Património arqueológico de grande valor no meio das obras no armazém do MARL

Trabalhos na cobertura e operários a derrubar paredes enquanto em mesas e tanques se acumulam materiais com centenas ou milhares de anos de valor inestimável. Arqueólogos acusam a tutela de se demitir das suas responsabilidades. DGPC garante que a segurança do espólio foi acautelada.

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Aspecto do armazém ocupado pelo CNANS durante a obra DR

Na última semana chegaram à redacção do PÚBLICO vários emails assinados por arqueólogos com denúncias da “grave situação” em que se encontra o espólio à guarda do antigo Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), estrutura cujos serviços fazem hoje parte da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e que desde 2009 ocupa um armazém no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL). Motivo? O facto de os 14 mil bens móveis que ali se encontram — pirogas com mais de dois mil anos que estão entre as embarcações mais antigas do mundo e peças que pertenceram a navios dos Descobrimentos, entre muitos outros — estarem em risco de vir a ser danificados durante os trabalhos de construção que ali estão a decorrer para que o armazém possa vir a ser usado por outra empresa, a Science4you, que já ocupava parte do edifício.

Denúncias como estas motivaram esta segunda-feira uma visita às instalações por parte dos deputados Ana Mesquita (PCP) e Jorge Campos (Bloco de Esquerda) e dos arqueólogos José Arnaud e Luís Raposo, respectivamente o presidente e o vice-presidente da Associação de Arqueólogos Portugueses (AAP). Os dois últimos tinham já recebido testemunhos “alarmados” (o adjectivo é de Arnaud) de colegas confrontados com o cenário em que o antigo CNANS se encontrava naquele armazém de São Julião do Tojal, Loures.

Diz o presidente da associação dos arqueólogos que não tem agora qualquer dúvida de que, na subaquática, o património acumulado ao longo dos últimos 20 anos (o CNANS nasceu em 1997 e fazia parte do Instituto Português de Arqueologia, também ele extinto em 2007) corre sérios riscos de se perder. “Agora já não se trata ‘só’ — ponho entre aspas porque isso seria por si grave — de ter um serviço como o CNANS, em que se investiu muito durante dez anos em equipamento e formação de pessoal, completamente paralisado”, diz José Arnaud. “Trata-se de ver ameaçado, com este armazém transformado em estaleiro, um património que é fundamental para compreender melhor, entre outras coisas, a Expansão portuguesa." Não há outra reserva arqueológica nacional como esta: tem restos de galeões do século XVI, materiais de naufrágios do século XVII, pirogas milenares e colecções de referência de botânica que vieram do núcleo de arqueociências. "E isto tudo está agora no meio das obras, do pó, sujeito a partir-se, a desaparecer, a apodrecer.”

Pode falar-se em apodrecimento deste espólio porque, nalguns casos, trata-se de madeiras cuja preservação exige a imersão em tinas com água corrente, algo que não está a acontecer neste momento, segundo Luís Raposo.  

“Há ali partes de embarcações cuja conservação é muito complexa e obriga a que estejam mergulhados em líquidos e com água corrente para que os fungos e bactérias não levem à sua destruição”, explica. “Neste momento a água já está fechada e, mesmo que o técnico de conservação e restauro queira tentar fazer as coisas manualmente tem o acesso muito limitado, é preciso andar curvado, por baixo dos andaimes, para chegar aos materiais.”

A mudança para Xabregas

Os andaimes instalados no armazém de onde a DGPC já fez sair todo o seu arquivo morto e objectos afectos às lojas de que dispõe garantem a intervenção nas coberturas e, ao mesmo tempo, permitiram colocar um grande plástico a proteger os tanques de imersão onde estão, por exemplo, as raríssimas pirogas do Rio Lima de que todos falam sempre que o que está em cima da mesa é o património do CNANS.

“Este plástico cria um tecto que garante a salvaguarda dos campos de imersão. Foi a DGPC que pediu para que fosse colocado”, explica ao PÚBLICO um dos seus subdirectores-gerais, João Carlos Santos. “Não é verdade que o património que ali está guardado esteja em risco.”

Raposo discorda — o plástico colocado não é necessariamente benéfico à preservação daqueles bens porque limita a circulação de ar. “Tudo isto a DGPC saberia se estivesse no local ao invés de ter deixado os seus técnicos dos CNANS sozinhos, sem qualquer apoio institucional”, continua este arqueólogo que durante 16 anos dirigiu o Museu Nacional de Arqueologia. “Há um quase abandono destas colecções de referência nacional e internacional. Em tantos anos de experiência, é a primeira vez que vejo tamanha ausência da hierarquia da DGPC num processo desta natureza, tamanha recusa em assumir responsabilidades.”

O processo a que Raposo se refere diz respeito à mudança do CNANS do MARL para instalações definitivas em Xabregas, na antiga fábrica de tabacos, localização anunciada pelo ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, aos deputados em Junho, depois de o PCP ter alertado para a situação da arqueologia náutica e subaquática.

João Carlos Santos, responsável por essa mudança, garante que até 15 de Outubro o concurso público para a execução das obras de adaptação do edifício de Xabregas estará lançado e a intervenção concluída “até ao final do primeiro semestre do próximo ano”.

