Twin Peaks: o cinema invadiu a televisão
David Lynch possuiu mais uma vez a televisão: um humor que roça a paródia, ausência de realismo nos diálogos, explosões inusitadas de violência, uma deriva experimental que não encaixa na televisão destes dias - tal como há 25 anos
O primeiro episódio da 3.ª série de Twin Peaks há uma caixa de vidro vazia, filmada por várias câmaras, com uma abertura, espécie de óculo, voltada para o exterior; apenas um homem tem acesso ao dispositivo instalado num armazém, que ele observa como quem assiste a um programa de televisão. Como um vazio, uma enorme quantidade de imagens que se produzem, inócuas e desqualificadas, um coro de que Lynch se afastou há mais de dez anos, após INLAND EMPIRE (2006). Twin Peaks seria, então, o óculo, a possibilidade de Lynch possuir mais uma vez a televisão, de a contaminar com as suas obsessões, da sujeição de tudo aos caminhos do onírico.
Como se não tivessem passado 25 anos, Lynch descongela situações e personagens da série, impõe que seja mostrada a um ritmo semanal, convoca a família de actores (uns envelhecidos, outros mortos) e a filmografia, como uma das réplicas de Dale Cooper, Dougie Jones, que procura reaver a memória. No entanto, a Twin Peaks de 2017 vive de uma tensão, é tanto o Lynch que quer replicar esse tempo de há 25 anos, como o cineasta no seu apogeu, o de Mulholland Drive (2001): a série tem oscilações de ritmo, divagações da narrativa, um humor que roça a paródia, uma abundante ausência de realismo nos diálogos, explosões inusitadas de violência, uma deriva experimental que não encaixa na televisão destes dias, tal como sucedia há 25 anos, quando corríamos para casa para assistir a Twin Peaks na televisão pública.
Sonhar: ficcionar
When this kind of fire starts, it is very hard to put out. The tender boughs of innocence burn first, and the wind rises, and then all goodness is in jeopardy.
[Twin Peaks: Fire Walk With Me, 1992]
Às personagens da série original, juntam-se outras tantos novos, é o inicio da procura de uma interacção entre o novo e o velho. A série sai de Twin Peaks (onde continuam a acontecer coisas), alastra a outras cidades, como um vício que se expande (Nova Iorque, Las Vegas, South Dakota), já não é sobre a cidade, é sobre a América, já não é uma série, é um possível compêndio do trabalho de Lynch, com 18 horas de duração. É um contínuo “e se” na construção da narrativa, das personagens (e dos seus desdobramentos) e das dimensões, como o cruzamento da cortina e do soalho no genérico de abertura, um labirinto sem medidas, sem passado nem futuro; as várias narrativas ligam-se por momentos, uma possibilidade de verosimilhança, uma construção de guião que logo se esboroa. Também se estilhaça a divisão de mundo e submundo, realidade e oculto, com inúmeras variações. Se em Mulholland Drive o oculto é Hollywood, aqui é todo um universo de realidades paralelas, comandadas pelo onírico: há um permanente mundo de sonhos, até os Mitchum Brothers (da mafia) sonham e os sonhos, como possibilidades de ficção, sobrepõem-se à realidade. Tal como em Lost Highway (1997), os crimes e a morte perpetuam-se na zona dos sonhos, e então lembramo-nos que em Mulholland Drive até os mortos sonhavam!
Mulholland Drive nasceu dos cacos de uma série, um piloto encomendado pela ABC, que se apartou do projecto, pois considerou o material sem ritmo e violento. Foi Alain Sarde quem se interessou por aquelas imagens e desafiou Lynch a rodar o que faltava. Obra genial sobre a indústria dos sonhos, Mulholland Drive pode contar a história de Hollywood: uma estrada de 80 quilómetros, ponto privilegiado de observação de narrativas, episódios e identidades, sonhos e pesadelos que se confundem, ambições e memórias, controlo e transgressões que rebentam muitas vezes numa violência insuportável, em morte. Depois de Mulholland Drive, Lynch disse estar cansado de fazer filmes deste modo, do peso da indústria, e optou por fazer INLAND EMPIRE em vídeo, com pequenas câmaras digitais, sem um guião prévio, com uma equipa reduzida, para conferir liberdade de criação, numa aproximação à pintura, um dos seus grandes interesses. O resultado, um lado b de Mulholland Drive, mais um filme sobre uma rodagem, sobre o mundo oculto do cinema, revela uma impossibilidade: a potência das imagens de Lynch precisa do aparato e dos recursos da indústria, da cenografia e da iluminação, das cores que remetem para o technicolor dos melodramas de Douglas Sirk (em Twin Peaks recupera Peter Deming, director de fotografia de Mulholland Drive e Lost Highway), da sofisticação da sonoplastia, que nesta série é um dos trunfos do cineasta, creditado como sound designer, um amplexo da manta ampla de sons e ambientes orquestrada por Dean Hurley, combinado com as baladas funestas de Badalamenti.
