiro dos quais é a segurança e defesa. Propôs a criação de uma “força de intervenção europeia”, que funcione autonomamente, dando corpo a uma “cooperação estruturada permanente” (que já está a ser discutida), assente em três grandes pilares: uma capacidade militar, um orçamento e uma doutrina. Reconhece que falta ainda à Europa uma “cultura estratégica”. Abre as portas “ao acolhimento nas nossas forças armadas de militares de outros países europeus.” O combate ao terrorismo é a segunda dimensão fundamental, propondo uma Agência Europeia de Informações e um controlo mais eficaz da propaganda do islamismo radical. Quer andar depressa.
Num outro grande estaleiro da construção europeia, os refugiados e as migrações, volta à carga com a necessidade de uma Política Comum de Asilo, que resulte da harmonização das leis nacionais e permita distinguir rapidamente quem tem direito ao estatuto do refugiado e quem não tem. Defende uma polícia europeia de fronteira e um programa de integração dos refugiados, devidamente financiado. Elogiou o modelo alemão. Lembra que o fenómeno das grandes migrações não é conjuntural: continuará enquanto as desigualdades mundiais foram enormes.
A questão fundamental é o desenvolvimento dos países de origem. Muita gente já o disse, incluindo Merkel. Macron defende uma iniciativa concreta com este objectivo, regressando à velha ideia de uma taxa sobre as transacções financeiras, que já foi muito discutido e, depois, caiu no esquecimento. A novidade está em que este imposto seja integralmente investido na ajuda ao desenvolvimento. Criou um breve suspense, quando referiu que há dois países que já a aplicam, sendo um deles a França. Quem é o segundo? O Reino Unido, cujo modelo a Europa devia importar.
Não hostilizou os britânicos, pelo contrário. Disse-lhes que a Europa que ambiciona, menos burocrática, mais simples e mais eficaz, pode vir a abrir as portas, um dia, ao seu regresso. Como se esperava, voltou à sua ideia de uma Europa a várias velocidades, lembrando que ela já funciona assim: “A Europa já é a várias velocidades, não tenhamos medo de o dizer e de o fazer”. Não falhou um único domínio, incluindo a segurança alimentar que deverá ter também uma agência de fiscalização, lembrando a mais recente crise dos ovos contaminados. Para além da segurança e dos refugiados, os seis pilares da Europa, incluem a economia digital, o clima, e as questões económicas e comerciais.
Soberania europeia
Quer uma Europa “soberana, unida e democrática”, o que também quer dizer que deve proteger-se da concorrência desigual de outros grandes blocos económicos. Ligando essa “soberania” à ecologia, o Presidente francês admite uma taxa aduaneira sobre os produtos importados que não respeitem os critérios de CO2.
Entretanto, a Comissão já tem pronta uma nova iniciativa dirigida à protecção europeia dos investimentos estrangeiros em sectores estratégicos e de tecnologia de ponta. Soma-lhe a defesa de um imposto sobre as grandes multinacionais da inovação tecnológica, que teimam em viver “num mundo à parte”. “Hoje o continente do digital não tem lei, a não ser a do mais forte”. Desafia a Europa a bater-se no campo da inovação, provando que a ideia de que “depois dos EUA, vem a China” não tem nada de verdadeira. Quer mais uma agência da inovação, a nível europeu, que coordene a “batalha” neste sector fundamental.
Pediu urgência para um Mercado Único da Energia, que continua a arrastar-se, citando como exemplo os esforços que já fizeram a França e os dois países ibéricos. Como se esperava, defendeu a necessidade de harmonizar as políticas sociais e as políticas fiscais, dois temas igualmente polémicos. Voltou à carga com a harmonização dos impostos sobre as sociedades. O problema arrasta-se há anos na União Europeia.
Como é próprio da França, a Europa constrói-se através das suas instituições. Macron quer reduzir a 15 o número de comissários (a questão foi largamente debatida nas negociações do Tratado de Nice), e fez uma defesa apaixonada das listas comuns para as eleições do Parlamento Europeu, em 2019. Como não podia deixar de ser, Emmanuel Macron reservou parte do seu discurso às relações franco-alemãs e a tudo aquilo que os dois países podem fazer em conjunto para bem da integração europeia. Desafiou Merkel para uma nova parceria a dois, inspirada no Tratado do Eliseu, assinado por Adenaur e De Gaulle em 1963, prestes a celebrar 55 anos.
O que ficou do discurso? Uma visão apaixonada da Europa e uma crença na necessidade de mais integração e de mais solidariedade. Um conjunto tão vasto de propostas que acabará, talvez, por apagar a mensagem principal. Se havia uma, ela corresponde à sua convicção profunda de que cabe à França, mais do que a Alemanha, liderar o processo desta refundação da Europa, se quer que ela avance a tempo de responder aos grandes desafios. Era este o discurso que Merkel esperava? Vai a chanceler manter o rumo da sua política europeia? Quantos aliados tem a França para esta ambição? Tem certamente alguns.