Em resposta a um ofício apresentado pela deputada comunista Ana Mesquita a que o PÚBLICO teve acesso, o chefe de gabinete de Castro Mendes, Jorge Leonardo, informava a 23 de Junho que o financiamento da obra estava dependente de uma candidatura ao Fundo de Reabilitação do Património do Estado, que deveria garantir 80% da verba necessária (os outros 20% viriam do orçamento da DGPC).

“Neste momento já temos garantias da parte do gabinete do senhor ministro de que há dinheiro para a obra”, diz o subdirector-geral. “O custo ronda um milhão de euros e vai permitir ao CNANS transformar-se num centro de referência europeu e até mundial. Espero que tenhamos depois condições para o equipar em termos de recursos humanos.” Neste momento os serviços da arqueologia náutica e subaquática têm cinco funcionários, e entre eles há apenas um conservador que é responsável por um laboratório e pela preservação de 14 mil bens móveis.

Desmantelamento total

A permanência de máquinas e de operários junto de material altamente sensível e o facto de terem sido derrubadas paredes para a abertura de um portão de carga quando todo o acervo se encontrava dentro do armazém não preocupam João Carlos Santos. Os dois seguranças no local e os funcionários do CNANS garantem a integridade do espólio, diz. “O MARL tem colaborado connosco em todo este processo e está a conduzir a obra com muito cuidado. Percebeu que nós não conseguíamos fazer a mudança dentro dos timings que eles pretendiam.”

No final de Maio, o presidente da sociedade a que pertence o mercado abastecedor de Lisboa, a SIMAB, dizia ao PÚBLICO que esperava que o CNANS libertasse toda a área que ocupava no armazém num prazo de 15 dias, de acordo com o determinado pelo contrato de arrendamento. Algo que, claramente, não aconteceu. À data, Rui Paulo Figueiredo explicara que tinha informado em Dezembro de 2016 o Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliações Culturais (GEPAC), organismo responsável pelo arrendamento em nome do Ministério da Cultura, de que teria de libertar “o quanto antes” a área de 3200m2 que ocupava no edifício do MARL.

Contactado agora pelo PÚBLICO, remeteu quaisquer esclarecimentos para a DGPC. O subdirector-geral do Património, por seu lado, optou por não definir uma data para o começo da mudança do CNANS para Xabregas nem disse se o GEPAC continua ou não a pagar renda no armazém de São Julião do Tojal (em Maio a renda mensal era de cerca de 17 mil euros). “O que posso dizer é que o MARL tem colaborado connosco.” Mas estará disposto a esperar até nove meses para entregar o armazém à Science4you, com quem já terá acordado o arrendamento?

Para José Arnaud, presidente da associação dos arqueólogos, o que se passa hoje com o CNANS é simplesmente uma das faces visíveis do “total desmantelamento de todas as estruturas de investigação, preservação e divulgação do património arqueológico em Portugal. Tem-se vindo a destruir o que foi penosamente construído entre 1997 e 2007”, década em que houve um “grande avanço” na investigação motivada pela arqueologia em Portugal.

Tanto Arnaud como Raposo defendem que a DGPC não tem mostrado nem vontade, nem capacidade para cumprir as suas obrigações no que toca ao património arqueológico. “Não me recordo de um retrocesso desta natureza na arqueologia”, diz o presidente da AAP, que dirige escavações desde a década de 1970. Luís Raposo vai ainda mais longe e afirma: “O Ministério da Cultura não é para levar a sério. O que se está a passar na prática é em tudo contrário ao que o ministro prometeu em Junho em sede parlamentar. A DGPC está cada vez mais fraca institucional e tecnicamente.”

Para estes dois arqueólogos com larga experiência, a DGPC prega boas práticas no que toca à defesa do património, mas não as pratica. “Não sei se, caso não fosse ‘seu’ este armazém, a DGPC permitiria que um espólio com este valor e importância científicos estivesse no meio de andaimes, no meio de uma obra.”

No armazém do MARL o CNANS tem espólio vindo de muitos municípios do país, de Aveiro a Portimão, passando por Lisboa, Cascais, Vila do Bispo, Oeiras, Vila do Conde, Ílhavo ou Viana do Castelo. Dele saíram mais de metade das peças da exposição O Tempo Resgatado ao Mar (2014-2015), do Museu Nacional de Arqueologia, algumas delas com seguros de milhares de euros.

Na sequência da visita desta manhã da deputada Ana Mesquita às instalações do CNANS, o Grupo Parlamentar do PCP dirigiu ao Presidente da Assembleia da República uma série de perguntas para que as faça chegar ao Governo.

No documento diz-se, por exemplo, que a mudança para Xabregas “está longe de decorrer nas melhores condições, havendo património náutico e subaquático em risco e condições de trabalho indignas”. Acrescenta-se ainda que o local está transformado num “autêntico estaleiro” e que “deixou de haver qualquer tipo de controlo de entradas e saídas, circulando pelo espaço onde se encontra importante espólio pessoas que não são afectas à DGPC”.

O PCP quer saber, nomeadamente, para onde vai aquele espólio até que possa ser instalado em Xabregas.

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