A segunda metade da filmografia de Lynch, a parte decisiva, começa com Twin Peaks: Fire Walk With Me, obra subvalorizada, assente em espelhos e duplicidades que são portas para a derivação da narrativa: Laura Palmer, anjo e puta, rainha do baile que se embrenha pela floresta como um personagem dos Irmãos Grimm; pais e filhos, gerações que não comunicam; Twin Peaks, pequena cidade pacata e corrupta, putrefacta. Um caleidoscópio que produziu imagens tão potentes, capazes de estilhaçar o ecrã, que não encontramos no Cinema contemporâneo e que nos lembram os paroxismos de von Stroheim; citamos de memória: um carro pára junto ao semáforo, com Laura e o Leland, o pai; o semáforo não abre, a câmara alterna entre a fúria do rosto de Ray Wise, o pavor perto de rebentar em pranto de Laura, que tinha acabado de receber a visita de Bob, o som insuportável da aceleração do veículo que não avança.
Os anos 50, tempos de infância e juventude de Lynch, de renovação do sonho americano, do fim da escassez de bens materiais após a 2.ª guerra, de progresso tecnológico, com o capitalismo a oferecer eletrodomésticos e automóveis, em oposição ao outro mundo, o soviético. Mas é também um período de interdependência entre o optimismo e a presença do mal absoluto, com a mácula de Hiroxima e Nagasaki e a segregação dos negros e de outras minorias na América. Encontramos em abundância elementos deste período na obra de Lynch a partir de Blue Velvet (1986): a brutalidade de Dennis Hopper, a performance de Dean Stockwell de In Dreams de Roy Orbison; em Wild at Heart (1990), para lá de Chris Isaak (caso exemplar: muita da música utilizada nos filmes, mesmo quando não foi produzida nos 50’s, remete para esse período), Nicolas Cage corporiza Elvis e canta Love Me Tender numa escalada de carros ao encontro de Laura Dern. Fire Walk With Me acentua, então, o encerramento de Lynch nessa cápsula temporal: James (o namorado oculto de Laura) é uma réplica da rebeldia dos Dean & Brandos, que conhecerá ressonâncias na Twin Peaks deste ano: Wally, o filho de Lucy and Andy, que nasceu no mesmo dia de Marlon, visita os pais na esquadra de Twin Peaks, montado numa mota, casaco de cabedal e boina, e relata o percurso idílico pela América, numa cena pautada por longos silêncios, no limite do patético. Aliás, num dos episódios da série, Lynch justificará esta fixação, levando-nos à génese do mal, ao acto fundador da sua obra, mas já lá vamos.
As portas abertas por Fire Walk With Me conduziram, então, às estradas perdidas de Lost Highway e Mulholland Drive, a salas de espelhos em que o cinema é o âmago, actualizações do film noir em que os corpos, a volúpia, são protagonistas: a dupla Patrícia Arquette, Naomi Watts & Laura Harring, loira e morena, inocência que anseia a corrupção.
Lynch, a indústria e o espectador
Ainda não acabamos de digitar Lost Highway e o deus google já nos promete a explicação do filme. O percurso de Lynch é um permanente jogo do gato e do rato, com a indústria e com o espectador. Quem Matou Laura Palmer?, ouvia-se desde a primeira série de Twin Peaks, uma fórmula novelesca de segurar o espectador, traindo sempre as suas expectativas; nesta série há algo de semelhante: esperava-se o conforto da nostalgia, do regresso àquelas personagens e situações, e Lynch estilhaça tudo isto, mas pontualmente regressa lá, basta uma cena por episódio, aos locais (hotel, restaurante, esquadra), o motivo de Badalamenti associado à ventoinha no tecto da casa de Laura Palmer, e isto tem tanto de eficaz e até previsível, como de poderoso: Bobby Briggs (namorado de Laura, agora polícia) vê o retrato de Laura sobre a mesa, o tema de Badalamenti assoma, ele chora e diz para o xerife e adjuntos: isto traz memórias. De modo análogo, é a mesma indústria que cancelou Mulholland Drive, por lhe faltar algo de reconhecível, uma nova Twin Peaks: Lynch furtou-se durante meses até aceitar fazer a 3.ª série, nas suas condições, o que parece, também aqui, um regresso à Hollywood de outros tempos, um filme que escapa às convenções através de ardilosos subtextos. Quem pede uma explicação para a trama, para a direcção destas estradas, não está no filme certo, mas Lynch passou de esquivo quanto a estas dissensões, para jogar com elas de forma irónica, adensando o jogo. Um cinema que exige uma adesão, quase uma devoção, um espectador disponível para deambular pela sala de espelhos, para participar na construção especulativa.
O episódio 8, espécie de coração programático da série, morde o território do ensaio, depois de abrir com mais uma estrada perdida, uma das réplicas de Cooper e um comparsa, apenas um trilho em terra, iluminado pelos faróis do carro, Lynch a citar-se. Estamos, então, em White Sands, New Mexico, a 16 de Julho de 1945, para assistirmos ao Trinity, primeira explosão-teste com uma arma nuclear (já tínhamos reparado que no gabinete de Gordon Cole, o personagem interpretado por Lynch, ao lado de um retrato de Kafka, estava uma fotografia da explosão em Nagasaki). Uma erupção no deserto, como uma árvore de fogo, uma chuva de partículas articulada com a densidade abrasiva dos temas de Dean Hurley e um requiem pelas vitimas de Hiroxima, explosões de múltiplas cores, ondas cinza de lava. O belo e o horror são linhas paralelas, que atravessam a série. A gestação do mal, o big bang que originou Twin Peaks, numa mescla de uma violência primitiva e tecnologia. As imagens levar-nos-ão através de um mar púrpura até uma sala de um teatro, de onde se projecta o rosto de Bob entre nuvens, até que brota uma árvore de partículas brilhantes e amarelas, de onde se solta uma esfera: o rosto sorridente de Laura Palmer está no interior. A bola é lançada por um mecanismo para o exterior do universo. É o inicio da construção da interdependência entre o bem e o mal, como um conto de fadas, que é também uma visão alegórica do sonho americano, que revela mais crença do que ironia, como ficará explicito na relação de bonomia simbiótica de Dougie Jones com os Mitchum Brothers. Dez anos passados e estamos na década de Lynch: no deserto, um estranho insecto desembaraça-se do ovo e dá os primeiros passos em direcção a uma cidade tomada por demónios trajados de vadios, um deles interromperá o vinil que toca My Prayer dos Platters na rádio para anunciar repetidamente uma estranha cantilena que adormece os ouvintes, enquanto o insecto entra no quarto de uma rapariga, antecipando as visitas de Bob a Laura, e invade-a pela boca.
O passado resolve o futuro
A equipa Blue Rose do FBI desloca-se ao South Dakota na procura de cabeças e corpos em falta, estamos no episódio 11 e Gordon Cole observa um vórtice, Lynch estende os braços para o céu, como uma prece, ele assume-se como um exorcista, um perito menos em confronto e mais em diálogo com os demónios. É, então, um Lynch interessado no mito, no oculto e no misticismo, daí a importância atribuída a Hawk, o adjunto índio do Xerife, no estabelecimento de relações intemporais entre a vida e a morte. É o Cinema, a sua história, que começa a resolver a série: Sunset Boulevard (1950) convoca Gordon Cole pela boca de Cecil B. DeMille, depois de se despedir de Norma Desmond que o visitara no estúdio pronta a filmar, a reencetar a carreira, fora de campo está o mordomo, outrora marido, o seu cineasta nos dourados anos 20: Erich von Stroheim. Há uma presença decisiva de objectos e aparelhos de outros tempos, um elogio da máquina e da tecnologia, um diálogo entre o novo e o velho (Lynch volta às imagens de Fire Walk With Me e remonta-as), como os fios audíveis de eletricidade que ligam as várias dimensões do espaço e do tempo e que abrem as portas aos clones de Dale Cooper. Com o passado sempre a voltar, e os episódios a correrem, evidencia-se que Lynch quer falar sobre o envelhecimento (as rugas dos seus actores), a morte e o seu culto. A série torna-se num imenso epitáfio, com a presença de memoriais-requiens e homenagens a actores falecidos, que culminará na solenidade com que a morte da oráculo Log Lady é apresentada. Italo Calvino encerra Se Numa Noite de Inverno um Viajante (o romance a falar consigo próprio, narrativas que não sobrevivem ao 1.º capítulo, que frustram o leitor mas não o impedem de prosseguir) com uma epígrafe: “O sentido último para que remetem todas as estórias tem duas faces: a continuidade da vida, e a inevitabilidade da morte”. Há um grito que encerra a 3.ª série de Twin Peaks, que ecoa nas nossas cabeças durante dias, e que projecta um fluxo de histórias que hão-de vir. As guitarras são sinuosas, a voz etérea, Rebekah Del Rio canta No Stars: My dream is to go/To that place / You know the one / Where it all began / On a starry night / When it all began; podia ser Julee Cruise, como há 25 anos.